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Enjambement, ô coisa ---- irritant!

Eriadan

Well-Known Member
Eu comecei a fazer um poema repleto dessa excrescência manobra poética para brincar aqui, mas fiquei tão irritado que não consegui passar do 5º ou 6º verso.

Enjambement, mais conhecido como cavalgamento, é o recurso de só terminar um verso no seguinte, para caber na métrica ou na rima. Tipo, o poeta literalmente não acaba o verso no verso, porque não vai rimar ou vai sair da métrica, e aí joga só a última ou as últimas palavras, SOLTAS, DO NADA, no verso seguinte - que continua daí! Não vou procurar exemplos. Se você odeia tanto quanto eu, já deve ter entendido o que é.

Já vi que tem muito apreciador de poesia aqui que gosta ou não se importa com isso, então antes de desenvolver o porquê de eu achar que isso assassina o poema, vou deixar vocês, que leem bem mais poesia do que eu, tentarem me convencer de que não não padecem de alguma doença.
 
Em primeiro lugar, é válido para quem não planeja declamar a poesia verso a verso, fazendo uma pausa mínima ao final de cada um, mas prefere declamar corrido, respeitando mais as pausas naturais da sintaxe. Assim, a rima será percebida pelo ouvinte, mas decerto um pouco enfraquecida, por perder o destaque ao "fim" do verso.

Em segundo lugar, é um recurso que — às vezes — serve para causar no leitor** uma surpresa ao quebrar sua expectativa, mesmo que por um mínimo instante. Exemplo:

"Amei... Mas tive a cruz, os cravos, a coroa
De espinhos
, e o desdém que humilha, e o dó que infama;
Calcinou-me a irrisão na destruidora chama;
Padeço! Que fazer, para ser bom?" - Perdoa!

Nestes versinhos de Bilac, a quebra do sintagma pela metade — coroa de espinhos — cria uma expectativa no leitor, de algo bom e nobre, que se desmancha a seguir. Claro, alguém dirá que falar de cruz e cravos já nos induzia a pensar em Cristo etc. But you get the point.

E cometendo o pecado da autocitação, vou exemplificar com uns versos meus. Não estão no livrinho e provavelmente não estarão em livro nenhum, então fica de boas postar aqui só os últimos versos, onde tem um cavalgamento:

Às vezes a garota só deseja,
chegando então cansada do trabalho,
tirar em casa os tênis e deitar
um beijo à boca da colega.​

O terceiro verso induz o leitor a pensar que a garota vai se deitar, já que está cansada e tal, mas na sequência fica explícito que a expressão completa era, na verdade, "deitar um beijo", modificando não só o sentido do verbo, mas o seu complemento.

Na maioria das vezes é só pra cumprir tabela mesmo, e está tudo bem. Fica ali registrado ao olhos de todos que o verso tem a medida certa e a rima exigida; com aquela leitura mais fluida, a rima ocorrerá, mais como uma espécie de rima interna, se quiser chamar assim; mas ainda será mais do que não ter rima at all.


**E digo leitor em vez de ouvinte porque vivemos hoje numa sociedade totalmente letrada em que a poesia declamada já perdeu 99,99% de seu espaço para a leitura silenciosa e íntima, então o poeta de hoje já leva isso em conta também, de tal modo que os recursos de que lança mão são diferentes dos usados antigamente, e para outros fins.
 
Última edição:
Poesia sem nenhum cavalgamento tem potencial muito maior de cair na breguice. Claro, vai depender da qualidade do autor e do estilo da época. Mas que o potencial aumenta, aumenta.
Para mim, o cavalgamento está para a poesia como a cinética está para a música. Você pode sim, ter uma música toda quadradinha ritmicamente falando, mas as mudanças de ritmo aumentam não só a expressividade como a fluidez da peça.

EDIT: Ah, e o paralelo não é só como ritmo, mas com a dinâmica também. Porque quando o fim do verso não coincide com o final da sentença, a entonação também muda, as marcações de dinâmicas também saem fora do quadrado. Isso tudo enriquece a música e a poesia.
 
