Skylink
Squirrle!
Prefácio:
Esta é uma história antiga, de um tempo em que o mundo ainda era jovem - um lugar onde todos os tipos de magias e sonhos eram possíveis. De uma terra onde as lendas se descortinavam por entre o cotidiano das pessoas; uma época fantástica e maravilhosa, cujo legado que nos resta resume-se apenas a velhas fábulas e contos...
Jóias turvas
Havia, há muito tempo atrás, um famoso general chinês chamado Serpente Celeste. Era ele um dos mais nobres servidores do imperador da China naqueles tempos, logo após a completa unificação do gigantesco império; e fora ele um dos maiores responsáveis pela vitória do reino de Qin sobre todos os demais, naquela que ficou conhecida como a última guerra dos tempos de outono e primavera.
E eis que o mundo florescia desde então, com a reunião de tudo sob o céu afinal completa. Mas sua fama ainda o precedia por todo o mundo, e era com louvor e um pequeno temor ressentido que as pessoas o saudavam e reconheciam durante sua passagem pelos diversos territórios do imperador.
Após a derradeira batalha, por conta dos hábitos do tempo, Serpente Celeste fora deixando gradualmente para trás as marcas do passado; perdendo lentamente, ao longo dos anos, o brilho viperino de seus olhos e o fogo que consumia seu espírito antes das batalhas. Voltara para sua família perto dessa época, encontrando-se enfim com seus dois filhos – um menino e uma menina – então com nove anos e oito anos de idade.
A esposa o esperava em completa deferência e reverência, aguardando por sobre os mantos da formalidade aquele que seria o momento propício para agracia-lo com seus encantos - relembra-lo então de toda a saudade e solidão que sentira, ama-lo e delicia-lo durante um momento eterno por sobre o reflexo da luz das estrelas em seu leito, como há tempos não podia realizar.
As crianças sorriam, encantadas com a volta daquele que há tanto tempo não viam. Seus olhos brilhavam ante a nobre carruagem, tão grande e coberta por seda vermelha, rodeada de potes de porcelana cheios de enfeites dourados e parada em frente ao seu lar – um antigo e bem cuidado casarão de madeira vermelha, com dezenas de criados e vastas áreas de estar.
Serpente Celeste se rendeu a abraça-los e afaga-los, distribuindo-lhes tão logo quanto pôde os mágicos presentes que trouxera de suas viagens com todos os que estavam ali – entre eles, haviam glóbulos de cristal que resplandeciam como diamantes, e no entanto eram maleáveis e praticamente inquebráveis (embora pudessem ser furados); bonecas que se moviam e quase chegavam a falar quando o desejo a sua volta era muito forte; fogos de artifício que se multiplicavam por mil cores e formas em volta das pessoas, e não queimavam ou machucavam.
Sua amada ganhou um belíssimo espelho adornado de esmeraldas, e um pente mágico com um rubi na ponta que lhe arrumava os cabelos ao sinal do menor desejo. Sua esposa aparecia com um colar de madrepérolas, envoltas por entre os mantos de um branco exuberante que esvoaçavam pelas escadas, enquanto seu filho brincava no andar inferior com sua incrível e veloz espada de prata, que soltava faíscas brilhantes a cada novo golpe.
Um beijo doce e cálido foi a resposta dela ante o volteio de Serpente Celeste, que a fitou silenciosamente com seus olhos esverdeados . A luz das tochas refletiu-se de forma amena por sobre o nácar multicolor do colar, iluminando com um arco-íris a grande sala de tapeçarias e poltronas, enquanto ele tentou comentar com ela sobre a última missão que o imperador lhe havia incumbido; mas foi desarmado por um único dedo em seus lábios.
As vestes negras dele tragaram a luminosidade enquanto seus olhos se acendiam e ambos subiam para o quarto. O cheiro de incenso pairava pelo ar; almofadas douradas se espalhavam pela cama carmim e pelo tapete arenoso enquanto eles sucumbiam por longas horas ao mais puro êxtase carnal.
