Uma dúvida, li Dom Quixote com uma diferença de quase um ano entre o volume 1 e 2, mas nesse caso o primeiro livro foi escrito pensando em terminar a história nele mesmo e o segundo foi uma continuação que a princípio não havia necessidade. Isso ocorre também com Guerra e Paz, ou vocês recomendam ler a obra toda de uma vez só?
Koalla, acredito que o melhor a fazer é ler todo o livro em sequencia. Não se preocupe em ler ele todo com uma atenção de crítico-literário; não: apenas leia. Em certas partes você até vai ficar com sono, e em outras vai estar tão interessado que vai querer ler com uma velocidade voraz, apenas para chegar ao fim dos acontecimentos do capítulo ou da cena, mas que seja: deixe a leitura fluir com naturalidade, leia cada dia um pouco, e vá seguindo em frente. Você vai receber, ao fim da leitura, uma das maiores recompensas estéticas de toda a sua vida. Guerra e Paz é considerado por muitos o maior romance (ou mesmo o maior livro) de todos os tempos, e acredito que tal opinião não seja exagerada. Não tente ler alguns pedaços e então largar o livro, pois assim você não vai ter uma ideia geral de sua grandeza.
Sabia que Guerra e Paz começou a sair, em primeiro lugar, como um folhetim? Saia no jornal, em capítulos. No entanto as pessoas estavam criticando o livro (diziam que só mostrava a condessa fulana tomando chá e conversando com o conde beltrano), e isso motivou Tolstói a abandonar o folhetim e a publicar o volume todo de uma só vez: ele queria que as pessoas não fossem tendo apenas migalhas de percepção da obra, mas que vislumbrassem de uma vez por todas em sua maravilhosa integridade. Na realidade, a própria esposa de Tolstói, ao começar a ler os manuscritos do autor, julgou que a obra seria apenas um amontoado de pessoas fúteis (condes, lordes, condessas, barões); no entanto, após ler mais e mais, ela percebeu que seu marido estava criando uma obra genial, e passou a amar ajudá-lo em sua tarefa heróica (só mesmo o amor a daria forças para copiar mais de 7 vezes os rascunhos desse enorme e gordo livro).
Para lhe dar uma ideia do que você vai encontrar em Guerra e Paz, quero citar aqui algumas palavras de um crítico russo (Strakhov) tecidas quando o romance saiu pela primeira vez (na íntegra):
"Que massa de material e que equilíbrio! Nenhuma outra literatura do planeta nos oferece nada comparável. Milhares de personagens, milhares de cenas, o mundo do governo e da família, da história, da guerra, cada momento da vida humana, desde os primeiros choros do bebê recém-nascido até o último jorro de sentimento de um patriarca que morre...E no entanto nenhuma das pessoas é escondida por qualquer outra, nenhuma cena ou impressão é estragada por nenhuma outra; tudo é claro, tudo é harmonioso, tanto nas partes individuais como no todo..."
Eu já li com prazer Guerra e Paz (algumas partes eu já li várias e várias vezes), e concordo plenamente com Strakhov: milhares de personagens, milhares de cenas, milhares de situações. Somos apresentados a soldados; a membros da alta sociedade; a condes; a princesas; ao imperador da Rússia; a corte do imperador da Rússia; a Napoleão; aos generais de Napoleão; ao general russo Kutuzov; aos auxiliares do general russo Kutuzov; a mulheres belas e fúteis; a mulheres feias e pensativas; a mulheres de seios perfeitos, de cintura pequena e fartos quadris, que todos os homens desejam; a fanáticos religiosos; a sábios religiosos; a jovens jogadores (de cartas e dados); a jovens estudiosos e envergonhados; a playboys belos e ricos, que adoram fazer festas e esbanjar dinheiro; a moças alegres e saltitantes; a velhos amargurados; a velhos festeiros; a velhas e experientes solteironas; a homens de guerra secos e incapazes de atuar em sociedade; a homens de guerra orgulhosos e famintos por dominar a sociedade; a camponeses pobres e ignorantes; a camponeses dotados de experiência de vida; a moradores da cidade humildes e sujos; a moradores da cidade violentos e com moral podre; a crianças; a bebês; a adolescentes. Do primeiro choro, dos primeiros grunhidos e gemidos de um recém-nascido até os últimos pensamentos no cérebro cansado de um patriarca moribundo: toda essa vida desfila pelas páginas de Guerra e Paz. E seu desfile é apresentado em uma inigualável riqueza de detalhes, pois nada escapa aos olhos de Tolstói, a suas imensas córneas: todos seus personagens são dissecados, todos têm sua anatomia exposta com perfeita clareza, com rigor matemático. Jamais se produziu um romance mais vasto, mais abrangente, mais completo. É uma obra que é fruto de uma série de condições perfeitas, porém que dificilmente ocorrem em conjunto: um homem inteligente; um homem experiente; um homem ambicioso; um homem dedicado; um homem trabalhador; um homem obsessivo; um homem rico, sem necessidade de trabalhar; um homem dotado de tempo de sobra; um homem com uma esposa inteligente, esforçada, faminta por motivar; um homem psicologicamente forte; um homem dotado de nervos de aço; um homem infatigável. Todas essas características se juntaram para que Guerra e Paz fosse gerado; é uma obra de uma abrangência jamais igualada em literatura (a não ser pela junção das obras de Shakespeare, que, se unidas, superam até mesmo a abrangência de Tolstói).
Portanto, meu humilde conselho é que você leia a obra inteira. Pode confiar em mim: depois que ela o absorver, você vai sentir um enorme prazer em continuar acompanhando o material (a não ser pelos capítulos chatos e descartáveis onde Tolstói fica ruminando sua teoria sobre como a história funciona; Tolstói é um maravilhoso escritor, mas não é um filósofo muito profundo e pensador organizado).
Abraços,
Matheus Spier:traça: