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[L] [Largo Cavafundo][Edifício Novo Mundo]

[Largo Cavafundo][Edifício Novo Mundo]

Não tenho muito o que falar sobre este conto. Acredito (e espero) que ele fala por si só. Mas acho importante dizer o quão delicioso foi escrevê-lo, apesar de algumas partes necessitarem de um pensamento maior.
Boa leitura.

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Edifício Novo Mundo

É um mistério o porquê de os familiares do sujeito terem estranhado quando ele criou raízes bem ali, no meio da sala de estar de seu apartamento, atravessando seu caro tapete persa e vindo a se fixar, graças aos longos ramos de carne, ossos e unhas de pé presos firmemente no chão de sua moradia, também conhecido como o teto da moradia de seu vizinho de baixo (este ocupado demais com seus dois jabutis, que andavam livremente de um lado para o outro da casa, para olhar para cima e notar os ex-dedos). O que não é um mistério e muito menos uma surpresa é que eles, ao invés de se perguntarem por que aquilo acontecera e como reverter o processo – como um leitor ingênuo poderia pensar que eles fariam –, preferiram ignorar o caso. Fecharam, pois, os olhos: o que os olhos não vêem, o coração não sente, mas os pés acabam doloridos de tanto chutar objetos não vistos que acabam jogados por aí.
Mesmo com os tropeções, constantes cortes e manchas roxas, e até machucados mais graves, a família do enraizado continuou a viver ali, com os olhos fechados. Com o tempo, aprenderam, sem perceber, como desviar dos obstáculos que a casa e as crescentes raízes-humanas ofereciam aos pés, faces e troncos, mas sem nunca conseguir removê-los. Quando acontecia de alguém se ferir seriamente, a água com a qual eles se lavavam ajudava a acabar com a dor, apesar de os cortes não cicatrizarem totalmente, já que não havia como conseguir curativos ou anti-sépticos. A comida que tinha na geladeira por sorte não era pouca, resultado das compras do dia anterior à enraização. Durou cerca de uma semana, menos do que poderia ter durado não tivesse a família toda permanecido na casa após fecharem os olhos. Depois, passaram a alimentar-se somente de frutas, das quais o dono da casa parecia gostar bastante, já que havia tantas (na fruteira, em cima da pia, na mesa da cozinha, em toda parte) que parecia que eles não precisariam se preocupar com comida por um bom tempo. E não se preocupar era o que eles melhor sabiam e mais queriam fazer, e nem se perguntaram como que as frutas não acabavam e nem apodreciam após semanas e semanas em que eles ficaram lá.
Como não podia deixar de ser, lembrando que num prédio de apartamentos uma mudança tão intensa num andar não poderia deixar de influenciar os outros, não foram só os moradores daquele apartamento que tiveram que mudar seu estilo de vida. O Vizinho de Baixo continuava a olhar para seus jabutis, mas agora vivia mais tranqüilo, pois eles pareciam ter encontrado em algum lugar umas frutas que não paravam de comer. Não mais tendo que se preocupar com a alimentação dos jabutis, ou com a sua (já que os frutos eram deliciosos), o homem – que já começava a ficar velho e cansado – deitou no sofá e lá ficou, acomodado. Água pingava de uma goteira no teto, diretamente em sua boca. E nem passou por sua cabeça que não fazia sentido haver uma goteira, pois lá fora não chovia, e ainda por cima morava num edifício. Só se levantava para ir ao banheiro, umas cinco vezes ao dia. Numa dessas vezes, despreocupado, pisou num de seus jabutis, matando-o. O outro faleceu alguns dias depois, de tanto comer.
O apartamento de cima foi logo atingido pelos compridos galhos, saídos das mãos do sujeito do andar de baixo. E estes foram tomando conta, numa desesperada conquista de espaço e mais espaço, tomando para si quartos, esticando-se, cozinha, crescendo mais e mais, sala de estar, ramificando-se, sala de jantar, fixando-se, copa, dominando. E tanto espaço eles ocuparam que o Vizinho de Cima teve de ficar no banheiro, sentado na privada tampada, olhando apreensivamente para a porta trancada da qual poderiam, a qualquer instante, surgir violentos galhos feitos da mesma carne humana que o constituía. Atravessaram o chão, nada os impedia de atravessar também aquela frágil porta branca. Magro de fome, os ossos aparecendo depois de algumas semanas nesse estado, passou a ter uma higiene dental perfeita.
Eis que uma hora, era noite como podia-se ver pela diferença de luz através das pálpebras cerradas, um rapaz do apartamento do causador de tudo isso (o do meio, se seguirmos com o ponto de vista usado até aqui) acordou. Não era algo comum, acordar durante a noite, mas neste dia não teve como conter sua necessidade de um copo d’água. A caminho da cozinha, tropeçou em seu próprio pé (a única coisa que não sabia exatamente onde estava, não podendo, portanto, desviar). Com um estrondo – parecia maior por causa do silêncio ao seu redor – caiu de queixo no mesmo tapete persa que havia sido perfurado tanto tempo antes. E ainda permaneceu alguns segundos no chão, imóvel – para que ninguém ache que foi um mero reflexo – antes de abrir os olhos. Sem dúvida outros já o tinham feito, mas rapidamente tornaram a fechá-los e jamais comentaram os deslizes. Mas estes olhos não queriam se deixar fechar. Olhou ao seu redor, e foi mais além, olhou em todos os cômodos, desceu as escadas, olhou os apartamentos de baixo, subiu as escadas, olhou os de cima.
Não foi difícil perceber que a maioria dos tropeções que ainda aconteciam era causada pelas raízes, nos apartamentos abaixo daquele em que morara nos últimos tempos, e pelos galhos, nos apartamentos acima deste mesmo. Mal se percebia que aquelas coisas, que já dominavam todo o prédio, desde o térreo até a cobertura, um dia haviam sido dedos. Ainda havia a pele, ainda havia a carne, o sangue, as unhas, mas tão desfigurados que causavam náuseas. Por todos os aposentos de todas as moradias, algumas frutas apodreciam, outras cresciam grudadas às ramificações do homem. Posso chamar isso de canibalismo, perguntou-se. A água não mais corria pelos encanamentos. O líquido tão precioso com o qual matavam sua sede vinha de dentro das veias do homem. Tinha a mesma coloração da pele dos moradores do edifício, que todos os dias se banhavam com ele, tão contentes.
Pior estavam os banheiros. A pasta marrom amarelada cobria todo o chão, a privada nem aparecia debaixo da montanha feita lá, tal era a diarréia que aquelas frutas causavam. Ninguém nunca se lembra de dar a descarga.
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Re: [Largo Cavafundo][Edifício Novo Mundo]

