Para compreender melhor o mundo funk carioca, é preciso fazer uma abordagem interpretativa (GEERTZ, 1992)1 no seu principal locus, a festa funk. É preciso entender como esta festa de exaltação da violência e da quebra das regras estabelecidas da convivência têm a música e a violência como eixo fundamentais. Pensar o mundo funk como propagador da violência é relativizar a permanente negociação e interação entre os grupos rivais no que diz respeito a recriação dos códigos de violência no âmbito do lazer e da sociabilidade juvenil.
Estes são movimentos de contestação, mesmo que orientados para a produção de mais violência, onde a postura do grupo predomina em detrimento da postura individual. E é com este posicionamento agressivo, como a ponta de um iceberg, que a festa funk demonstra a representação de processos simbólicos que organizam a vida social nas favelas, de onde a grande maioria dos funkeiros são oriundos.
Contemporaneamente, podemos observar como a cultura espontaneamente produzida pelos indivíduos vem sendo utilizada como um meio para o alcance de objetivos de determinados segmentos de nossa sociedade.
Desde os primórdios da história o processo de dominação de uma classe social por outra não se dá somente pela ação coercitiva dos exércitos. Para concretizar novos domínios era preciso desestruturar culturalmente os povos dominados (VASCONCELOS, 1993, p. 22)2 . Desta forma ataca-se a identidade original do povo para que este assuma a identidade do dominador. As manifestações da cultura corporal se revelam vítimas desse contexto, onde a originalidade de seu conteúdo, advinda da produção da sociedade, é de diferentes formas moldada de acordo com o interesse sócio-político-econômico dos grupos que detém o poder.
O Movimento Funk, enquanto expressão cultural, se encaixa neste raciocínio, sendo hoje alvo garantido dos veículos da comercialização3 .
Conforme já citado, o funk emergiu inicialmente como forma contestatória de determinado segmento social, num nítido exemplo de um cultura produzida espontaneamente pelos indivíduos. No entanto, passo a passo a ação da indústria cultural vem subvertendo esta manifestação segundo seus interesses comerciais e ideológicos. Assim, estabelece-se um processo de pseudo-democratização deste gênero cultural, onde:"Longe de 'democratizar' um bem cultural, a indústria cultural, ao produzir ou reproduzi-lo (em série), tornando-o acessível a todos, passa a oferecê-lo, juntamente com sabonetes, automóveis, sapatos e outros produtos de consumo, descaracterizando-o, utilizando-o para vedar os olhos do consumidor, distorcer sua percepção, embalá-lo em ilusões , subverter seu senso crítico" (FREITAG, 1987, p. 57)4 .
Para além da descaracterização da originalidade da cultura comercializada, a indústria cultural alcança seu maior intento quando, pela subversão cultural, promove em larga escala a inibição do senso crítico, trabalhando na trilha da amortização social, uma vez que,
"O produto (original ou reproduzido) da indústria cultural visa, em suma, entorpecer e cegar os homens da moderna sociedade de massa, ocupar e preencher o espaço vazio deixado para o lazer, para que não percebam a irracionalidade e injustiça do sistema capitalista, no qual estão inseridos como marionetes, atuando no interesse da perpetuação ad infinitun das relações de produção alienantes e exploradoras. A indústria cultural preenche assim sua função por excelência, de seduzir as massas para o consumo, para que esqueçam a exploração que estão sofrendo nas relações de produção" (ibid., p. 57).
Nesse processo de perda de identidade, as manifestações de violência no funk se acirraram ainda mais.
No entanto, mesmo a despeito da atuação da indústria cultural, ainda é possível encontramos em algumas comunidades do Rio de Janeiro uma prática 'funkeira' que busca manter as tradições de originalidade do movimento, estabelecendo o que poderíamos considerar uma cultura de resistência.
Entendemos que a existência desta cultura de resistência pode nos possibilitar o resgate de uma série de valores críticos oriundos da produção original do funk, constituindo-se a escola pública locus privilegiado para a discussão deste enfoque.