[size=xx-large]Solidão[/size]
[size=large]O Propósito[/size]
O toldo era verde como ele tinha pedido. Era segunda de manhã, e os empregados da construtora que contratara iam embora pela última vez. A casa estava pronta e aquela era a última peça que faltava.
A esposa ainda não tinha chegado de uma ida ao centro para resolver os últimos detalhes de um problema que tinham tido na lua-de-mel. Aviões, hotel, uma bebida que cobraram indevidamente. Isignificâncias que eram suficientemente importantes para não poderem ser consideradas irrelevantes aos olhos da mulher.
Quanto a ele, era segunda de manhã e não tinha nada a fazer. Sentou-se à sombra nova, no chão, perna de índio, beira da piscina, e contemplou o que podia pela primeira vez chamar de seu. Ansiava a sensação de posse, sonhada desde quando criança, que deveria liberá-lo de todas as preocupações. Achava que as inseguranças sumiriam assim que tivesse algo realmente dele. Um refúgio, um pequeno lugar do mundo, algo que o tornasse, enfim, homem. Engraçado que não era assim que se sentia. A casa estava pronta e o prazo que havia dado a si para que não houvesse mais problemas passara. As preocupações, por outro lado, tomavam ares eternos. Coçou a cabeça e nem isso o consolou. Não, não estava ficando careca, por mais que achasse que devia, depois de tamanha aporrinhação. Ele era como a mulher, afinal, preocupando-se com suas bobeiras. Levantou-se, abriu a porta de correr, entrou na sala com os pés sujos de lama, serviu duas doses de uísque, um doze anos e um vinte e um anos, presentes de casamento. Tomava um gole de um seguido de um gole do outro, misturando, com bochechos, os dois na boca. Os sabores do tempo eram indistinguíveis. Mais duas doses, dessa vez ambas do mais barato. Colocou um copo em cima da mesa de centro, em cima de um belo descanso de copo de vidro, outro presente. Olhou para frente e respirou fundo.
- “Sabe de uma coisa? Acabou.” Falou mexendo o copo de uísque, um cacoete que aprendera com o pai.
- “Acabou. É isso aí. Passou.”
As bebedeiras da faculdade, que podia contar nos dedos – mas disso não se lembrou, vieram nostalgicamente à sua cabeça como um tempo perfeito perdido para sempre. Seus amigos: todos casados. Todos com mais de trinta. O Augusto e o Jorge até com filhos, meu Deus. O baixo elétrico encostado na parede do sótão, as cordas enferrujadas, desafinadas. O amplificador com as válvulas por trocar há mais de cinco anos. Os CDs, o rock, os livros do curso de francês, tudo em caixas, escondidas no sótão. A vida dele, ou tudo que havia de bom nela, mofava num cômodo escuro.
Teve medo de se trancar no sótão, também. Mas era aquilo, o sonho, a meta, estava tudo ali, no toldo. E era tudo tão bobo. Insosso. Pegou o telefone. Marcar um churrasco, um futebol. Alguma coisa. Deixar um pouco de sol entrar no sótão, abrir as janelas. Pensou em quem convidar. O tom do telefone logo virou o barulho recorrente de ocupado. Ninguém podia, e ele sabia. Não ousou ligar para ninguém. Esqueceu o telefone fora do gancho.
A quinta dose de uísque veio amarga.
Olhou o videogame embaixo da televisão, o pivô de algumas discussões acaloradas sobre maturidade, prioridade e o que é perda de tempo. Não tinha vontade de jogar.
Queria um novo sonho, e o que era para ser uma distração só abriria mais o buraco em que se encontrava. E era um buraco complicado. Daqueles buracos cantados somente em poesias e prosas misteriosas, que usavam palavras como “diáfano”, das quais nunca apreendera sentido algum. Agora, somente, sentia perfeitamente tudo aquilo que lera inúmeras vezes buscando significado e explicação racional. O buraco era grande, fundo, escuro. A imagem clichê deixava de ser imagem, deixava de ser palavra. Era um sentimento palpável e pesado. Olhava as mãos e as sentia. Igualmente pesadas. Estupidamente inúteis.