8O Não sabia que vc podia escrever tão bem... esse seu texto me fez imaginar mesmo tudo que estava acontecendo por lá... e teve a parte que eu achei mais fantástica do texto foi essa aqui:

Magro de fome, os ossos aparecendo depois de algumas semanas nesse estado, passou a ter uma higiene dental perfeita.

Irônico isso, né? Outras partes também ficaram ótimas... o conjunto do texto ficou perfeito...
Queria saber escrever contos como vc... :disgusti:
 
Nossa...Largo e seus contos estranhos, com algumas mensagens implícitas...

Ficou muito bem escrito, porém é preciso atenção redobrada pra se entender o texto. Eu com certeza nunca teria imaginação suficiente pra criar algo parecido, parabéns...
 
Artur,vc me impressiona as vezes 8O

Esse conto é bem estranho...bem interresante...acho que o que eu mais gosto nas suas historias são que vc consegue fazer com que acontecam coisas estranhas como se elas fossem completamente normais...sei lá,faz a gente pensar,"por que o cara começou a virar arvore do nada?","como apareceu um bebe naquela parede"(do "protuberando"),ou "como ninguém fez nada com um cara que virou árvore?"...isso é bem legal nas coisas que vc escreve :wink:
 
Eu acho que esse foi o conto seu que eu mais consegui chegar perto de achar um significado. Mas vou deixar que pensem por vocês mesmos, talvez depois eu escreva. =P

E tá bem escrito (como sempre) e... surreal. :D Tão surreal que provavelmente nem nos meus mais estranhos sonhos cheguei a imaginar algo assim. Aliás, se os sonhos costumam ser mais peculiares do que os nossos pensamentos enquanto estamos acordados, nem consigo imaginar com o que você sonha, Largo. :mrpurple:
 

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