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Autor da Semana James Joyce

Não sou mesmo fã de Joyce.

Acho que isso é mistificar o Ulisses um pouco demais, ao menos para uma primeira leitura. Se Ulisses é tudo isso, @Caio Alves (depois de umas quatro leituras deve ser mesmo), é também um livro sobre dois caras perambulando por Dublin construído com toda aquela parafernália modernista: nacionalismo (ou discussão da identidade nacional), jogo com os elementos básicos de cada arte (no caso, a linguagem), jogo com a tradição (ou com a cultura greco-romana cristã), ironia, desheroificação e desromantização do herói etc.

Enfim, ele pode superar seu tempo e ser "maior que a vida", como todo bom livro faz, mas também é filho dele.

Sei lá, queria sentir isso tudo aí também, mas não tive muita sorte com Joyce. No fim "Ulisses dá um tweet". :rofl:

Mentira, acho que não. Pelo menos a parte dele que vale a pena, não.
 
Última edição:
A perseguição a um livro — ou quando literatura e anarquismo andam juntos
11 maio 2016, 11:03 am
Luiz Schwarcz

Abri esta série de posts contando a história da fundação da Random House por Bennett Cerf e Donald Knopfler em 1926. É interessante saber que o primeiro grande best-seller da nova editora irá aparecer só em 1934, e de forma bastante inesperada — como, aliás, acontece com os best-sellers em geral. Além disso, o grande hit de vendas da nova editora nasceu a partir de um marco memorável em defesa da liberdade de expressão.

Trechos de Ulysses de James Joyce foram publicados pela primeira vez nos Estados Unidos em 1918, pela Little Review. Com direção literária de Ezra Pound, a revista, como o próprio nome dizia, era pequena também em circulação e recursos. Os problemas da publicação começam em 1917, por conta da edição de um conto de Wyndham Lewis, que tratava da história de um soldado britânico que engravida uma mulher durante a Primeira Guerra Mundial e ignora seus chamados, por estar na trincheira, como se dizia na época, “estourando miolos de alemães”. O texto foi considerado “obsceno”, justamente numa época em que a preocupação com a espionagem e o patriotismo se misturavam com a censura moral e de costumes.

Na ocasião, o órgão responsável pela censura era o Correio central dos EUA, com seus 300 mil funcionários distribuídos pelo país. Com poder brutal e disseminado, e num contexto marcado por conflitos externos e internos, as arbitrariedades foram enormes. Dizem, aliás, que a preocupação dos censores com James Joyce teria começado por conta da nacionalidade do escritor. Durante a Primeira Guerra Mundial havia um número significativo de irlandeses atuando como espiões, pois viam no apoio à Alemanha uma forma de enfraquecer o Reino Unido e, assim, viabilizar a independência irlandesa. Em certo momento, os censores britânicos chegaram a cogitar que a linguagem truncada deUlysses era um código de guerra. Apesar de Pound haver cortado alguns trechos mais fortes, na época da publicação dos primeiros fragmentos pela Little Review, o texto foi imediatamente proibido pelos censores, tornando inviável a edição integral do livro nos Estados Unidos.

A luta pelos interesses nacionais de guerra e a confusão entre anarquismo e linguagem livre são muito significativas para se entender a cabeça dos censores de livros, não só nessa ocasião, mas história afora. No Spionage Act, arrolado para a interdição de obras literárias, a liberdade de expressão era literalmente considerada um crime. O primeiro trecho censurado de Ulysses na Little Review é uma rememoração em que o afeto entre Leopold e Molly acaba apenas culminando em calorosos beijos. Mas a situação se prolongará, num crescendo, com a tentativa da mesma revista de publicar novos excertos. Os seguidos processos de interdições à obra começam no fim da guerra, em 1918, nos Estados Unidos, estendendo-se até 1922, na Inglaterra, muitos anos depois de findo o conflito mundial. A literatura mais ousada continuava sendo considerada um risco à sociedade, tendo sido Joyce admoestado nas ruas de Paris, onde em certa ocasião foi chamado de um “escritor abominável”.

Com Ulysses proibido nos Estados Unidos e depois na Inglaterra, a única edição em inglês disponível era a da também pequena livraria Shakespeare and Company, de Paris, que, vez por outra, era contrabandeada por leitores, afoitos para ler a obra-prima do autor irlandês. (Dizem que Ernest Hemingway, que morava entre os Estados Unidos e Paris, foi um dos maiores contrabandistas da obra.)

Em 1932, Bennett Cerf pediu que a dona da livraria parisiense marcasse um encontro com Joyce, e com ele acertou a compra dos direitos norte-americanos de Ulysses. Cerf preparou uma estratégia de luta jurídica pelo fim do banimento da obra em território americano. Para tal contratou Morris Ernst, um renomado advogado, oferecendo-lhe participação nos direitos autorais do livro, caso a liberação viesse a ser lograda. O advogado, que recebeu direitos até Ulysses entrar em domínio público — e ficou milionário com a vitória —, preparou a defesa com a montagem de uma edição especial do livro, de um exemplar apenas. Nesse volume especial, foram inseridas as mais importantes críticas publicadas a respeito do texto, de autores renomados como Edmund Wilson, Ezra Pound e Ford Madox Ford. O próximo passo seria fazer com que aquele exemplar fosse contrabandeado para os Estados Unidos e apreendido na alfândega. Só assim uma ação contra a proibição poderia ser aberta.