Serpente Celeste logo deixou-se adormecer, ao passo que sua esposa permaneceu a observar o brilho de seus olhos abertos e a acariciar seus cabelos escuros. Seu corpo tropeçou pelo limiar intermitente dos mais profundos sentimentos, que surge quando estes são satisfeitos, e ela também se deixou adormecer e sonhar; com seu marido, com seu único amado.
Os olhos dele moveram-se pela manhã, então despertos, e fitaram o sorriso extasiado de sua esposa, que suspirava e dormia profundamente ao seu lado. Moveu-se com calma enquanto ouvia o cantar dos pássaros, sentindo a luz tênue do sol passar através do filtro de cristal do teto e escolhendo deixar sua mulher aproveitar os próprios sonhos enquanto ele se ausentava.
Passou pelo quarto do filho, que dormia agarrado à sua fantástica espada de brinquedo, e viu-o se remexer mormente por entre as cobertas, provavelmente lutando contra seres fantásticos. Deixou-o em sua batalha particular, passando pela filha e observando-a dormir agarrada com o travesseiro; seus longos cabelos envoltos num brilho mágico enquanto ela vagava pelo mundo onírico.
Desceu mais um lance de escadas, chegando afinal à sala de entrada principal e saindo pelo resplandecente portão de safiras incrustadas. Passou de forma rápida pelos camponeses que encontrava pelas ruas e que o saudavam, indo em direção ao oeste da cidade. Seguiu por uma estrada sinuosa por um longo tempo, até que simplesmente virou-se e desapareceu por entre as árvores ao seu lado.
Parou, penetrando além dos limites do mundo conhecido e observando ao redor. Uma pequena colina se erguia suntuosa e altiva no centro de uma rosa dos ventos formada por gigantescas montanhas. Montes de figuras de preto e branco agitavam-se ao lado dela, tentando continuamente entrar em formação.
Encontrou-se lá com o mestre de obras, que arregimentara a seu pedido um verdadeiro batalhão de construtores e apenas aguardava suas ordens para começar a construção da torre mágica. Esta, por sua vez, era um último pedido do imperador; um pedido que selaria, num distante futuro, a chave de uma grande revolução, segundo o que proclamaram os oráculos e os seus próprios sentimentos.
Olhou para os homens com seu olhar avaliador. Os trabalhadores engoliram em seco, sentindo-se ansiosos e temerosos enquanto ele varria o corpo de infantaria, composto por habilidosos pintores, grandes escultores, renomados marceneiros e mágicos pedreiros. Moveu a mão subitamente, autorizando enfim o começo e ouvindo os homens bradarem seus gritos de entusiasmo.
Saiu ao som de aplausos, olhando para a colina pelo canto dos olhos, e sentindo-se satisfeito. O monte verdejante ficou para trás, com suas quatro depressões lotadas de pequenos pontos que se moviam. A incomparável formação rochosa que o circundava também foi deixada, com um simples passo que o tragou de volta para as árvores à beira da simples estrada.
Voltou novamente para casa, encontrando o desjejum posto sobre a mesa. Sua esposa sorria, e as crianças se deliciavam com o farto café da manhã. Tentou mais uma vez comentar sobre sua missão, mas ela não quis ouvir. Comeram em silêncio, logo após indo cada um se ocupar de suas atividades.
Serpente Celeste treinava com seus discípulos, como nos velhos tempos, enquanto ela se ocupava de ornar e produzir arranjos florais. Seu filho o acompanhava entusiasmado, destacando-se então no manejo da espada; e sua filha seguia o mesmo caminho das artes que a mãe, pintando diversos quadros belíssimos, embora, como ela, também houvesse aprendido a manejar armas.
Os dias seguiram-se assim, calmos e amenos, exceto pelo fato de Serpente Celeste nunca conseguir uma oportunidade de contar a sua esposa sobre a torre. O trabalho desta, porém, avançava a grande velocidade, estando provavelmente concluída em cerca de sete anos.
E esses anos passaram-se quase num piscar de olhos, apesar de os seus ainda permanecerem os mesmos. Seus filhos haviam crescido, não tendo as memórias da infância nubladas como as dele, e sua esposa havia tornado-se ainda mais bela com o passar do tempo. As obras da torre se aproximavam da etapa final, com suas escadarias sendo forradas com as mais diversas sedas, e seu estelar pináculo de diamantes sendo então preparado para refletir a luz das estrelas.