O exemplo do Lufe me lembrou desse poema de Oswald de Andrade:

enjambement do cozinheiro preto

Chamava-se José
José Prequeté
A sua habilidade consistia em matar de longe
Decepando com uma larga e certeira faca
Cabeças
De frangos, patos, marrecos, perus, enfim
Da galinhada solta no quintal
Do Grande Hotel Melo
 
Vamos lá...

é um recurso que — às vezes — serve para causar no leitor uma surpresa ao quebrar sua expectativa, mesmo que por um mínimo instante. Exemplo:

Nestes versinhos de Bilac, a quebra do sintagma pela metade — coroa de espinhos — cria uma expectativa no leitor, de algo bom e nobre, que se desmancha a seguir. Claro, alguém dirá que falar de cruz e cravos já nos induzia a pensar em Cristo etc. But you get the point.

E cometendo o pecado da autocitação, vou exemplificar com uns versos meus. Não estão no livrinho e provavelmente não estarão em livro nenhum, então fica de boas postar aqui só os últimos versos, onde tem um cavalgamento:

O terceiro verso induz o leitor a pensar que a garota vai se deitar, já que está cansada e tal, mas na sequência fica explícito que a expressão completa era, na verdade, "deitar um beijo", modificando não só o sentido do verbo, mas o seu complemento.
O exemplo do Lufe me lembrou desse poema de Oswald de Andrade:

enjambement do cozinheiro preto

Chamava-se José
José Prequeté
A sua habilidade consistia em matar de longe
Decepando com uma larga e certeira faca
Cabeças
De frangos, patos, marrecos, perus, enfim
Da galinhada solta no quintal
Do Grande Hotel Melo
Isso aqui é ouro puro! Acho fantástico o cavalgamento sendo usado desta maneira, pontual, genial, com um objetivo semântico, e não simplesmente estético. Notem, aliás, que nenhum deles se preocupa com a métrica ou a rima: são cavalgamentos com o fim certeiro de quebrar a expectativa e surpreender o leitor.

Os que me irritam mesmo são aqueles que têm o único propósito de fechar métrica ou rima - porque só funcionam visualmente! Pegando um gancho do que o Béla comentou aqui...

é válido para quem não planeja declamar a poesia verso a verso, fazendo uma pausa mínima ao final de cada um, mas prefere declamar corrido, respeitando mais as pausas naturais da sintaxe. Assim, a rima será percebida pelo ouvinte, mas decerto um pouco enfraquecida, por perder o destaque ao "fim" do verso.
Quando o fim do verso não define a pausa, a métrica e a rima de fim de verso não fazem nenhum sentido! Não pegam. Pra quê se esforçar para manter o verso decassílabo como todos os demais se, quando ele for lido, ele será um dodecassílabo? Pra quê fechar o verso com um fonema igual ao do último verso que você quer rimar se, quando ele for lido, ele não será o último, e se perderá?

Se a pessoa declama com base na sintaxe, a métrica ou a rima forçada se perde; se declama com base nas pausas dos versos, a tal "quebra de ritmo" pretendida não acontece.

Poesia sem nenhum cavalgamento tem potencial muito maior de cair na breguice. Claro, vai depender da qualidade do autor e do estilo da época. Mas que o potencial aumenta, aumenta.
Para mim, o cavalgamento está para a poesia como a cinética está para a música. Você pode sim, ter uma música toda quadradinha ritmicamente falando, mas as mudanças de ritmo aumentam não só a expressividade como a fluidez da peça.

EDIT: Ah, e o paralelo não é só como ritmo, mas com a dinâmica também. Porque quando o fim do verso não coincide com o final da sentença, a entonação também muda, as marcações de dinâmicas também saem fora do quadrado. Isso tudo enriquece a música e a poesia.
Então, é aí que eu discordo. Para mim, na analogia com a música, o cavalgamento não representa uma mudança de ritmo, mas uma nota fora do compasso. Sempre me obriga, invariavelmente, a reler o verso (agora sabendo que ele não termina ali), do mesmo modo que um acidente desse tipo numa partitura me obrigaria a tocá-la novamente. Acho isso profundamente irritante. Não acho um bom recurso de mudança de ritmo justamente pelo que falei acima: ou você muda mesmo o ritmo ao declamar, e para isso não precisaria ter que quebrar o verso ou forçar uma rima que desaparece, ou não muda o ritmo para conseguir preservar a métrica e a rima, e ao fazer isso não quebra ritmo algum.