Para garantir a apreensão, Cerf enviou um despachante para aguardar o portador do volume manufaturado, que então foi desgastado propositalmente para que parecesse uma surrada edição normal. O emissário denunciou, então, o portador aos funcionários da alfândega, dizendo que sabia que este contrabandeava um item proibido no país. Os funcionários da polícia alfandegária, porém, não deram bola à contravenção, a ponto de fazer com que o despachante exigisse em altos brados a verificação da bagagem do viajante. Ao abrir a mala, mais uma vez, se recusaram a apreender a cópia, alegando que todo mundo que vinha de Paris trazia uma cópia do livro consigo. Foi preciso muita insistência e mais berros para que o livro fosse apreendido. A partir da apreensão, a apelação à corte foi possível. Ernest defendeu brilhantemente o livro e também a liberdade de criação. No seu parecer, os argumentos literários se transformam em jurídicos. Em 1934, dois anos depois dos primeiros contatos de Cerf com Joyce, Ulysses foi enfim publicado nos Estados Unidos.

Tendo a proibição prévia e a campanha judicial pela liberdade artística como grandes esteios para a divulgação da obra, um dos romances mais difíceis da língua inglesa tornou-se um enorme best-seller. O primeiro e o maior da jovem editora.

Cerf relata também, em At Random — suas memórias montadas e publicadas postumamente —, uma batalha posterior que travou pelo Ulysses de Joyce, e que é igualmente bastante curiosa. Para expor o livro recém-liberado no maior número de pontos de venda possível, Cerf procurou a American News Company, empresa proprietária do Macy’s, o maior magazine de Nova York, que possuía também, na época, uma rede de papelarias espalhadas pelo país. A conversa de Cerf com o comprador da grande empresa, reproduzida com júbilo em suas memórias, é fantástica, e a comemoração do grande editor ao vender 5 mil exemplares de uma obra tão difícil, em pontos apropriados para produtos puramente comerciais, pode parecer um déjà vu para qualquer editor em atividade.

No começo da Companhia das Letras eu mesmo realizava parte das vendas para os grandes clientes. É por isso que hoje, sentado em frente ao computador, compartilho vivamente a alegria que o grande editor americano teve na ocasião. Vitória tornada jurisprudência a favor da liberdade de expressão, seguida de sucesso comercial de uma das obras-primas da literatura mundial: poderia haver exemplo mais significativo para quem “milita” pela literatura e luta pela popularização de uma das mais complexas e antigas manifestações artísticas da humanidade?

P.S.: Para os que quiserem aprofundar-se no assunto, recomendo a leitura de At Random, de Bennett Cerf, e também o brilhante livro de Kevin Birmingham, The Most Dangerous BookThe Battle for James Joyce’s Ulysses, ambos utilizados para a confecção deste post.

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna mensal.

Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/2...-quando-literatura-e-anarquismo-andam-juntos/
 
(acho que é o meu primeiro post por aqui. deve ser. desculpa qualquer coisa; juro que li as regras... mas foi em dezembro. wtv.)

gente, o bloomsday tá chegando!!!!!; falta um mês e pouquinho pro maldito dia (dame, señor, coraje y alegría para escalar la cumbre de este día.) e confesso que estou muito ansioso. o dia 16/06/16 será, factualmente, o meu primeiro bloomsday!; melhor dizendo: o dia 16/06/16 será o meu-primeiro-bloomsday-pós-leitura-do-ulysses!!!!!!!!!!

bem... como as exclamações exageradas denotam, eu estou dizendo isso dos píncaros da minha empolgação.

ademais -- e acho que isto é meio óbvio --, também estou doido pra saber de possíveis programações joyceanas no mês vindouro, sobretudo de programações em curitiba. (é que sou curitibano)

certo, ok. não fiquem naquela tensão entre o "
que legal!" e o "f*da-se!", por favor. juro que este post não é uma idiossincrasia tão boba assim. eu tenho algumas modestas intenções aqui.

e até imagino que alguns já tenham sacado o meu intuito; pois pelo que percebi (horas e horas de lurk, hehe), vocês são muito sagazes.


é o seguinte: li os posts aqui do tópico e, pelo que apurei, ninguém comentou sobre o bloomsday 2016. aproveitem, portanto (e por favor), este gancho para, com eventuais informações que vocês tenham, ajudar-me a organizar um calendário pros bloomsdays brasileiros deste ano. acho que é importante pra nossa comunidade joyceana.

é que eu pesquisei sobre o assunto e não encontrei qualquer coisa relevante. diga-se de passagem, se você joga "bloomsday 2016 brasil" no google não aparece porcaria alguma, só aparece coisa do evento oficial em dublin.

ok, até sei que há bloomsdays tradicionais aqui no brasil e sei que tais festividades vão, provavelmente, ocorrer de qualquer forma, mesmo sem anúncios na web; mas acho que é uma iniciativa legal tentar sistematizar e mapear tudo. penso que facilita bastante pro pessoal que queira eventualmente viajar e tal.

(em tempo: já estou me movimentando pra entrar em contato com o prof. galindo, também curitibano, pra saber se vai ter algo por aqui. espero que sim.)

e aí? vocês topam?
 
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Estou passando aqui pra deixar uma sugestão em relação à Ulisses: eu vi alguém na internet dizendo que tentou várias vezes ler o livro mas nunca conseguia por achar difícil demais, até que essa pessoa tentou com uma versão em audiobook. Foi aí que o leitor percebeu a forma como esse livro ganhou vida. De certa forma, Ulisses é um livro mais do que apropriado para ser lido em voz alta (principalmente no idioma original, mas suponho que não limitado à este), então fica a dica aí pra vocês. Ainda não tentei isso, mas achei a ideia bem interessante.
 
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Existe o livro SIM, EU DIGO SIM - Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce, de autoria de Caetano Galindo; trata-se de um guia para o leitor conhecer melhor os passos de Bloom, Stephen e Molly naquele 16 de junho de 1904, mas também irá aprender sobre a própria natureza do romance, além de vários outros assuntos que povoam essas páginas. Irá, sobretudo, ter um contato privilegiado com a leitura de um dos maiores especialistas em Joyce no Brasil, uma leitura calorosa, erudita e, mais que tudo, surpreendente.

Fica a dica.
 

