Largo Cavafundo
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[Largo Cavafundo][Só mais um olhar na multidão]
Bem, aqui está mais um texto meu, para não dizerem que eu perdi o ritmo! Por mais bobinho que seja o título, acho que é um pouco mais interessante do que pode parecer a primeira vista.
Sem mais a dizer, só desejo a vocês uma boa leitura!
"
Só mais um olhar na multidão
As portas se abriram diante de meus olhos com o típico chiar dos ônibus paulistanos. Entrei, o primeiro da enorme fileira de pessoas que tentava passar para o interior do veículo no final daquela tarde, todos (inclusive eu) cansados depois de um dia penoso de trabalho. O sono trabalhava com ardor, tentando mergulhar meus olhos em minhas pálpebras, assim como minha mente no mundo do inconsciente. Apesar de minha maior vontade naquela hora ter sido ceder à sonolência, fazê-lo naquele ambiente se mostrava impossível.
Conforme eu ultrapassava a catraca e o cobrador, e imergia na multidão que já começava a se formar no corredor, podia ver mais e mais gente entrando e apertando-se no ônibus, querendo simplesmente poder chegar em casa. Os indivíduos de mais sorte (por ter conseguido sentar-se ou por ter a incrível habilidade de cochilar em pé) mostravam-me a expressão pesada de sono mal-dormido, os olhos fechados mas o cenho franzido.
Foi já no aperto dos corpos encaixados violentamente num espaço pequeno demais que eu senti a pancada, fraca o suficiente para não provocar dor mas forte o suficiente para empurrar-me, na parte de trás de minha cabeça. Vi-me caindo no chão, os corpos das pessoas em minha volta se elevando em meu campo de visão. Aguardei, tentando (sem sucesso) me segurar a algo, o impacto da queda. Mas o impacto não veio, embora as imagens que passavam diante dos meus olhos indicassem que isso deveria ter acontecido.
Depois de alguns segundos gastos na recuperação de minha calma, após um susto destes, percebi uma insolúvel confusão em minha mente, uma contrariedade na imagem que eu fazia da realidade e a realidade que até então se mostrara possível. Tentei focalizar minha atenção para cada um de meus sentidos, ao invés de simplesmente aceitá-los involuntariamente como sempre fizera. Concentrei-me no meu pé, ação que causou maior surpresa ainda, quando percebi que eles sentiam o chão firme debaixo de si, sustentando meu corpo. Meus joelhos e meu quadril sentiam claramente o peso de meu tronco sobre eles. Eu estava de pé.
Mas não meus olhos. Via tudo na horizontal: apenas pés, canelas, chinelos, sapatos, tênis, uma ou outra sacola, pedacinhos de pernas. A contrariedade das mensagens que meus sentidos enviavam a meu cérebro me deixava tonto, estado intensificado pelos chacoalhões do veículo e meu quase irritante cansaço. E foi com muito custo que eu juntei os fatos e concluí a verdade irrefutável. Eu não tinha caído. Mas meus olhos tinham.
Minha primeira reação foi imediata: com as pontas de meus dedos da mão esquerda (estando a direita agarrada ao encosto de um dos bancos do ônibus), apalpei meu rosto, encontrando lentamente o caminho para os meus olhos – ou o lugar onde eles costumavam estar encaixados, pelo menos. Senti, com um suspiro de alívio, que minhas palpebras estavam bem fechadas (provavelmente, pensei eu, uma ação involuntária de minha parte). Temia que a multidão que me rodeava notasse o acontecido. Se minha situação já estava desesperadora, o caos que dezenas de pessoas assustadas podem causar não poderia me ajudar.
Lembrei-me, com a súbita aparição de uma calça púrpura (que talvez tivesse me cegado, tão brilhante era ela, se naquela situação eu pudesse me dar ao luxo de ficar cego), de meu até então mais importante sentido. Analisei as imagens que passavam diante de mim. Minha cabeça se movia de um lado para o outro, tentando ter uma vista melhor do corredor do veículo, não acostumada com a extração de meus globos oculares. Tentei lembrar a aparência de meus sapatos e calças, ao mesmo tempo me esforçando para puxar da memória detalhes sobre as vestimentas daqueles que eu vira ao meu redor poucos instantes antes daquele absurdo mas real acontecimento.