Serpente Celeste sentia-se quase satisfeito, apesar de ainda perceber um vago abismo na alma para o qual não encontrava explicação. Distraía-se atribuindo-o aos seus anos de guerra, à sua infância infeliz, e continuava a levar sua vida da melhor maneira possível. Mas a sensação continuava, apesar de tudo, e ele vagava muitas vezes em busca da explicação. Entretanto, em certos momentos ele esquecia completamente disso. Esses momentos não eram raros, e aconteciam especialmente no tempo em que passava junto de seus filhos.
Um dia, porém no outono do sexto ano, em mais uma de suas vistorias nos acabamentos da torre, ele acabou dando um passo em falso no caminho. Caiu por um longo tempo, notando o universo se alargar e distanciar em torno de si numa confusão sem fim por várias horas. Mas enfim, tudo parou; a luz surgiu, e após um curto período de tempo ele conseguiu abrir os olhos novamente.
Estava num arco de árvores, rodeado de delicadas flores e próximo a um pequeno lago. Sobre o círculo de água, uma figura cinzenta pairava, saltando por entre os juncos negros de forma extremamente graciosa. Serpente Celeste aproximou-se, lembrando-se das magníficas fadas que guardava em aquários dentro de sua casa e desejando-a para si.
Ela, no entanto, revelou-se uma simples jovem perdida, que também caíra há pouco naquele mesmo abismo. E seus mantos cinzentos esvoaçaram-se enquanto ela se aproximava da margem, saltando de forma mágica por entre os troncos quase submersos do lago. Em seu último salto, ela parou em frente a Serpente Celeste.
Seus olhos cinzentos fitaram os dele. Curiosos. Os dois permaneceram parados por um pequeno tempo. Suas faces se aproximaram, como se atraídas uma pela outra; e já era tarde quando ambos perceberam que não estavam apenas sonhando.
A jovem recuou, tímida. Serpente Celeste perdeu as palavras, emudecendo ante a magia que contemplava. Levou um longo tempo até acreditar realmente que não estava somente sonhando. Mas a seguiu mesmo assim, correndo por entre as árvores e a tempestade de folhas douradas que o vento de outono formava.
Conseguiu alcança-la, e a conquistou em definitivo com suas belas palavras e seu desejo sincero. Beijou-a sob a floresta de troncos vermelhos, e descansou seus olhos felizes nos olhos cinzentos dela, que o fitavam encantados. Porém, sendo ela uma mulher prestes a casar-se, e ele um homem já casado, resolveram manter em segredo a paixão avassaladora que passaram a sentir um pelo outro.
Serpente Celeste voltou para sua mansão quando o sol se punha, após muito vagar por aquelas trilhas mágica que perfaziam os arredores de Pequim. A esposa o recebeu preocupada, aflita por não vê-lo desde o começo do dia. Ele acalmou os seus temores, dizendo-lhe palavras doces e explicando-lhe sobre as diversas aquisições com mercadores estrangeiros que passavam pela cidade.
Ela não lhe entendeu, tampouco prestou atenção ao pequeno e mágico demônio aprisionado que ele tirou do bolso. Mas fitou seus olhos profundamente; e não mais encontrou aquela ânsia viperina, aquela gana desenfreada por tesouros e riquezas. Apenas reviu uma outra imagem do oceano de sua própria infância, calma e serena, azul em toda a sua profunda plenitude
E eis que Serpente Celeste havia realmente mudado, chegando até a cumprimentar os camponeses por que passava – embora estes se jogassem ao chão, aterrorizados ao verem-no deslocar-se para perto de si. E seu sorriso tornara-se uma constante por este tempo, tão infinito quanto eterno, em que já durava o seu romance secreto.
Mas como todas as coisas doces, que um dia tem seu fim em meio ao sabor amargo de desilusão, aconteceu que sua esposa o seguiu certa vez, preocupada com o desânimo do marido. E o viu entrar pelo caminho mágico, percorrendo o labirinto de árvores douradas com habituada indiferença, embora sentisse o perfume das belas flores que corriam pela trilha.