Um Ulysses muito louco​

Em guia de leitura, Ricardo Lísias acumula erros e pontos cegos em clássico de Joyce
André Conti
08dez2021 21h00 (09dez2021 10h10)

James Joyce
Ulisses

Tradução de Antônio Houaiss. Guia de leitura de Ricardo Lísias
Civilização Brasileira/Grupo Record • 812 pp • R$ 64,06

O leitor brasileiro que procurar uma tradução de Ulysses, de James Joyce, encontrará três: a de Antônio Houaiss, pioneira (1966); a de Bernardina Pinheiro (2005), que foi uma das maiores especialistas em Joyce que o Brasil já teve, e a de Caetano Galindo (editada por mim no selo Penguin da Companhia das Letras, 2012). É motivo de celebração que os leitores tenham tantas opções, e as três versões são ótimos caminhos para entrar em Ulysses.
Há também um guia escrito por Caetano Galindo (Sim, eu digo sim: Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce, 2016, editado por mim), que faz parte de uma longa tradição de guias, inaugurada por James Joyce’s Ulysses, de Stuart Gilbert (que Joyce leu e anotou) e passa pelo assombroso Ulysses Annotated, de Don Gifford e Robert Seidman, um incontornável manancial de informações sobre o romance, a Irlanda, Dublin e a vida de Joyce. No Brasil, são pioneiros os estudos joycianos de Haroldo e Augusto de Campos, que publicaram ensaios e traduções até hoje essenciais.
Joyce dizia que os enigmas e mistérios de Ulysses serviriam para manter os críticos trabalhando por séculos, e uma de suas principais diversões é justamente esse acúmulo de informações sobre o famoso 16 de junho de 1904, no qual se dá a ação do livro (a rigor ele invade a madrugada do dia 17). Há tentativas de situar o romance (descobrir, por exemplo, a que horas da manhã ele termina, ou a descrição física de Bloom, ou em que dia ele se passa — algo que não é imediatamente revelado), além dos cruzamentos com Homero, a Bíblia, Shakespeare, as relações com órgãos do corpo, cores, figuras de linguagem e com a própria vida de Joyce.
Esses detalhes não são um fim em si, ou um jogo de detetive estéril em que apontamos paralelos homéricos ou discutimos quem é o homem de capa de chuva no enterro para preencher uma lista. Eles movimentam e ligam os pontos de Ulysses, eles estão na mente dos personagens, eles definem e definham relações. Tudo é intencional. Cada minúcia, cada movimento da trama reflete e espelha outros pontos do livro, num caleidoscópio de estilos e vozes que nascem do detalhe mundano sem nunca terminar nele.
A publicação de outro guia de Ulysses, desta vez pelo escritor Ricardo Lísias, e que serve de posfácio à nova edição da lendária tradução de Antônio Houaiss (Civilização Brasileira, 2021), seria então algo a se comemorar — Ulysses é um romance denso, e toda ajuda é bem-vinda. Mas o leitor que encarar Guia de leitura não lerá uma única menção a Homero, a quem o autor dedicou o título de seu romance. Não saberá por que Bloom perambula pela cidade (sua esposa vai traí-lo naquele dia). Não saberá que Stephen Dedalus é o alter ego do autor. Não saberá que Dedalus é protagonista do romance anterior de Joyce, Um retrato do artista quando jovem (1916), do qual Ulysses pode ser tomado como continuação. Não saberá por que raios Joyce está contando essa história. Não ouvirá uma única menção direta ao algoz Boylan ou a Martin Cunningham ou a Charles Stewart Parnell, o herói irlandês (cuja trajetória norteia eixos políticos e sexuais de Ulysses). Não terá claro que três personagens protagonizam o romance: Dedalus, Bloom e Molly. O livro descrito em Guia de leitura ocasionalmente não parece ser o mesmo que li e editei.
Segundo Guia de leitura, o romance abre numa hospedaria. Ulysses começa numa torre de defesa desativada, muito comum na costa da Irlanda, e que foi arrendada por Buck Mulligan, amigo de Stephen Dedalus. Em Guia de leitura, Buck Mulligan é um “tipo meio asqueroso e que não terá maior importância no livro”. Em Ulysses, Buck Mulligan é um dos personagens centrais — o espelho de Dedalus, o amigo que diz que a mãe dele está bestialmente morta, o usurpador em quem Stephen dá um cano no almoço e que mesmo assim está se esforçando para inserir Dedalus entre os literatos de Dublin e ainda lhe arrumar uns caraminguás.
Em Guia de leitura, Hamlet “aparece para deixar o café da manhã compartilhado um pouco mais erudito”. Em Ulysses, Hamlet é um dos paralelos literários poderosos do romance, uma das operações mais modernas de apropriação, um símbolo esquivo que ora se fixa em Dedalus, ora em Bloom. Em Ulysses, a relação de Stephen e Buck é ambígua, cheia de homoerotismo, e ocupa muito da mente de Dedalus durante o dia. Em Guia de leitura, eles se despedem, Buck Mulligan entra no mar e Stephen caminha com Haines para a cidade. Em Ulysses, Dedalus decide não mais voltar à torre, onde está dormindo de favor, e caminha sozinho para a escola (ele absolutamente detesta Haines, que é inglês e uma das razões para ele abandonar a torre).
Em Guia de leitura, Stephen aparece fazendo perguntas a seus alunos, “e não é à toa que elas sejam sobre história grega”, embora não sejamos informados do porquê. Depois, ele vai receber seu salário com o diretor da escola, e “o diálogo, então, torna-se pretensamente mais culto, mas logo o leitor percebe que as bobagens ditas pelos alunos ecoam na conversa dos adultos”. Em Ulysses, o que ecoa na conversa com o diretor Deasy não são “as bobagens ditas pelos alunos” na cena anterior, mas os alunos gritando no recreio, ao lado da sala de Deasy (uma noção deslumbrante aparece: Deus é um grito na rua. Outra: A história é um pesadelo do qual quero acordar).
Em Guia de leitura, “A certa altura, o pomposo e erudito diretor começa a revelar um pensamento bastante preconceituoso e não disfarça o antissemitismo […] É fácil ver no fragmento, considerando que Ulisses foi publicado em 1922, o germe do pensamento que viria a desembocar na barbárie nazista.”. Em Ulysses, Bloom é um judeu num país católico. É o estranho, que nunca assina documentos, que é maçom. Forçoso ressaltar o quão central o tema do antissemitismo é para o romance, e para Bloom (que já se converteu católico e protestante ao longo da vida). Em Guia de leitura, o antissemitismo se projeta para o futuro, para a barbárie nazista. Em Ulysses, o antissemitismo é uma maneira de recontar a história da Europa, construída sobre séculos de perseguições aos judeus. Não é por acaso que Leopold Bloom, o grande modelo de homem comum para Joyce, seja um judeu (Bloom é tratado como um apátrida em sua nação.).
Em Guia de leitura, “o dia vai se abrindo e Dedalus caminha pela praia enquanto, introspectivo, se bate com uma série de reflexões, nem sempre organizadas e às vezes incompreensíveis”. Em Ulysses, Dedalus caminha pela praia pensando em Aristóteles enquanto fecha os olhos e sente os pés afundarem na areia. Enquanto se deixa guiar pelos sons. “A inelutável modalidade do visível” (visão), “A inelutável modalidade do audível” (audição). “Feche os olhos e veja.” Ele reflete sobre a diferença do mundo material para o espiritual, pensa na consubstanciação do Cristo, passa pela casa de uns parentes, mas ao fim decide não entrar.
Em Guia de leitura, “Dedalus termina se revelando uma personalidade um pouco mais complexa do que o autor deixava ver no início, quando ele aparecia apenas em diálogos divertidos, mas superficiais.” Em Ulysses, sabemos que Dedalus é uma figura complexa, atormentada e ambígua, no mínimo porque ele já protagonizou um romance inteiro de Joyce, Um retrato do artista quando jovem, no qual abandona a perspectiva de uma vida religiosa entre os jesuítas para se tornar escritor e “forjar, na forja da minha alma, a consciência incriada da minha raça”. Em Ulysses, Dedalus passa os episódios anteriores pensando na morte da mãe (ele se recusa a rezar quando ela, moribunda, implora), na pobreza da família, na subserviência da Irlanda à Coroa, na opressão do catolicismo, num sujeito afogado na praia, em dor e desespero.
Em Guia de leitura, “o livro, então, passa bruscamente do divertido para o reflexivo e o preço desse salto é que o humor dá lugar, mesmo que de passagem, a certa psicologia irritadiça”. Em Ulysses, Dedalus rasga um pedaço da nota do sr. Deasy, rabisca um poema misterioso (quem é “ela”?) e mija (ou goza?) na areia. Em Guia de leitura, “é assim, com a destreza formal com que arquiteta esse movimento, que Joyce mostra de fato ser um dos grandes autores da modernidade nascente”. Em Ulysses, Dedalus tira uma caca do nariz, gruda numa pedra e olha para trás para ver se alguém o flagrou. Em Guia de leitura, “Ulisses abandona qualquer intenção realista de representação para inaugurar outra coisa na literatura”. Em Ulysses, Joyce tenta recompor o ritmo do próprio pensamento dos personagens, conforme são acossados por lembranças, estímulos externos e forças interiores subjacentes. No monólogo interior de Ulysses, o efeito é de literalmente enxergar o mundo de dentro de alguém, num sentido que se pretende tão “real” quanto descrever um copo na mesa.