Mudanças de ritmo que eu acho legais são versos fora da métrica, ou uma ausência de rima, ou qualquer tipo de assimetria que rompe uma lógica preestabelecida pelo poema, mas não uma que, ao meu ver, acaba com a fluidez da poesia.
 
Mas em música há a mudança da fórmula de compasso dentro de um mesmo fraseado. Compositores contemporâneos usam muito disso, mesmo em canto coral em que a frase melódica está associada a um verso.
 
Deixa eu retomar esse tópico aqui só para sondar de vocês: quando vocês declamam um verso que termina em enjambement, pausam no fim dele mesmo - para sustentar a métrica - ou no verso seguinte - para não pausar antes de concluir a ideia?

Peguei o hábito de ler poesia em voz alta (conselho do Trevisan, @Béla van Tesma!), o que tem me ajudado um bocado, mas a presença desse recurso PÉRFIDO tem me atrapalhado nessas horas.
 
Procuro pausar no final das orações, não dos versos.
Verso é legal pra dar o ritmo, mas a respiração eu pego das orações.

EDIT: Inclusive, orações sem cavalgamento, mas que duram 2 versos inteiros, por exemplos, faço a pausa só no segundo verso.
 
Recurso pérfido :rofl:

Cara, não tenho o hábito de ler em voz alta e acho que declamação de verso é um troço difícil de ficar boa. Tem que ser profissa mesmo. Para fins didáticos, se te ajuda a apreciar a coisa nesse estágio, continue tentando, claro.

Eu acho que provavelmente eu faria uma pequena pausa, menor que a habitual, se me deparasse com um cavalgamento durante uma tentativa de declamar algo em vo alta.
 
num dos capítulos de um livro que escrevi sobre poesia, falo rapidinho do cavalgamento:

*

5.1.18. Cavalgamento.​

Idealmente, todo verso deveria encerrar uma unidade de ritmo e de sentido. Assim que a gente terminasse a leitura de um verso, teríamos entendido mais ou menos a ideia antes de passar para o próximo. O problema é que já na poesia antiga encontramos poetas elaborando frases e ideias inteiras que percorrem mais de um único verso. Em casos extremos, o final do verso termina de maneira tão abrupta que temos que saltar para o próximo a fim de completar o sentido. O nome desse efeito é cavalgamento, mas também é possível encontrar quem o chame de embebimento, cavalgamento ou enjambement, este último um termo francês muito recorrente que significa atravessar esticando a perna (jambe).

Para Dioniso de Halicarnasso, o cavalgamento, ao cortar os períodos fazendo com que eles não correspondam ao tamanho do verso, é um dos fatores responsáveis por destruir a regularidade métrica e, com isso, aproximar aquele poema da prosa. É um comentário muito curioso, mas que não deve levar a crer que o cavalgamento seja um recurso apenas a serviço do prosaísmo. Em textos metrificados e rimados, por exemplo, o cavalgamento pode ser apenas uma necessidade poética: o autor precisou parar ali, daquele jeito, para caber na métrica e rimar direitinho. Mas há muitos outros exemplos de cavalgamentos criativos, a exemplo do que Wagner Schadeck faz no soneto “Édipo”: “Os paralelepípedos aos poucos / Podres deixam banguelas as estradas.” Quando chegamos ao fim do primeiro verso, “aos poucos”, precisamos correr para o próximo a fim de completar o sentido com “podres”. Isso acelera ao mesmo tempo que atravanca a leitura, sugerindo uma ideia de tropeço. Note que, no soneto como um todo, é a única situação em que um cavalgamento ocorre, já que todos os outros versos terminam demarcados pela pontuação.

Nesta cidade de almas enlameadas,
Como dentes que saltam dos cavoucos,
Os paralelepípedos aos poucos
Podres deixam banguelas as estradas.

Os seus sonhos são lâmpadas queimadas
Num corredor de hospício cujos loucos,
Com colchas no pescoço e gritos roucos,
Em fuga se enforcaram nas sacadas.