Quis o destino que a fragrância de sua esposa fosse a mesma, e que ele não a visse ou ouvisse por trás de si, devido às grandes árvores que retinham o som sereno de sua doce voz. Seguiu sem voltar seus olhos uma única vez, enquanto ela tropeçava desalentada pelas raízes das árvores.
Ela, por sua vez, continuou no rastro da trilha o melhor que pôde, cega na crença inocente de que seu marido apenas não havia lhe ouvido, de que ele riria de sua cena infantil de preocupação, de que ele a amava. Continuou por mais de uma hora, perdendo-se por diversas vezes em meio aos troncos que se emaranhavam de forma mágica por entre aquela floresta sombria.
Após muito vagar, parou de súbito. Percebeu os sussurros que vinham de uma clareira a sua frente, e temeu que fossem pequenos demônios. Preparou a espada, alerta para qualquer movimento que surgisse a sua frente. Mas ouviu o barulho cristalino da água, e tranqüilizou-se ao considerar que só poderiam ser pequenos duendes, brincando e competindo do velho jogo de atirar pedrinhas num lago.
Mesmo assim, manteve a arma na mão, por precaução. Atravessou os últimos ramos, que fechavam sua passagem para a grande clareira e saltou com suavidade de dentro das árvores. Uma chuva fina caía, e os seres não perceberam a sua existência, distraídos que estavam com seu pequeno jogo de mistérios.
Ela, curiosa com as risadas alegres que ouviu, resolveu espiar de perto aquele pequeno casal mágico. Contornou o arco de troncos, sentindo o sol refletir-se pelas águas e formar um leve arco-íris por sobre a lagoa. Pensou ainda em quanto o seu marido apreciaria este pequeno espetáculo da natureza, tão apaixonado que era pelas pelas artes e mistérios da natureza. E desejou tê-lo ao seu lado naquele momento, enquanto atravessava, com cuidado, a última árvore que a separava dos dois alegres duendes.
Esta é uma história antiga, de um tempo em que o mundo ainda era jovem - um lugar onde todos os tipos de magias e sonhos eram possíveis. De uma terra onde as lendas se descortinavam por entre o cotidiano das pessoas; uma época fantástica e maravilhosa, cujo legado que nos resta resume-se apenas a velhas fábulas e contos...
Jóias turvas
Havia, há muito tempo atrás, um famoso general chinês chamado Serpente Celeste. Era ele um dos mais nobres servidores do imperador da China naqueles tempos, logo após a completa unificação do gigantesco império; e fora ele um dos maiores responsáveis pela vitória do reino de Qin sobre todos os demais, naquela que ficou conhecida como a última guerra dos tempos de outono e primavera.
E eis que o mundo florescia desde então, com a reunião de tudo sob o céu afinal completa. Mas sua fama ainda o precedia por todo o mundo, e era com louvor e um pequeno temor ressentido que as pessoas o saudavam e reconheciam durante sua passagem pelos diversos territórios do imperador.
Após a derradeira batalha, por conta dos hábitos do tempo, Serpente Celeste fora deixando gradualmente para trás as marcas do passado; perdendo lentamente, ao longo dos anos, o brilho viperino de seus olhos e o fogo que consumia seu espírito antes das batalhas. Voltara para sua família perto dessa época, encontrando-se enfim com seus dois filhos – um menino e uma menina – então com nove anos e oito anos de idade.
A esposa o esperava em completa deferência e reverência, aguardando por sobre os mantos da formalidade aquele que seria o momento propício para agracia-lo com seus encantos - relembra-lo então de toda a saudade e solidão que sentira, ama-lo e delicia-lo durante um momento eterno por sobre o reflexo da luz das estrelas em seu leito, como há tempos não podia realizar.
As crianças sorriam, encantadas com a volta daquele que há tanto tempo não viam. Seus olhos brilhavam ante a nobre carruagem, tão grande e coberta por seda vermelha, rodeada de potes de porcelana cheios de enfeites dourados e parada em frente ao seu lar – um antigo e bem cuidado casarão de madeira vermelha, com dezenas de criados e vastas áreas de estar.
