Quickbeam
Rock & Roll
Crítica do Pablo Villaça para S01E01:
(Better Call Spoilers.)
Vince Gilligan e Peter Gould, co-criadores deste spin-off da inigualável Breaking Bad, tinham um gigantesco desafio duplo ao conceber uma série protagonizada pelo divertido Saul Goodman, responsável por alguns dos momentos mais divertidos da saga de Walter White: em primeiro lugar, definir o tom da narrativa; em segundo, contornar o fato de que o espectador já saberia, desde o princípio, como a história terminaria. Pois se formos julgar a partir do episódio piloto, Uno, eles encontraram boas soluções para ambos, já que, mesmo mantendo o bom humor que poderíamos esperar de uma trama que gira em torno de Saul, salpicaram o episódio com toques dramáticos suficientes para que o projeto realmente parecesse pertencer ao mesmo universo que já conhecíamos. Além disso, ao conceberem um prólogo que se passaapós o término de Breaking Bad, sugerem que talvez ainda não tenhamos testemunhado de fato o desfecho da trajetória do advogado.
Este prólogo, aliás, já estabelece a atmosfera da série de forma magnífica: rodada num belo preto-e-branco que mergulha o Saul pós-Walter White em um mundo melancólico e depressivo, a sequência deixa claro o estrago feito na vida do protagonista, que agora leva uma existência de rotina desinteressante que – o mais curioso – ele já previra no penúltimo episódio de Breaking Bad ao dizer que, “com sorte, daqui a um mês serei gerente de uma loja de Cinnabon em Omaha”. Não poderia ter sido mais preciso em seu palpite. No entanto, além de criar esta continuidade divertida, a introdução remete diretamente aos procedimentos de preparo da metanfetamina que dominavam o original, substituindo a droga pela massa que serve de matéria-prima para a loja gerenciada por Saul em sua nova identidade.
E é aqui que a direção de Vince Gilligan já começa a exibir o mesmo apuro visual com o qual já nos acostumáramos em Breaking Bad, já que constantemente traz nosso anti-herói sufocado, claustrofóbico, esmagado entre elementos cenográficos que ressaltam seu estado psicológico e emocional – e, em certo instante, chegamos mesmo a ter a impressão (graças às persianas da janela) de que ele se encontra em uma espécie de prisão domiciliar.
Envelhecido e com uma calvície evidente, Saul é agora um homem triste e decadente – e, portanto, não é surpresa (mas é, sim, tocante) constatar como, para se manter minimamente interessado em viver, ele recorre ao seu passado, assistindo aos seus antigos comerciais que, não por acaso, projetam um pouco de cor sobre os grandes e feios óculos que ressaltam seu envelhecimento.
A partir daí, Gilligan nos leva ao período pré-Breaking Bad, quando encontramos Saul nos passos iniciais de sua jornada – e é notável perceber a calma com que o realizador conduz a narrativa: sem jamais ceder ao impulso de atender os desejos do espectador de reencontrar o personagem, o diretor investe numa cena com ritmo calculado que usa os sons diegéticos (o ranger das cadeiras, o ar condicionado, a tosse dos figurantes) para despertar a curiosidade do público com relação ao que estamos vendo (um recurso que ele voltará a utilizar em uma das cenas finais, quando aposta no silêncio, no som do lampião e no tiquetaque de um relógio para salientar a solidão de Saul ao tentar dialogar com aquele que, presumo, é seu irmão). Porém, mais do que isso: frequentemente, Gilligan e o diretor de fotografia Arthur Albert usam lentes grandes angulares que, associadas aos planos abertos, trazem Goodman pequeno, diminuído, em ambientes que parecem engoli-lo e ressaltar sua insignificância, mais uma vez levando o espectador a perceber, apenas visualmente, o estado psicológico do personagem.
Mas esta calma não encontra-se presente apenas na abordagem da direção; está também no roteiro (de Gould e Gilligan), que não se apressa em explicar qual a relação entre Saul e Chuck (vivido por Michael McKean, que, como Bob Odenkirk, tem uma carreira toda construída na comédia, embora seja também eficiente no drama), qual a situação que levou este último a se afastar da empresa de advocacia ou mesmo em esclarecer quem é a mulher com quem Saul divide um cigarro e parece habituada a vê-lo descontar sua frustração na lata de lixo do estacionamento (num eco claro das explosões que levavam Walter White a socar o secador do banheiro).