Em sua entrada, à luz de olhos alertas,
Que piscam pela madrugada adentro,
Por praças e avenidas mais desertas,

Nos muros e edificações do Centro,
Meu olhar nos hieróglifos constringe:
Como decifro esta voraz esfinge?

O cavalgamento, segundo Paolo Dainotti, faz com que dois níveis de construção textual se sobreponham: “o sintático, que atende à necessidade de clareza na comunicação, e o métrico, que, graças às suas limitações, indica as marcas pelas quais a poesia deve ser reconhecida.” Se a natureza do cavalgamento é dupla, isso quer dizer que não há uma única maneira de ler: é possível dar mais atenção à informação sintática, passando de um verso a outro como se nada tivesse acontecido, ou, ainda, acrescentar uma pausa qualquer ao fim do verso, respeitando a métrica do texto. Mas muitas outras estratégias são possíveis, por exemplo ler no ritmo de todos os dias mas inserindo pausas sempre que o cavalgamento for de algum modo significativo, como é o caso do tropeço no soneto de Wagner.

Isso nos leva a uma última questão sobre os cavalgamentos. Rogério Chociay certa vez comentou que os efeitos do cavalgamento não ocorrem do verso e sim da estrofe. Enquanto a passagem de uma estrofe para outra envolve uma pausa longa, a passagem de um verso para outro envolve uma pausa apenas semilonga. Ou seja, o cavalgamento é um recurso de ênfase que reduz a pausa entre os versos, mas que nem por isso prejudica o ritmo total da estrofe, pois explora outros caminhos possíveis. O exemplo de Chociay é esclarecedor: “cem quadras, por exemplo, totalmente idênticas pelo esquema intensivo dos versos, poderão representar, por virtude do jogo de pausas e outros efeitos trazidos pelo encadeamento, cem realizações diversamente ricas e diversamente legítimas sobre uma base comum”.
 
Mas há muitos outros exemplos de cavalgamentos criativos, a exemplo do que Wagner Schadeck faz no soneto “Édipo”: “Os paralelepípedos aos poucos / Podres deixam banguelas as estradas.” Quando chegamos ao fim do primeiro verso, “aos poucos”, precisamos correr para o próximo a fim de completar o sentido com “podres”. Isso acelera ao mesmo tempo que atravanca a leitura, sugerindo uma ideia de tropeço.

Reitero, esses cavalgamentos criativos são ouro puro. Os que só servem pra caber numa métrica ou numa rima - que se perdem na declamação do verso (seja em voz alta, seja na leitura mental) - é que eu não consigo suportar. :hellboy:
 
Ficou uma dúvida agora.
Quando a oração termina no final do segundo verso também é cavalgamento ou só quando termina no meio de algum verso?
 
Ficou uma dúvida agora.
Quando a oração termina no final do segundo verso também é cavalgamento ou só quando termina no meio de algum verso?
Desculpa, não tinha visto a mensagem.

Respondo com um ano de atraso. :hihihi: Se é que ainda faz sentido tirar essa dúvida agora...

O que caracteriza o cavalgamento é a quebra, ao fim de um verso, de algum sintagma que "idealmente" deveria estar reunido em um só verso. Então se um período se estende por dois ou mais versos, e se termina no final do segundo, terceiro, etc., isso em si não é cavalgamento; mas o será que se houver essa quebra no fim de qualquer desses versos.

No exemplo acima, dado pelo Mavericco, se tomarmos estes dois versos como um período avulso e completo, teremos que o cavalgamento ocorre na passagem do primeiro ao segundo, mesmo que este segundo termine perfeitinho onde era esperado:

Os paralelepípedos aos poucos
Podres
deixam banguelas as estradas.

O término do período em meio de verso não é cavalgamento. Pelo menos, não é como eu sempre o entendi.

E para ilustrar como a coisa é antiga, trago aí um parágrafo de Ésquilo. Mais que um simples cavalgamento, há nada menos que quatro quebras de palavras pela metade...

20240102_230048.jpg

O Eriadan sem dúvida surtaria com isso. :lol:
É mais ou menos como se eu escrevesse algo assim (mas sem as rimas):

Cavalgamento é um troço muito fei-
O; o que falta, afinal, pra alguma lei
Que proíba essa prática? Não sei.

:P
 

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