Adultério​

Em Guia de leitura, somos apresentados a Leopold Bloom, homem “simples e abrutalhado, mas complexo e sentimental, que está sempre pensando na esposa, Molly Bloom. […] As coisas parecem bem mais calmas do que na hospedaria de Dedalus. A descrição dos objetos domésticos é bem mais sutil e pinta uma situação tranquila”. Em Ulysses, a vida familiar dos Bloom está se dissolvendo, e ele acaba de ter a confirmação de que Boylan, o empresário de sua esposa (em Ulysses, Molly é soprano), vai visitá-la e, provavelmente, consumar o adultério. Ao mesmo tempo, sua filha Milly, de quinze anos, saiu de casa e arrumou um namorado (que Bloom conhecerá, sem saber, ao longo do dia), o que acentua a crise dela com a mãe. Em Guia de leitura, Milly não é mencionada.
Em Guia de leitura, “o fechamento se dá com uma cena meio grotesca: Bloom lê no banheiro o texto de certo senhor Beaufoy, que um jornal havia publicado, e sente inveja. Por aquilo, o sujeito havia recebido um pouco mais de três libras!”. Em Ulysses, a cena da defecação matutina é cheia de beleza e graça, e nos apresenta algumas das particularidades do peculiar sr. Bloom (ele tem mania de tentar descobrir quanto os outros ganham, e faz isso durante todo o livro; ele passa o romance se imaginando em diversos negócios e esquemas). Em Guia de leitura, Bloom “sai para a rua em direção às aventuras daquele proverbial dia de junho. É a partir daí que, de fato, começa a Odisseia de Ulisses”. Em Ulysses, Bloom sai de casa para evitar a esposa e ao mesmo tempo facilitar o adultério, que ele considera inevitável. Odisseu queria voltar, mas demorou dez anos (vinte, contando a guerra). Bloom adia sua volta até que Molly adormeça. Em Ulysses, essa é sua Odisseia.
Em Guia de leitura, o episódio seguinte é “costurado com a mesma lentidão e método com que Leopold Bloom caminha pela cidade, que acorda aos poucos”. Em Ulysses, a cidade está desperta (são cerca de nove horas, e os dublinenses se levantam terrivelmente cedo) e a morosidade da narrativa vem do estado de espírito de Bloom. Uma das características de Ulysses é que o narrador constantemente se transforma de acordo com o foco daquele momento. Bloom está com a cabeça no Oriente, um Oriente místico e misterioso que ele imagina a partir de anúncios e romances baratos. Estamos, afinal, no episódio dos Lotófagos, narcótico e entorpecedor. Ulysses foi construído sobre a estrutura da Odisseia; o livro descrito em Guia de leitura, não.
Em Guia de leitura, “Um cabriolé estaciona diante de um hotel e ele [Bloom] perde o bonde”. Em Ulysses, uma mulher sobe em um cabriolé, e Bloom, do outro lado da rua, aguarda ansioso para entrever suas pernas. No momento exato, um bonde para em frente ao cabriolé e Bloom perde a cena. Em Ulysses, Bloom não estava à espera do bonde. Em Guia de leitura, Bloom “entra na igreja e, perscrutador, observa os objetos sagrados, as pessoas e os rituais”. Em Ulysses, ele está de braguilha aberta e se pergunta por que não usam cerveja na comunhão. Está pensando na carta sacana que recebeu de sua correspondente secreta, numa troca erótica em que ele assina como Henry Flower. Em Guia de leitura, nem Martha nem a carta nem Henry Flower existem (e o leitor fica sem entender por que Bloom imagina seu pênis como uma “lânguida flor flutuante”, como cita Guia de leitura).
Em Guia de leitura, no episódio do enterro de Paddy Dignam, “a melancolia que toma momentaneamente Bloom é gerada por parágrafos um pouco mais longos”, e “Joyce utiliza o tom reflexivo para passar várias informações sobre Bloom. Todas, como os traumas citados acima, são ditas em voz baixa, o que acaba gerando uma espécie de sensação de intimidade”. Em Ulysses, o episódio mostra em que medida Bloom é excluído da sociedade dublinense (ele só entra no carro do cortejo porque sobra espaço, é constantemente ignorado e provocado durante o trajeto), e ninguém o trata com intimidade nem fala em voz baixa com ele. Em Ulysses, Bloom, o judeu, o corno, o misterioso, é um pária; em Guia de leitura, não. Em Ulysses, Bloom tenta ajudar um dos presentes a arrumar o chapéu e é desprezado. Bloom diz para si, com ironia e cinismo: “Obrigado. Quão nobres estamos esta manhã.” Guia de leitura comenta a mesma passagem: “Bloom, enfim, retorna à velha animação e retorna o alto-astral”.
Em Guia de leitura, Stephen Dedalus reaparece na Biblioteca Nacional, onde vai apresentar sua tese sobre Hamlet a um grupo de literatos. Assim, “[…] aqui e ali Joyce lança afirmações que, de tão inusitadas, acabam divertindo” e “é possível notar a seriedade com que Shakespeare é tratado, interpretado e discutido. Joyce parece ter o legítimo desejo de homenagear o autor de Hamlet”. Em Ulysses, não há nenhuma homenagem a Shakespeare, mas uma contínua, decisiva e sobretudo tensa relação do romance com a peça, que é possivelmente o símbolo mais importante de todo o livro, ainda mais do que a Odisseia.
Em Ulysses, a tese de Dedalus, que relaciona dados biográficos da vida de Shakespeare a personagens de Hamlet, é também uma chave para um dos temas centrais da história: a relação entre arte e vida, parte de toda a operação moderna de Ulysses, aquela que T.S. Eliot batizou de “método mítico”. Em Guia de leitura, “Joyce varia entre a admiração por Shakespeare e a consciência dos limites de todo debate”. Em Ulysses, Joyce se apropria de Hamlet e faz da trinca Molly-Leopold-Stephen um espelho cambiante das tensões internas da peça. Em Guia de leitura, “Um encontro entre James Joyce e William Shakespeare sempre é instigante”. Em Ulysses, ele deixa o livro de pé.