Era para isso que havia trabalhado tanto. E esse era o fim. Realizara o sonho, mas não se sentia nem um pouco realizado. Esperava que, ao se casar, ao conseguir comprar, com seu dinheiro, uma casa de revista, três andares, piscina, quintal grande, churrasqueira, dois labradores e um vira-lata, fosse se sentir mais completo, mais cheio. Mas era como se lhe tivessem arrancado uma muleta. Era o cachorro, daquelas corridas inglesas, solto na pista, arquibancadas lotadas, mas sem o coelho que girava na parte interna do circuito, e que o faria correr feito um louco. Queria correr feito um louco.
Foi buscá-lo no sótão. Abriu a porta que dava para o único cômodo na casa não decorado por um arquiteto. As caixas empilhavam-se. Viu o case preto do baixo. Abriu-o com cuidado, procurando, a qualquer momento, achar o deslumbramento que há muito fugira de seu mundo. Ele era o mesmo, sunburn, Fender, pesado, bonito. Desceu para pegar um banquinho e voltou correndo como uma criança, com o banco na mão. No meio da escada ouviu a voz: “não corre com coisa pontuda na escada! Você que furar a barriga e fazer com que eu tenha que te levar prum hospital?” Diminuiu o passo. Colocou o banco no meio do sótão. Agora faltava o cabo. Abriu a primeira caixa que viu. Deparou-se com o vestido de debutante de sua mulher, junto de fotos de amigas e da viagem-presente de quinze anos que ela havia ganhado dos pais. Olhou cada um dos álbuns que achou, foto por foto, que já iam aos poucos ficando amarelas. Não conhecia a mulher naquela época, mas sentia que ela era igual a ele. Os olhos marearam-se, não sabia por quê.
Jogou tudo de volta na caixa e continuou a busca pelo cabo do baixo. Achou-o embaixo de um cartão de uma ex-namorada, sumida de seus pensamentos por um tempo tão grande que o surpreendeu. Riu das juras de amor, já retificadas e corrigidas pelo tempo. Largou o cartão no chão e voltou ao seu objetivo primário. Tentou afinar, de ouvido, o baixo, sem ligá-lo, mas não conseguia mais. Olhou para o amplificador para encaixar o cabo, e se lembrou das válvulas queimadas enquanto ainda fazia faculdade. Nunca tivera tempo, nunca arranjara tempo, para comprar outras. Se fosse tocar, teria que se contentar com o baixíssimo som que saía da corda vibrando sem nenhum tipo de amplificação. Posicionou o baixo em sua perna direita, e ficou parado assim por algum tempo. Não lembrava que músicas sabia tocar. Riu. Acreditava que, assim que se lembrasse do nome de alguma, as mãos assumiriam o controle e ele a tocaria inteira. Mas não vinha nenhuma à cabeça. Tocou Come as you are, enquanto tentava se lembrar de outra coisa.
Na terceira vez que repetia o riff, ouviu barulhos na escada. Ouviu a mulher chamar seu nome. Deixou o baixo no chão e todo o resto largado e bagunçado do jeito que estava. Desceu as escadas correndo.
Encontrou-a com algumas sacolas de compras na sala. Chegou perto, olhou-a, e passou o dedo indicador delicadamente pelo cabelo da esposa, colocando-o por trás da orelha, enquanto com a outra mão apertava firmemente a mão direita de sua mulher, que sorria uma branquidão indiferente aos minutos que ele passara sozinho em casa.
- “Você é meu coelho.” Ele disse baixinho. E abraçou-a para que ela nunca mais o deixasse só.
A de C
___________________________________________________________
Um conto antigo, revisado graças ao maravilhoso frio que me tranca em casa, aqui de Curitiba.
Opiniões, críticas, elogios rasgados, xingamentos gratuitos, é tudo bem vindo.
Leiam, e já serei grato. É legal saber como que um texto seu é visto e entendido por outros. Ainda mais quando, entre esses "outros", existem escritores bem competentes e talentosos.
