Gostei das respostas do Tilion. Me baseando nelas, pergunto:
Porque ele fez isto no Silmarilion e não fez na Trilogia, Tilion? Ambas as obras não são épicas?
Não, não são. Pelo menos não no mesmo sentido.
A intenção de Tolkien ao escrever o Silmarillion era realmente a de fazê-lo como um texto épico, no estilo dos Eddas e do Kalevala. Nisso ele foi muito bem sucedido.
O caso do SdA é diferente, primeiro porque ele inicialmente foi um livro "por encomenda", nascido do sucesso que O Hobbit fez. A história do SdA seguiria então mais ou menos a mesma linha do primeiro livro, sendo "uma aventura de fantasia", e não um épico em si (principalmente porque, como eu disse no post anterior, o gênero épico não tinha mais o apelo junto ao público como tinha antigamente; logo, não era um gênero lucrativo).
Mas no decorrer do desenvolvimento da história, Tolkien foi modificando sua própria idéia inicial de como ela seria, acrescentando muita coisa dos Dias Antigos e tornando-a de fato uma "continuação" das histórias d'O Silmarillion (além de, claro, deixar de lado o tom "infantil" d'O Hobbit por algo mais maduro e sombrio).
Mesmo com essas mudanças, o SdA não se encaixa no gênero épico em si. O épico (ou melhor dizendo, a epopéia) segue mais ou menos uma fórmula fixa de estrutura e forma, variando (obviamente) no tema:
geralmente são na forma de versos decassílabos ou de mais sílabas; há fases distintas no poema: 1)
proposição, onde o narrador apresenta o assunto que será tratado; 2)
invocação, que geralmente é um pedido de "inspiração" para as Musas; 3)
dedicatória, quando o poema é dedicado a alguém (não sendo "obrigatória" essa parte); 4)
narração, que é o núcleo da narrativa, onde se desenvolve a ação; e 5)
epílogo, onde se conclui a história, geralmente com um tom moralizante; há ainda aspectos básicos, como a própria
antecipação que eu já mencionei, além das
peripécias, etc.
Três dos maiores textos épicos apreciados imensamente por Tolkien (inspirando-o muitas vezes) enquadram-se nessa descrição: o
Poetic Edda, o
Kalevala e o poema
Beowulf.
Tolkien chegou a dizer que a idéia inicial dele era escrever toda sua "mitologia" em verso... de preferência em quenya!!
Como sabemos, ele não levou essa idéia adiante, talvez devido à complexidade do mesmo, além da receptividade que tal texto teria da parte dos editores e leitores (o fato de não ter apelo, não ser rentável, etc). Ainda assim, podemos ler o que ele chegou a iniciar nesse sentido, isto é, várias partes do legendário em verso, que se encontram no terceiro volume da série HoMe: The Lays of Beleriand (As Baladas de Beleriand). Recomendo, mas aviso também que é a leitura mais difícil de toda a série HoMe, com um vocabulário
muito arcaico.
O SdA, por tudo isso, seria uma "versão adaptada" do que seria uma parte do Silmarillion. O SdA foi escrito pelo Frodo, e tem assim um estilo mais "leve" do que aquele encontrado n'O Silmarillion que, embora tenha sido compilado pelo Bilbo, é na verdade os relatos dos elfos que ele colhera em Valfenda, principalmente de Elrond.
A grosso modo, os hobbits escreveriam "histórias de aventura e fantasia", enquanto que os elfos ficavam sempre no épico (o que é visível pelas suas canções).
Logo, literal e literariamente falando, o SdA
não é um texto épico. É um romance de fantasia. Já O Silmarillion é de fato épico, literariamente falando, mesmo não sendo em verso (como eu disse antes, "geralmente" os épicos são em verso, mas isso não é "obrigatório"); ele claramente possui características essenciais dos textos épicos, como a antecipação (na forma dos nomes dos capítulos, inclusive).
Porém, nós costumamos chamar o SdA de épico por outro motivo: o emocional. O classificamos assim pelo impacto que o mesmo nos causa (pelo menos na maioria dos leitores, como é visível em seus comentários sobre o que pensam da obra), pelo "tom" que parece transparecer em cada linha. "Épico" aqui é sinônimo de "grandioso".
O chamamos desse modo porque é uma grande história, em tamanho e qualidade, que tem a capacidade de mexer profundamente com o nosso emocional.
Essa classificação seria, assim, uma espécie de "homenagem" de nossa parte a Tolkien e ao livro em si. Tecnicamente falando ela está incorreta, mas isso não muda em nada a grandiosidade da história.