Em Guia de leitura, o episódio seguinte “reúne dezoito fragmentos cuja junção se dá pelo entrecruzamento de algum detalhe, que os vai costurando. […] É preciso notar que há um paradoxo envolvido: o enigma é criado aqui para localizar! O leitor precisará ir com calma para observar as diversas pistas que vão sendo deixadas nos fragmentos, juntá-las, e então obter novo acesso à obra”. Em Ulysses, de um lado da cidade, parte a carruagem do padre Conmee (figura dublinense de grande afeto para Joyce, que já o colocara no Retrato); de outro, parte o vice-rei, um oficial de Dublin que cruza a cidade na direção contrária. Ao longo do percurso de cada procissão, vemos pequenos episódios se desenrolando.
Em Ulysses, mesmo tendo escrito no exílio e consultado pouquíssimo os amigos de Dublin, Joyce descreveu um trajeto que pode ser reproduzido a pé mais ou menos no tempo e na rota propostos pelo livro. Em Ulysses, é esse o episódio que fez Joyce famosamente declarar que Dublin poderia ser reerguida dos escombros a partir das descrições no romance. Em Guia de leitura, “Joyce aproveita o aspecto lúdico que a ficção proporciona e cria um singelo quebra-cabeça, mais ou menos como o mapa de uma cidade”.
No episódio seguinte, de acordo com Guia de leitura, “a mão do grande artista James Joyce aparece agora, em trecho cuja complexidade na elaboração talvez faça par apenas com o final do livro […]. A musicalidade é marcante desde o início, quando um ambiente onírico é criado através da sonoridade de diversas palavras sem que elas, porém, tenham um sentido lógico ao se juntarem”. Em Ulysses, as palavras que aparecem na abertura são sons que se repetirão ao longo do episódio: uma bengala que bate no chão, alguém que batuca na mesa etc. Em Guia de leitura, “alguns irlandeses, entre eles nossos protagonistas, flertam com as garçonetes”. Em Ulysses, Bloom está no bar, mas Stephen não; o Dedalus que aparece no episódio é Simon, pai de Stephen. Bloom não flerta com ninguém: ele está aflito pois se aproxima a hora do encontro de Molly e Boylan. Em Guia de leitura, Boylan não é mencionado.
Em Guia de leitura, agora “entramos em outra [passagem] um pouco mais convencional, [onde] James Joyce lança mão, basicamente, de dois procedimentos formais: a enumeração e a paródia”. Em Ulysses, o episódio do Ciclope é notável por ser o único narrado em primeira pessoa por um personagem fixo, embora não saibamos exatamente quem é ele (é um frequentador anônimo do bar que, segundo amigos do autor relatariam, fala com a voz do pai de Joyce). Ulysses tem listas e paródias por toda parte — o romance em si pode ser considerado uma paródia da Odisseia, como diz, aliás, a sinopse da editora no Kindle. Em Guia de leitura, Homero não é mencionado, nem esse narrador em primeira pessoa.
Em Guia de leitura, “Na calçada, alguns homens conversam sempre em tom agressivo e preconceituoso, até que Bloom se junta a eles. […] Mais pacífico e um tanto horrorizado com o que ouvia, Bloom resolve discutir com os tais ‘cidadãos irlandeses’ […]”. Em Ulysses, Bloom discute com um personagem, que se chama O Cidadão, um nacionalista que representa o ciclope da Odisseia, com sua visão limitada e estreita. Eles estão dentro do bar, e não na calçada. Em Guia de leitura não há nenhuma menção a paralelos homéricos, e um “cidadão” enumera coisas “como se a quantidade garantisse a qualidade do seu argumento”. Em Guia de leitura, o irlandês médio é bruto, avacalhado, incapaz de ouvir alguém, de maneiras pouco civilizadas, antissemita, arrogante e propenso a violência, mas não há menção a nacionalismo. Em Ulysses, o nacionalismo é um tema que norteia vidas públicas e privadas.
Em Ulysses e Guia de leitura, Bloom segue para a praia, onde observa algumas garotas. Em Guia de leitura, “as garotas são atraentes, mas ele logo se compadece por uma que, devido a um defeito na perna, é manca e acaba ficando para trás. Ela lhe parece discriminada pelo resto do grupo. Aqui, confirma-se sua figura de homem bom e solidário e seu caráter reflexivo”. Em Ulysses, Bloom se masturba olhando para a garota, e só depois percebe que ela é manca. Ele agradece aos céus por ter gozado antes de perceber. Em Guia de leitura, ele então “se engraça com uma garota que estava por ali e que, sedutora, sabe mover-se para atraí-lo”. Em Ulysses, essa é a cena anterior, e agora Bloom já vai tirar um cochilo; em Guia de leitura ele não goza e flerta com outra pessoa.
Segundo Guia de leitura, “Bloom se junta a um grupo de jovens beberrões”, alunos de medicina, não fica claro se na própria maternidade onde estudam ou em outro lugar. Em Ulysses, Bloom visita uma amiga na maternidade, que está há dias em trabalho de parto, e enquanto espera por notícias, junta-se a um grupo de alunos de medicina. Em Ulysses, esse episódio relaciona a evolução de uma gravidez ao desenvolvimento da língua inglesa, e cada trecho é um pastiche de um estilo: literatura medieval, Shakespeare, Dickens, De Quincey, Sterne. É um dos trechos mais desafiadores e complexos de todo o romance. Em Guia de leitura, não há menção a nada disso, e ao fim “a linguagem se desintegra”. Em Ulysses, Joyce termina o episódio empregando gírias e sotaques da época.