[size=large]O Propósito[/size]
O toldo era verde como ele tinha pedido. Era segunda de manhã, e os empregados da construtora que contratara iam embora pela última vez. A casa estava pronta e aquela era a última peça que faltava.
A esposa ainda não tinha chegado de uma ida ao centro para resolver os últimos detalhes de um problema que tinham tido na lua-de-mel. Aviões, hotel, uma bebida que cobraram indevidamente. Isignificâncias que eram suficientemente importantes para não poderem ser consideradas irrelevantes aos olhos da mulher.
Quanto a ele, era segunda de manhã e não tinha nada a fazer. Sentou-se à sombra nova, no chão, perna de índio, beira da piscina, e contemplou o que podia pela primeira vez chamar de seu. Ansiava a sensação de posse, sonhada desde quando criança, que deveria liberá-lo de todas as preocupações. Achava que as inseguranças sumiriam assim que tivesse algo realmente dele. Um refúgio, um pequeno lugar do mundo, algo que o tornasse, enfim, homem. Engraçado que não era assim que se sentia. A casa estava pronta e o prazo que havia dado a si para que não houvesse mais problemas passara. As preocupações, por outro lado, tomavam ares eternos. Coçou a cabeça e nem isso o consolou. Não, não estava ficando careca, por mais que achasse que devia, depois de tamanha aporrinhação. Ele era como a mulher, afinal, preocupando-se com suas bobeiras. Levantou-se, abriu a porta de correr, entrou na sala com os pés sujos de lama, serviu duas doses de uísque, um doze anos e um vinte e um anos, presentes de casamento. Tomava um gole de um seguido de um gole do outro, misturando, com bochechos, os dois na boca. Os sabores do tempo eram indistinguíveis. Mais duas doses, dessa vez ambas do mais barato. Colocou um copo em cima da mesa de centro, em cima de um belo descanso de copo de vidro, outro presente. Olhou para frente e respirou fundo.
- “Sabe de uma coisa? Acabou.” Falou mexendo o copo de uísque, um cacoete que aprendera com o pai.
- “Acabou. É isso aí. Passou.”
As bebedeiras da faculdade, que podia contar nos dedos – mas disso não se lembrou, vieram nostalgicamente à sua cabeça como um tempo perfeito perdido para sempre. Seus amigos: todos casados. Todos com mais de trinta. O Augusto e o Jorge até com filhos, meu Deus. O baixo elétrico encostado na parede do sótão, as cordas enferrujadas, desafinadas. O amplificador com as válvulas por trocar há mais de cinco anos. Os CDs, o rock, os livros do curso de francês, tudo em caixas, escondidas no sótão. A vida dele, ou tudo que havia de bom nela, mofava num cômodo escuro.
Teve medo de se trancar no sótão, também. Mas era aquilo, o sonho, a meta, estava tudo ali, no toldo. E era tudo tão bobo. Insosso. Pegou o telefone. Marcar um churrasco, um futebol. Alguma coisa. Deixar um pouco de sol entrar no sótão, abrir as janelas. Pensou em quem convidar. O tom do telefone logo virou o barulho recorrente de ocupado. Ninguém podia, e ele sabia. Não ousou ligar para ninguém. Esqueceu o telefone fora do gancho.
A quinta dose de uísque veio amarga.
Olhou o videogame embaixo da televisão, o pivô de algumas discussões acaloradas sobre maturidade, prioridade e o que é perda de tempo. Não tinha vontade de jogar.
Queria um novo sonho, e o que era para ser uma distração só abriria mais o buraco em que se encontrava. E era um buraco complicado. Daqueles buracos cantados somente em poesias e prosas misteriosas, que usavam palavras como “diáfano”, das quais nunca apreendera sentido algum. Agora, somente, sentia perfeitamente tudo aquilo que lera inúmeras vezes buscando significado e explicação racional. O buraco era grande, fundo, escuro. A imagem clichê deixava de ser imagem, deixava de ser palavra. Era um sentimento palpável e pesado. Olhava as mãos e as sentia. Igualmente pesadas. Estupidamente inúteis.