Tive, então, uma idéia. Comecei a mover meus pés, levantando e abaixando meus calcanhares, me sustentando em alguns momentos apenas por meus dedos, em um padrão aleatório. Logo avistei os estranhos sapatos marrons que dançavam tão estranhamente em tão estranho local. Percebendo-me de costas para meus olhos, virei-me com toda a velocidade que o tremer e o chacoalhar do ônibus me permitiam. E foi com a excitação dos que vêm seus problemas a um passo de serem resolvidos que eu avistei minhas mãos se aproximando, se aproximando, impedindo a luz de atingir minhas pupilas. A escuridão causada pelas minhas próprias mãos atrapalhava um pouco meus movimentos, mas aumentava ainda mais a sensação de alívio.
Pernas, braços, gosmas, bancos, luzes, pisos, tênis, sombras, bolsas, vidros, dedos, pêlos, caixas, malas, moscas, o mundo inteiro girava por um período curto mas que me afligiu por uma vida inteira. Todas as imagens rodavam diante de meus olhos, após aquela derradeira imagem, vista apenas pelo cantinho dos olhos. Um pé. E veio, depois da tontura, que veio depois dos giros, que vieram depois do chute, aquela sensação no estômago, uma vontade de desistir, de largar tudo e aceitar as injustiças e ironias da vida com a mesma atitude conformista que eu gostava de criticar nos outros. Uma parte de mim acreditava que eu jamais veria nada de interessante, que meu mundo seria só esse mesmo: pés para o resto da vida. Estava cansado de pés, cansado do chão, cansado daquele universo – pois sim, o chão é todo um universo diferente, um universo onde as pessoas largam o que não querem que pertença ao seu universo, um universo de lixo, insetos e pés.
Cinza, tudo cinza. Tudo o que via era uma superfície cinzenta, sombreada, com a aparência indistinguível do plástico. “Produzido no Brasil” em letras maiúsculas mas pequenas. A concavidade me indicava que aquilo era a parte de baixo de um daqueles bancos nos quais eu sempre costumava sentar-me. Até os bancos no universo-chão eram diferentes, diferentemente horríveis. As sombras confundiam o olhar, era difícil diferenciar dois pontos (mesmo os escritos eu só decifrei depois de um breve período usado para me acostumar com a escuridão, durante o qual minha visão permaneceu irritantemente embaçada). Tentei novamente ignorar minha visão. Me ocupei em calcular onde meus órgãos perdidos deveriam se encontrar. Disfarçadamente, ia apalpando os vãos entre bancos e piso, não sabendo direito onde procurar. Trombei, embaraçosamente, com mais de uma perna. Uma barata passou rapidamente de uma extremidade à outra do banco.
Mais uma vez me senti tombando. Desta vez eu realmente tombava, conseqüência de uma curva brusca do ônibus lotado. Foi graças à massa quase compacta de pessoas ao meu redor que não me estatelei no mesmo chão em que meus olhos novamente rolavam, quase acostumados com a nauseante sensação. Deixaram o espaço debaixo do banco para girar no corredor, ricocheteando nos pés como uma bolinha metálica ricochetea num fliperama. Escuro. O preto total era mais confortável que meu saltitante novo modo de ver as coisas. Mas a aflição de sentir meus olhos tocados por um corpo estranho parecia ser pior que a de senti-los fora de meu rosto. Luz.
Senti falta de minhas pálpebras bloqueando os fótons vindos das lâmpadas amareladas do teto do ônibus. E desejei minhas pálpebras com toda minha mente quando consegui enxergar direito o que estava diante de meus globos oculares. O cabelo loiro claríssimo e lisinho e a boca banguela poderiam dar àquela menina uma aparência engraçadinha, complementada pela risada que só crianças sabem dar. Mas a proximidade do rosto infantil me assustava, proximidade que aumentava gradualmente. E quanto mais próximos estavam a criança e meus olhos, mais eu percebia exatamente de onde eu me aproximava. A garotinha abriu a boca gulosamente.