Em Ulysses e Guia de leitura, o episódio a seguir é narrado como uma peça de teatro que se passa quase toda dentro de um bordel. Em Guia de leitura, Bloom “vai atrás de Stephen Dedalus, assumindo a figura paterna. Ele, que perdeu o filho recém-nascido, parece desenvolver um afeto momentâneo por Dedalus”. Em Ulysses, o encontro entre Dedalus e Bloom é o grande acontecimento do livro, anunciado desde o início. Se fosse possível reduzir Ulysses a um tema, a um momento, seria o encontro entre Dedalus e Bloom. Em Ulysses, a ligação de Bloom e Stephen é sugerida ao longo de todo o dia, e agora entra em ponto de ebulição. Em Ulysses, “a paternidade pode ser uma ficção legal”. Ulysses é, sobretudo, um livro sobre pais e filhos; em Guia de leitura, não. Em Guia de leitura, “apesar de aparentemente simples, ele [Bloom] demonstra ser um homem maduro. […] esteticamente falando, agora já é fácil ver que James Joyce é um artista feito, e dos maiores”. Em Ulysses, Bloom e Joyce são infinitos.
Em Guia de leitura, Bloom e Dedalus seguem até uma taverna que está “cheia de homens simples”. Em Ulysses, eles vão para um abrigo de cocheiros tomar café; há rumores de que o dono esteve envolvido nos assassinatos de Phoenix Park e que agora mudou de nome, e o episódio é cheio de menções a duplos e disfarces. Segundo Guia de leitura, o episódio é escrito “de maneira mais convencional”, e “parece ter a função de colocar as coisas um pouco nos eixos”. Em Ulysses, o episódio nada tem de convencional, mas foi dolorosamente trabalhado para soar cansado, até tedioso. O autor de Ulysses emprega dezenas de lugares-comuns, uma prosa gasta e cheia de clichês, e confere uma atmosfera de sonolência a tudo (o autor faz isso deformando o narrador, mexendo na sintaxe, no vocabulário, uma operação moderna e magistral).
Em Ulysses, Dedalus menciona Boylan de passagem (e sem saber do caso com Molly, ao contrário do restante da cidade), e imaginamos a reação de Bloom. Guia de leitura cita a passagem, mas não menciona quem é Boylan. Em Ulysses e Guia de leitura, Bloom convida Stephen para dormir em sua casa (em Ulysses, sabemos por que Stephen não tem onde dormir; em Guia de leitura, não). Em Guia de leitura, é o “momento em que os últimos bares ainda funcionando começam a virar as cadeiras sobre as mesas e só fica mesmo na rua quem não tem para onde ir […] Esse não é o caso de Bloom, porém, e os dois entram em um veículo e, finalmente, tomam a direção de um abrigo seguro”. Em Ulysses não há bares na cena, apenas um abrigo de cocheiros que serve café e pão. Eles tampouco entram em um veículo; eles cruzam um cocheiro parado e caminham abraçados e cantando até a casa de Bloom. É uma das cenas mais bonitas e poderosas de todo o romance.
Em Guia de leitura, “chega uma surpresa: todo um trecho constituído por uma espécie de jogo de perguntas e respostas”. Em Ulysses, o autor emprega a retórica do catecismo, como na primeira comunhão. Guia de leitura indaga: “Além de satisfazer o furor de Joyce pela variação formal, o que uma estrutura como essa indica? Colocada perto da conclusão, talvez o autor estivesse querendo especular sobre os aspectos enigmáticos de todo o romance”. Em Ulysses, o episódio finalmente consuma o encontro dos dois, e como se trata de Ulysses, sonega a ação. As perguntas são laterais, e não revelam diretamente a conversa mais aguardada do romance. Tem alguns dos trechos mais engraçados de Ulysses, e alguns dos mais belos também (Bloom e Stephen mijando enquanto observam uma estrela cadente, por exemplo). É o episódio favorito da imensa maioria de leitores que conheço. Em Guia de leitura, tem-se a impressão de quem faz as perguntas e dá as respostas são Bloom e Dedalus, não o próprio livro.
Em Guia de leitura, “o trecho evidencia, de maneira sutil, a consciência de James Joyce com relação ao seu projeto literário. Para ele, de forma nenhuma a arte traz respostas sem antes gerar uma série de perguntas”. Guia de leitura não menciona outros livros de Joyce a não ser o Retrato, e não esboça qualquer ideia do que seria esse projeto. Além de Ulysses, Joyce escreveu os contos de Dublinenses (diversos de seus personagens voltam em Ulysses como parte do projeto), Um retrato do artista quando jovem (idem) e o romance Finnegans Wake (que cita textualmente os outros três), além da peça Exilados (que antecipa os temas de adultério e voyeurismo em Ulysses) e poemas.
Dedalus vai embora e, de acordo com Guia de leitura, “com argúcia, Joyce não faz (e, portanto, também não responde) a pergunta que resta para todos nós, leitores: o rapaz foi para onde? Ele simplesmente desaparece do romance…”. Em Ulysses, a pergunta que resta não é onde Stephen vai dormir (num hotel? No parque? Faz diferença?), e sim o que acontece no dia seguinte. Eles vão se encontrar novamente? Bloom e Molly ajeitarão o casamento ou Stephen será o próximo amante dela? Stephen escreverá um livro em que forja “na forja da alma, a consciência incriada de sua raça”? Esse livro é Ulysses? Finnegans Wake? A raça é a irlandesa (como parece no Retrato) ou a humana? Quem era, afinal, o homem da capa de chuva? O próprio Joyce? Ulysses deixa dezenas, talvez centenas de perguntas. Guia de leitura oferece uma, e desimportante.