Serpente Celeste se rendeu a abraça-los e afaga-los, distribuindo-lhes tão logo quanto pôde os mágicos presentes que trouxera de suas viagens com todos os que estavam ali – entre eles, haviam glóbulos de cristal que resplandeciam como diamantes, e no entanto eram maleáveis e praticamente inquebráveis (embora pudessem ser furados); bonecas que se moviam e quase chegavam a falar quando o desejo a sua volta era muito forte; fogos de artifício que se multiplicavam por mil cores e formas em volta das pessoas, e não queimavam ou machucavam.
Sua amada ganhou um belíssimo espelho adornado de esmeraldas, e um pente mágico com um rubi na ponta que lhe arrumava os cabelos ao sinal do menor desejo. Sua esposa aparecia com um colar de madrepérolas, envoltas por entre os mantos de um branco exuberante que esvoaçavam pelas escadas, enquanto seu filho brincava no andar inferior com sua incrível e veloz espada de prata, que soltava faíscas brilhantes a cada novo golpe.
Um beijo doce e cálido foi a resposta dela ante o volteio de Serpente Celeste, que a fitou silenciosamente com seus olhos esverdeados . A luz das tochas refletiu-se de forma amena por sobre o nácar multicolor do colar, iluminando com um arco-íris a grande sala de tapeçarias e poltronas, enquanto ele tentou comentar com ela sobre a última missão que o imperador lhe havia incumbido; mas foi desarmado por um único dedo em seus lábios.
As vestes negras dele tragaram a luminosidade enquanto seus olhos se acendiam e ambos subiam para o quarto. O cheiro de incenso pairava pelo ar; almofadas douradas se espalhavam pela cama carmim e pelo tapete arenoso enquanto eles sucumbiam por longas horas ao mais puro êxtase carnal.
Serpente Celeste logo deixou-se adormecer, ao passo que sua esposa permaneceu a observar o brilho de seus olhos abertos e a acariciar seus cabelos escuros. Seu corpo tropeçou pelo limiar intermitente dos mais profundos sentimentos, que surge quando estes são satisfeitos, e ela também se deixou adormecer e sonhar; com seu marido, com seu único amado.
Os olhos dele moveram-se pela manhã, então despertos, e fitaram o sorriso extasiado de sua esposa, que suspirava e dormia profundamente ao seu lado. Moveu-se com calma enquanto ouvia o cantar dos pássaros, sentindo a luz tênue do sol passar através do filtro de cristal do teto e escolhendo deixar sua mulher aproveitar os próprios sonhos enquanto ele se ausentava.
Passou pelo quarto do filho, que dormia agarrado à sua fantástica espada de brinquedo, e viu-o se remexer mormente por entre as cobertas, provavelmente lutando contra seres fantásticos. Deixou-o em sua batalha particular, passando pela filha e observando-a dormir agarrada com o travesseiro; seus longos cabelos envoltos num brilho mágico enquanto ela vagava pelo mundo onírico.
Desceu mais um lance de escadas, chegando afinal à sala de entrada principal e saindo pelo resplandecente portão de safiras incrustadas. Passou de forma rápida pelos camponeses que encontrava pelas ruas e que o saudavam, indo em direção ao oeste da cidade. Seguiu por uma estrada sinuosa por um longo tempo, até que simplesmente virou-se e desapareceu por entre as árvores ao seu lado.
Parou, penetrando além dos limites do mundo conhecido e observando ao redor. Uma pequena colina se erguia suntuosa e altiva no centro de uma rosa dos ventos formada por gigantescas montanhas. Montes de figuras de preto e branco agitavam-se ao lado dela, tentando continuamente entrar em formação.
Encontrou-se lá com o mestre de obras, que arregimentara a seu pedido um verdadeiro batalhão de construtores e apenas aguardava suas ordens para começar a construção da torre mágica. Esta, por sua vez, era um último pedido do imperador; um pedido que selaria, num distante futuro, a chave de uma grande revolução, segundo o que proclamaram os oráculos e os seus próprios sentimentos.