E me vi. Vi meu corpo, não devia estar a mais de três metros de distância de meus olhos. Distância que parecia bem maior por causa da barreira de gente que eu sabia que haveria de enfrentar se quisesse atingir meus olhos antes de eles virarem uma papa no tubo digestivo de uma criança fofinha. Certifiquei-me de estar indo na direção certa. Parti. Com minhas mãos, afastei os corpos suados e quentes do caminho, possibilitando minha passagem. Me apressei, tropecei, retomei um andar mais calmo. Finalmente, me vi numa distância da qual eu talvez pudesse alcançar meus olhos. Meu pensamento reforçava o ‘talvez’. Tenho de tomar o risco, decidi num milésimo de segundo, percebendo a perigosa proximidade de meus olhos do buraco entre os dentes-de-leite da menina.
Um tapa fez as duas esferas pularem das mãos da criança.
O cheiro do suor das seis da tarde permanecia no ar.
Senti-me cair no chão após o esforço para alcançar o alvo.
Percebi o gosto doce do sangue saindo de uma mordida na minha língua, causada pela queda.
Ouvi o choro agudo da criança que teve o doce tirado de suas mãos.
Vi-me voando rapidamente, o chão se afastando. Vi meu corpo no piso. Vi as pessoas olhando para mim, assustadas. Vi o rosto triste da criança. Vi o teto, quando nele meus olhos bateram. Vi a porta velha do ônibus quando eles escaparam por uma fresta nela. Vi o ônibus se afastar, levando-me com ele. Vi a rua enquanto nela rolavam os órgãos para sempre perdidos. Só não vi o bueiro. O bueiro no qual eles cairam, e onde estão até agora.
E vivo minha vida. Mas assisto sempre, mesmo quando descanso, as vidas monótonas, sempre iguais, dos ratos. Aguardo, ansioso, o apodrecimento completo de meus olhos. O esperado fim de minha visão.
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Bem, aqui está mais um texto meu, para não dizerem que eu perdi o ritmo! Por mais bobinho que seja o título, acho que é um pouco mais interessante do que pode parecer a primeira vista.
Sem mais a dizer, só desejo a vocês uma boa leitura!
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Só mais um olhar na multidão
As portas se abriram diante de meus olhos com o típico chiar dos ônibus paulistanos. Entrei, o primeiro da enorme fileira de pessoas que tentava passar para o interior do veículo no final daquela tarde, todos (inclusive eu) cansados depois de um dia penoso de trabalho. O sono trabalhava com ardor, tentando mergulhar meus olhos em minhas pálpebras, assim como minha mente no mundo do inconsciente. Apesar de minha maior vontade naquela hora ter sido ceder à sonolência, fazê-lo naquele ambiente se mostrava impossível.
Conforme eu ultrapassava a catraca e o cobrador, e imergia na multidão que já começava a se formar no corredor, podia ver mais e mais gente entrando e apertando-se no ônibus, querendo simplesmente poder chegar em casa. Os indivíduos de mais sorte (por ter conseguido sentar-se ou por ter a incrível habilidade de cochilar em pé) mostravam-me a expressão pesada de sono mal-dormido, os olhos fechados mas o cenho franzido.
Foi já no aperto dos corpos encaixados violentamente num espaço pequeno demais que eu senti a pancada, fraca o suficiente para não provocar dor mas forte o suficiente para empurrar-me, na parte de trás de minha cabeça. Vi-me caindo no chão, os corpos das pessoas em minha volta se elevando em meu campo de visão. Aguardei, tentando (sem sucesso) me segurar a algo, o impacto da queda. Mas o impacto não veio, embora as imagens que passavam diante dos meus olhos indicassem que isso deveria ter acontecido.