Em Guia de leitura, Bloom vai se deitar e pede para Molly servir-lhe o café de manhã, fato significativo porque ele não fazia isso desde a morte do filho, também o tempo em que eles estão sem transar. Em Ulysses, Molly ouve ele pedindo o café (ele pode estar pensando no ovo do pássaro) e Bloom percebe, por conta dos restos de carne enlatada na cama, que Boylan esteve em seu leito. O leitor sabe, desde o episódio anterior, que, para Bloom, Boylan é apenas um numa fila, “nem o último nem o primeiro”. Quando Odisseu retorna para casa, ele é o único capaz de dobrar seu arco, o que enfim convence Penélope de que o rei voltou. Em Ulysses, Bloom verga o arco e derrota os pretendentes em sua própria mente. Ele dá uns beijos nas nádegas da esposa, pede ou não o café e vai sonhar com Sinbad, o marujo. Se ele de fato pediu o café é porque, qual Odisseu, voltou transformado da viagem. Que transformação é essa? Nunca saberemos. Em Guia de leitura, Odisseu não é mencionado.
Em Guia de leitura, “entre os tantos méritos, um dos menos reconhecidos [do monólogo de Molly] é o caráter avançado do texto: em 1922, Joyce não apenas reconhecia o erotismo feminino como ainda o pintava com tintas fortes e ousadas. A arte veio a fazer isso, com tal ênfase, só muitas décadas depois”. Em relação a Ulysses, há literalmente centenas de artigos e livros sobre o caráter (sexualmente) “avançado” do texto (e o conceito é em si antiquado). Sobre erotismo feminino, Safo nasceu no século 7 a.C. Em Guia de leitura, “Molly é muito confusa quanto ao amor e aos homens em geral, detalhe que produz trechos divertidos”. No monólogo final de Ulysses, Molly se revela a menos ingênua das personagens de Ulysses, a feiticeira Calipso que fez os homens de Dublin comerem em sua mão. (Num texto que é um prodígio da ambiguidade, descobrimos que Boylan foi provavelmente o primeiro a consumar a traição).
Em Guia de leitura, “Nas últimas linhas, comovida, Molly diz sim ao marido, relembrando tanto uma cena de casamento como, pelo ritmo, o ato sexual. Em duas linhas a palavra ‘sim’ aparece quatro vezes”. Em Ulysses, Molly está se lembrando de duas cenas distintas: o pedido de casamento de Bloom (que a chama de sua “flor da montanha”) e a primeira vez que deu um beijo (ou transou) com o tenente Mulvey, em sua juventude em Gibraltar (na “muralha mourisca”). Em Guia de leitura, Molly se submete ao marido. Em Ulysses, o sim de Molly é duplo, dúbio. Ela termina afirmando, mas não diz a qual dos dois amantes. Ou se aos dois. Ulysses é terreno instável, Guia de leitura é lugar-comum.
Em Guia de leitura, o livro “ressalta sempre o que existe de melhor nas pessoas”. Em Ulysses, Bloom é luminoso, mas ocasionalmente mesquinho. Mulligan é monstruoso, mas tenta ajudar o amigo. Tudo é movediço. Uma cena de defecação pode ser sublime, e os personagens aparecem em retratos inteiros: em seus pensamentos ocultos, seus movimentos intestinais, suas derrotas profundas e seus pequenos momentos de glória. Em Guia de leitura, “Trata-se da plenitude estética, alcançada pouquíssimas outras vezes na história da arte”. Em Ulysses, isso soa como uma platitude dita por um dos medalhões de fraque da Biblioteca Nacional. Ulysses é moderno, Guia de leitura é conservador.
Em Ulysses, muitas vidas cabem nesse 16 de junho: as pessoas nascem e morrem, se apaixonam, ganham e perdem tudo, experimentam a sanidade e a loucura, a sobriedade e a embriaguez. Elas falam de política, defendem ideais, pensam o tempo inteiro em sexo, fofocam, se odeiam e se amam. Famílias implodem, a pobreza assola e a alegria ocasional escapa pelas frestas. Todos cantam, o tempo inteiro. Em Guia de leitura, ninguém canta. Não tem sexo, não tem vida, nada acontece. Bloom não é adorável e Stephen não é ranzinza nem está imundo. Molly não tem graça.
Em Ulysses, cada detalhe importa, e quase não há assunto que seja mencionado ou aludido apenas uma vez. Além da história que atravessa o romance, há dezenas de pequenas narrativas e arcos. Guia de leitura não menciona nenhuma delas, e o leitor sai sem entender que o livro tem uma história, e que Joyce concebeu essa história meticulosamente para ampliar os efeitos do livro. É difícil, em qualquer chave, falar de Ulysses sem falar a fundo de Odisseia, Shakespeare, a Bíblia, política irlandesa e Buck Mulligan. Em Guia de leitura, nada disso existe ou tem importância.
Em Guia de leitura, “a literatura eleva o sujeito comum à condição de protagonista. Dessa forma, o Modernismo é um momento artístico bastante democrático”. Em Ulysses, Joyce eleva Bloom a Odisseu e rebaixa Odisseu a Bloom. É nesse duplo movimento (que Eliot chamou de “método mítico”) que reside o Joyce modernista. Em Guia de leitura, essa distinção não tem importância, e “o leitor encontrará aqui um catálogo com boa parte dos recursos formais a que a literatura tinha acesso”. Em Guia de leitura, o livro é um compêndio de macetes literários e bossas formais pré-fabricados. Em Ulysses, Joyce demoliu a noção prévia de estilo e subjugou o narrador aos movimentos internos dos personagens e à trama, fazendo com que cada variação de estilo e ponto de vista ampliasse a nossa consciência do livro, e a própria consciência do livro sobre si (por isso o livro extravasa e “delira” sobre si próprio no episódio do bordel). Ulysses transformou para sempre o romance. Guia de leitura não investiga nem o como e nem o porquê.
Guia de leitura é “apenas uma sugestão, na esperança de que muitas outras leituras possam ser construídas.” A minha sugestão é que o leitor procure um guia que fale sobre Ulysses.