Olhou para os homens com seu olhar avaliador. Os trabalhadores engoliram em seco, sentindo-se ansiosos e temerosos enquanto ele varria o corpo de infantaria, composto por habilidosos pintores, grandes escultores, renomados marceneiros e mágicos pedreiros. Moveu a mão subitamente, autorizando enfim o começo e ouvindo os homens bradarem seus gritos de entusiasmo.
Saiu ao som de aplausos, olhando para a colina pelo canto dos olhos, e sentindo-se satisfeito. O monte verdejante ficou para trás, com suas quatro depressões lotadas de pequenos pontos que se moviam. A incomparável formação rochosa que o circundava também foi deixada, com um simples passo que o tragou de volta para as árvores à beira da simples estrada.
Voltou novamente para casa, encontrando o desjejum posto sobre a mesa. Sua esposa sorria, e as crianças se deliciavam com o farto café da manhã. Tentou mais uma vez comentar sobre sua missão, mas ela não quis ouvir. Comeram em silêncio, logo após indo cada um se ocupar de suas atividades.
Serpente Celeste treinava com seus discípulos, como nos velhos tempos, enquanto ela se ocupava de ornar e produzir arranjos florais. Seu filho o acompanhava entusiasmado, destacando-se então no manejo da espada; e sua filha seguia o mesmo caminho das artes que a mãe, pintando diversos quadros belíssimos, embora, como ela, também houvesse aprendido a manejar armas.
Os dias seguiram-se assim, calmos e amenos, exceto pelo fato de Serpente Celeste nunca conseguir uma oportunidade de contar a sua esposa sobre a torre. O trabalho desta, porém, avançava a grande velocidade, estando provavelmente concluída em cerca de sete anos.
E esses anos passaram-se quase num piscar de olhos, apesar de os seus ainda permanecerem os mesmos. Seus filhos haviam crescido, não tendo as memórias da infância nubladas como as dele, e sua esposa havia tornado-se ainda mais bela com o passar do tempo. As obras da torre se aproximavam da etapa final, com suas escadarias sendo forradas com as mais diversas sedas, e seu estelar pináculo de diamantes sendo então preparado para refletir a luz das estrelas.
Serpente Celeste sentia-se quase satisfeito, apesar de ainda perceber um vago abismo na alma para o qual não encontrava explicação. Distraía-se atribuindo-o aos seus anos de guerra, à sua infância infeliz, e continuava a levar sua vida da melhor maneira possível. Mas a sensação continuava, apesar de tudo, e ele vagava muitas vezes em busca da explicação. Entretanto, em certos momentos ele esquecia completamente disso. Esses momentos não eram raros, e aconteciam especialmente no tempo em que passava junto de seus filhos.
Um dia, porém no outono do sexto ano, em mais uma de suas vistorias nos acabamentos da torre, ele acabou dando um passo em falso no caminho. Caiu por um longo tempo, notando o universo se alargar e distanciar em torno de si numa confusão sem fim por várias horas. Mas enfim, tudo parou; a luz surgiu, e após um curto período de tempo ele conseguiu abrir os olhos novamente.
Estava num arco de árvores, rodeado de delicadas flores e próximo a um pequeno lago. Sobre o círculo de água, uma figura cinzenta pairava, saltando por entre os juncos negros de forma extremamente graciosa. Serpente Celeste aproximou-se, lembrando-se das magníficas fadas que guardava em aquários dentro de sua casa e desejando-a para si.
Ela, no entanto, revelou-se uma simples jovem perdida, que também caíra há pouco naquele mesmo abismo. E seus mantos cinzentos esvoaçaram-se enquanto ela se aproximava da margem, saltando de forma mágica por entre os troncos quase submersos do lago. Em seu último salto, ela parou em frente a Serpente Celeste.
Seus olhos cinzentos fitaram os dele. Curiosos. Os dois permaneceram parados por um pequeno tempo. Suas faces se aproximaram, como se atraídas uma pela outra; e já era tarde quando ambos perceberam que não estavam apenas sonhando.