Depois de alguns segundos gastos na recuperação de minha calma, após um susto destes, percebi uma insolúvel confusão em minha mente, uma contrariedade na imagem que eu fazia da realidade e a realidade que até então se mostrara possível. Tentei focalizar minha atenção para cada um de meus sentidos, ao invés de simplesmente aceitá-los involuntariamente como sempre fizera. Concentrei-me no meu pé, ação que causou maior surpresa ainda, quando percebi que eles sentiam o chão firme debaixo de si, sustentando meu corpo. Meus joelhos e meu quadril sentiam claramente o peso de meu tronco sobre eles. Eu estava de pé.
Mas não meus olhos. Via tudo na horizontal: apenas pés, canelas, chinelos, sapatos, tênis, uma ou outra sacola, pedacinhos de pernas. A contrariedade das mensagens que meus sentidos enviavam a meu cérebro me deixava tonto, estado intensificado pelos chacoalhões do veículo e meu quase irritante cansaço. E foi com muito custo que eu juntei os fatos e concluí a verdade irrefutável. Eu não tinha caído. Mas meus olhos tinham.
Minha primeira reação foi imediata: com as pontas de meus dedos da mão esquerda (estando a direita agarrada ao encosto de um dos bancos do ônibus), apalpei meu rosto, encontrando lentamente o caminho para os meus olhos – ou o lugar onde eles costumavam estar encaixados, pelo menos. Senti, com um suspiro de alívio, que minhas palpebras estavam bem fechadas (provavelmente, pensei eu, uma ação involuntária de minha parte). Temia que a multidão que me rodeava notasse o acontecido. Se minha situação já estava desesperadora, o caos que dezenas de pessoas assustadas podem causar não poderia me ajudar.
Lembrei-me, com a súbita aparição de uma calça púrpura (que talvez tivesse me cegado, tão brilhante era ela, se naquela situação eu pudesse me dar ao luxo de ficar cego), de meu até então mais importante sentido. Analisei as imagens que passavam diante de mim. Minha cabeça se movia de um lado para o outro, tentando ter uma vista melhor do corredor do veículo, não acostumada com a extração de meus globos oculares. Tentei lembrar a aparência de meus sapatos e calças, ao mesmo tempo me esforçando para puxar da memória detalhes sobre as vestimentas daqueles que eu vira ao meu redor poucos instantes antes daquele absurdo mas real acontecimento.
Tive, então, uma idéia. Comecei a mover meus pés, levantando e abaixando meus calcanhares, me sustentando em alguns momentos apenas por meus dedos, em um padrão aleatório. Logo avistei os estranhos sapatos marrons que dançavam tão estranhamente em tão estranho local. Percebendo-me de costas para meus olhos, virei-me com toda a velocidade que o tremer e o chacoalhar do ônibus me permitiam. E foi com a excitação dos que vêm seus problemas a um passo de serem resolvidos que eu avistei minhas mãos se aproximando, se aproximando, impedindo a luz de atingir minhas pupilas. A escuridão causada pelas minhas próprias mãos atrapalhava um pouco meus movimentos, mas aumentava ainda mais a sensação de alívio.
Pernas, braços, gosmas, bancos, luzes, pisos, tênis, sombras, bolsas, vidros, dedos, pêlos, caixas, malas, moscas, o mundo inteiro girava por um período curto mas que me afligiu por uma vida inteira. Todas as imagens rodavam diante de meus olhos, após aquela derradeira imagem, vista apenas pelo cantinho dos olhos. Um pé. E veio, depois da tontura, que veio depois dos giros, que vieram depois do chute, aquela sensação no estômago, uma vontade de desistir, de largar tudo e aceitar as injustiças e ironias da vida com a mesma atitude conformista que eu gostava de criticar nos outros. Uma parte de mim acreditava que eu jamais veria nada de interessante, que meu mundo seria só esse mesmo: pés para o resto da vida. Estava cansado de pés, cansado do chão, cansado daquele universo – pois sim, o chão é todo um universo diferente, um universo onde as pessoas largam o que não querem que pertença ao seu universo, um universo de lixo, insetos e pés.