Fonte: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/critica-literaria/um-ulysses-muito-louco
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Comentário 1: algumas pessoas disseram bem: a crítica se revelou um guia aparentemente melhor que o próprio guia.
Comentário 2: saudades de uma treta literária que não envolvesse gente jovem reclamando de folha, gramatura, religião do autor, etc.
 
Parei na metade porque já estava ficando constrangedor até pra mim, imagine o que o Lísias andava pensando quando o escreveu... Que venha a treta! Alguém avise à Feltrin! :rofl:
 
Parei na metade porque já estava ficando constrangedor até pra mim, imagine o que o Lísias andava pensando quando o escreveu... Que venha a treta! Alguém avise à Feltrin! :rofl:
"Ele entende de Ulisses porque ele também foi corno!"

(Atenção: antes que alguém queira abrir um processo, que conste que eu estava zoando com a forma como Feltrin aborda as coisas. Não li Divórcio pra saber se houve adultério ou não. Por outro lado, questionamentos éticos relacionados à escrita de Divórcio já levaram à condenação do autor por uma "atitude de corno".)
 
Última edição:
Obrigado, Spartaco.
Mas eu só estava fazendo uma piada.
Lerei o Ulisses sem guia nenhum. Tenho as traduções do Houaiss e do Galindo aqui em casa. Só preciso escolher qual, e quando.

Sinto um tédio só de imaginar que um livro precise de outro livro grandão só pra te explicar o bagulho. :tedio:
 
Essa edição aí de cima é muito boa porque pra completar minha coleção da obra do Joyce pré-Ulysses tive que comprar umas edições meio bunda. Logo adquiro essa.
Vê-se que você não é chegado em teologia. :lol:
Ou no Talmud.

Coloquei Ulysses na minha lista de 5 livros favoritos, aliás.
 
Pois então... (Ainda antes de ler o artigo) Lembro que na época falaram que, das três, era a mais fraquinha, pelo menos nas soluções encontradas para os neologismos; mas que era mais acessível no geral — o que pode ser positivo, quando se pensa que muita gente foge do livro pela fama de difícil. Mas depois o assunto meio que morreu... Acho que a tradução do Houaiss também não foi reeditada, ou foi? Hoje só se encontra o livro da Alfaguara em sebo, a preços astronômicos. A única que abunda nas livrarias é a do Galindo. Ou melhor: as únicas são dele. Porque ele relançou a tradução revisada etc. que eu não comprarei porque não sou bobo... :dente:
 

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