A jovem recuou, tímida. Serpente Celeste perdeu as palavras, emudecendo ante a magia que contemplava. Levou um longo tempo até acreditar realmente que não estava somente sonhando. Mas a seguiu mesmo assim, correndo por entre as árvores e a tempestade de folhas douradas que o vento de outono formava.
Conseguiu alcança-la, e a conquistou em definitivo com suas belas palavras e seu desejo sincero. Beijou-a sob a floresta de troncos vermelhos, e descansou seus olhos felizes nos olhos cinzentos dela, que o fitavam encantados. Porém, sendo ela uma mulher prestes a casar-se, e ele um homem já casado, resolveram manter em segredo a paixão avassaladora que passaram a sentir um pelo outro.
Serpente Celeste voltou para sua mansão quando o sol se punha, após muito vagar por aquelas trilhas mágica que perfaziam os arredores de Pequim. A esposa o recebeu preocupada, aflita por não vê-lo desde o começo do dia. Ele acalmou os seus temores, dizendo-lhe palavras doces e explicando-lhe sobre as diversas aquisições com mercadores estrangeiros que passavam pela cidade.
Ela não lhe entendeu, tampouco prestou atenção ao pequeno e mágico demônio aprisionado que ele tirou do bolso. Mas fitou seus olhos profundamente; e não mais encontrou aquela ânsia viperina, aquela gana desenfreada por tesouros e riquezas. Apenas reviu uma outra imagem do oceano de sua própria infância, calma e serena, azul em toda a sua profunda plenitude
E eis que Serpente Celeste havia realmente mudado, chegando até a cumprimentar os camponeses por que passava – embora estes se jogassem ao chão, aterrorizados ao verem-no deslocar-se para perto de si. E seu sorriso tornara-se uma constante por este tempo, tão infinito quanto eterno, em que já durava o seu romance secreto.
Mas como todas as coisas doces, que um dia tem seu fim em meio ao sabor amargo de desilusão, aconteceu que sua esposa o seguiu certa vez, preocupada com o desânimo do marido. E o viu entrar pelo caminho mágico, percorrendo o labirinto de árvores douradas com habituada indiferença, embora sentisse o perfume das belas flores que corriam pela trilha.
Quis o destino que a fragrância de sua esposa fosse a mesma, e que ele não a visse ou ouvisse por trás de si, devido às grandes árvores que retinham o som sereno de sua doce voz. Seguiu sem voltar seus olhos uma única vez, enquanto ela tropeçava desalentada pelas raízes das árvores.
Ela, por sua vez, continuou no rastro da trilha o melhor que pôde, cega na crença inocente de que seu marido apenas não havia lhe ouvido, de que ele riria de sua cena infantil de preocupação, de que ele a amava. Continuou por mais de uma hora, perdendo-se por diversas vezes em meio aos troncos que se emaranhavam de forma mágica por entre aquela floresta sombria.
Após muito vagar, parou de súbito. Percebeu os sussurros que vinham de uma clareira a sua frente, e temeu que fossem pequenos demônios. Preparou a espada, alerta para qualquer movimento que surgisse a sua frente. Mas ouviu o barulho cristalino da água, e tranqüilizou-se ao considerar que só poderiam ser pequenos duendes, brincando e competindo do velho jogo de atirar pedrinhas num lago.
Mesmo assim, manteve a arma na mão, por precaução. Atravessou os últimos ramos, que fechavam sua passagem para a grande clareira e saltou com suavidade de dentro das árvores. Uma chuva fina caía, e os seres não perceberam a sua existência, distraídos que estavam com seu pequeno jogo de mistérios.
Ela, curiosa com as risadas alegres que ouviu, resolveu espiar de perto aquele pequeno casal mágico. Contornou o arco de troncos, sentindo o sol refletir-se pelas águas e formar um leve arco-íris por sobre a lagoa. Pensou ainda em quanto o seu marido apreciaria este pequeno espetáculo da natureza, tão apaixonado que era pelas pelas artes e mistérios da natureza. E desejou tê-lo ao seu lado naquele momento, enquanto atravessava, com cuidado, a última árvore que a separava dos dois alegres duendes.