Cinza, tudo cinza. Tudo o que via era uma superfície cinzenta, sombreada, com a aparência indistinguível do plástico. “Produzido no Brasil” em letras maiúsculas mas pequenas. A concavidade me indicava que aquilo era a parte de baixo de um daqueles bancos nos quais eu sempre costumava sentar-me. Até os bancos no universo-chão eram diferentes, diferentemente horríveis. As sombras confundiam o olhar, era difícil diferenciar dois pontos (mesmo os escritos eu só decifrei depois de um breve período usado para me acostumar com a escuridão, durante o qual minha visão permaneceu irritantemente embaçada). Tentei novamente ignorar minha visão. Me ocupei em calcular onde meus órgãos perdidos deveriam se encontrar. Disfarçadamente, ia apalpando os vãos entre bancos e piso, não sabendo direito onde procurar. Trombei, embaraçosamente, com mais de uma perna. Uma barata passou rapidamente de uma extremidade à outra do banco.
Mais uma vez me senti tombando. Desta vez eu realmente tombava, conseqüência de uma curva brusca do ônibus lotado. Foi graças à massa quase compacta de pessoas ao meu redor que não me estatelei no mesmo chão em que meus olhos novamente rolavam, quase acostumados com a nauseante sensação. Deixaram o espaço debaixo do banco para girar no corredor, ricocheteando nos pés como uma bolinha metálica ricochetea num fliperama. Escuro. O preto total era mais confortável que meu saltitante novo modo de ver as coisas. Mas a aflição de sentir meus olhos tocados por um corpo estranho parecia ser pior que a de senti-los fora de meu rosto. Luz.
Senti falta de minhas pálpebras bloqueando os fótons vindos das lâmpadas amareladas do teto do ônibus. E desejei minhas pálpebras com toda minha mente quando consegui enxergar direito o que estava diante de meus globos oculares. O cabelo loiro claríssimo e lisinho e a boca banguela poderiam dar àquela menina uma aparência engraçadinha, complementada pela risada que só crianças sabem dar. Mas a proximidade do rosto infantil me assustava, proximidade que aumentava gradualmente. E quanto mais próximos estavam a criança e meus olhos, mais eu percebia exatamente de onde eu me aproximava. A garotinha abriu a boca gulosamente.
E me vi. Vi meu corpo, não devia estar a mais de três metros de distância de meus olhos. Distância que parecia bem maior por causa da barreira de gente que eu sabia que haveria de enfrentar se quisesse atingir meus olhos antes de eles virarem uma papa no tubo digestivo de uma criança fofinha. Certifiquei-me de estar indo na direção certa. Parti. Com minhas mãos, afastei os corpos suados e quentes do caminho, possibilitando minha passagem. Me apressei, tropecei, retomei um andar mais calmo. Finalmente, me vi numa distância da qual eu talvez pudesse alcançar meus olhos. Meu pensamento reforçava o ‘talvez’. Tenho de tomar o risco, decidi num milésimo de segundo, percebendo a perigosa proximidade de meus olhos do buraco entre os dentes-de-leite da menina.
Um tapa fez as duas esferas pularem das mãos da criança.
O cheiro do suor das seis da tarde permanecia no ar.
Senti-me cair no chão após o esforço para alcançar o alvo.
Percebi o gosto doce do sangue saindo de uma mordida na minha língua, causada pela queda.
Ouvi o choro agudo da criança que teve o doce tirado de suas mãos.
Vi-me voando rapidamente, o chão se afastando. Vi meu corpo no piso. Vi as pessoas olhando para mim, assustadas. Vi o rosto triste da criança. Vi o teto, quando nele meus olhos bateram. Vi a porta velha do ônibus quando eles escaparam por uma fresta nela. Vi o ônibus se afastar, levando-me com ele. Vi a rua enquanto nela rolavam os órgãos para sempre perdidos. Só não vi o bueiro. O bueiro no qual eles cairam, e onde estão até agora.
E vivo minha vida. Mas assisto sempre, mesmo quando descanso, as vidas monótonas, sempre iguais, dos ratos. Aguardo, ansioso, o apodrecimento completo de meus olhos. O esperado fim de minha visão.
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