Era para isso que havia trabalhado tanto. E esse era o fim. Realizara o sonho, mas não se sentia nem um pouco realizado. Esperava que, ao se casar, ao conseguir comprar, com seu dinheiro, uma casa de revista, três andares, piscina, quintal grande, churrasqueira, dois labradores e um vira-lata, fosse se sentir mais completo, mais cheio. Mas era como se lhe tivessem arrancado uma muleta. Era o cachorro, daquelas corridas inglesas, solto na pista, arquibancadas lotadas, mas sem o coelho que girava na parte interna do circuito, e que o faria correr feito um louco. Queria correr feito um louco.
Foi buscá-lo no sótão. Abriu a porta que dava para o único cômodo na casa não decorado por um arquiteto. As caixas empilhavam-se. Viu o case preto do baixo. Abriu-o com cuidado, procurando, a qualquer momento, achar o deslumbramento que há muito fugira de seu mundo. Ele era o mesmo, sunburn, Fender, pesado, bonito. Desceu para pegar um banquinho e voltou correndo como uma criança, com o banco na mão. No meio da escada ouviu a voz: “não corre com coisa pontuda na escada! Você que furar a barriga e fazer com que eu tenha que te levar prum hospital?” Diminuiu o passo. Colocou o banco no meio do sótão. Agora faltava o cabo. Abriu a primeira caixa que viu. Deparou-se com o vestido de debutante de sua mulher, junto de fotos de amigas e da viagem-presente de quinze anos que ela havia ganhado dos pais. Olhou cada um dos álbuns que achou, foto por foto, que já iam aos poucos ficando amarelas. Não conhecia a mulher naquela época, mas sentia que ela era igual a ele. Os olhos marearam-se, não sabia por quê.
Jogou tudo de volta na caixa e continuou a busca pelo cabo do baixo. Achou-o embaixo de um cartão de uma ex-namorada, sumida de seus pensamentos por um tempo tão grande que o surpreendeu. Riu das juras de amor, já retificadas e corrigidas pelo tempo. Largou o cartão no chão e voltou ao seu objetivo primário. Tentou afinar, de ouvido, o baixo, sem ligá-lo, mas não conseguia mais. Olhou para o amplificador para encaixar o cabo, e se lembrou das válvulas queimadas enquanto ainda fazia faculdade. Nunca tivera tempo, nunca arranjara tempo, para comprar outras. Se fosse tocar, teria que se contentar com o baixíssimo som que saía da corda vibrando sem nenhum tipo de amplificação. Posicionou o baixo em sua perna direita, e ficou parado assim por algum tempo. Não lembrava que músicas sabia tocar. Riu. Acreditava que, assim que se lembrasse do nome de alguma, as mãos assumiriam o controle e ele a tocaria inteira. Mas não vinha nenhuma à cabeça. Tocou Come as you are, enquanto tentava se lembrar de outra coisa.
Na terceira vez que repetia o riff, ouviu barulhos na escada. Ouviu a mulher chamar seu nome. Deixou o baixo no chão e todo o resto largado e bagunçado do jeito que estava. Desceu as escadas correndo.
Encontrou-a com algumas sacolas de compras na sala. Chegou perto, olhou-a, e passou o dedo indicador delicadamente pelo cabelo da esposa, colocando-o por trás da orelha, enquanto com a outra mão apertava firmemente a mão direita de sua mulher, que sorria uma branquidão indiferente aos minutos que ele passara sozinho em casa.
- “Você é meu coelho.” Ele disse baixinho. E abraçou-a para que ela nunca mais o deixasse só.
A de C
___________________________________________________________
Um conto antigo, revisado graças ao maravilhoso frio que me tranca em casa, aqui de Curitiba.
Opiniões, críticas, elogios rasgados, xingamentos gratuitos, é tudo bem vindo.
Leiam, e já serei grato. É legal saber como que um texto seu é visto e entendido por outros. Ainda mais quando, entre esses "outros", existem escritores bem competentes e talentosos.