Aliás, é nesta sequência que enfoca a visita de Saul ao sócio do irmão (de novo: presumo que seja irmão) que o piloto de Better Call Saul traz aquele plano que me fez inclinar para a frente na cadeira e prender a respiração ao perceber que estava mesmo assistindo a uma nova criação dos responsáveis por Breaking Bad:
Em primeiro lugar, a metáfora visual pode ser óbvia, mas não deixa de se tornar memorável especialmente graças à maneira com que é apresentada: naquele ponto do episódio, já percebemos que Saul não apenas se encontra no fundo do poço, mas se sente no fundo do poço. Sente-se – claro – um refugo humano, um lixo. Assim, não só a disposição em cena da lata e de Bob Odenkirk, mas especialmente as cores similares refletidas no metal e do terno do sujeito, complementadas pelo amarrotado da calça e da lata, apresentam a comparação de forma esteticamente irrepreensível, mesmo arrebatadora.
E se Breaking Bad transformou os planos em contra-plongé em marca visual registrada, aqui Gilligan parece estar introduzindo o contrário, frequentemente pontuando a narrativa com planos plongé que – vamos observar nos futuros episódios – podem se tornar uma assinatura da série nova (não que fossem raros na anterior, que inclusive se encerra com um plongé inesquecível).
Contando ainda com as pontas de dois personagens marcantes de Breaking Bad (um não é surpresa, já que Jonathan Banks é o segundo nome listado nos créditos; o segundo, porém, representou um presente divertido), Better Call Saul é um início promissor que sugere a capacidade de Gilligan, Gould e Odenkirk de levar o espectador a enxergar Saul Goodman a partir de novos ângulos – o que, se concretizado, não apenas renderá uma ótima diversão como também, em retrospecto, enriquecerá ainda mais as cenas envolvendo o personagem em suas interações futuras com o homem que eventualmente destruirá sua vida: Walter “Heisenberg” White.
(Better Call Spoilers.)
Vince Gilligan e Peter Gould, co-criadores deste spin-off da inigualável Breaking Bad, tinham um gigantesco desafio duplo ao conceber uma série protagonizada pelo divertido Saul Goodman, responsável por alguns dos momentos mais divertidos da saga de Walter White: em primeiro lugar, definir o tom da narrativa; em segundo, contornar o fato de que o espectador já saberia, desde o princípio, como a história terminaria. Pois se formos julgar a partir do episódio piloto, Uno, eles encontraram boas soluções para ambos, já que, mesmo mantendo o bom humor que poderíamos esperar de uma trama que gira em torno de Saul, salpicaram o episódio com toques dramáticos suficientes para que o projeto realmente parecesse pertencer ao mesmo universo que já conhecíamos. Além disso, ao conceberem um prólogo que se passaapós o término de Breaking Bad, sugerem que talvez ainda não tenhamos testemunhado de fato o desfecho da trajetória do advogado.
Este prólogo, aliás, já estabelece a atmosfera da série de forma magnífica: rodada num belo preto-e-branco que mergulha o Saul pós-Walter White em um mundo melancólico e depressivo, a sequência deixa claro o estrago feito na vida do protagonista, que agora leva uma existência de rotina desinteressante que – o mais curioso – ele já previra no penúltimo episódio de Breaking Bad ao dizer que, “com sorte, daqui a um mês serei gerente de uma loja de Cinnabon em Omaha”. Não poderia ter sido mais preciso em seu palpite. No entanto, além de criar esta continuidade divertida, a introdução remete diretamente aos procedimentos de preparo da metanfetamina que dominavam o original, substituindo a droga pela massa que serve de matéria-prima para a loja gerenciada por Saul em sua nova identidade.
E é aqui que a direção de Vince Gilligan já começa a exibir o mesmo apuro visual com o qual já nos acostumáramos em Breaking Bad, já que constantemente traz nosso anti-herói sufocado, claustrofóbico, esmagado entre elementos cenográficos que ressaltam seu estado psicológico e emocional – e, em certo instante, chegamos mesmo a ter a impressão (graças às persianas da janela) de que ele se encontra em uma espécie de prisão domiciliar.
Envelhecido e com uma calvície evidente, Saul é agora um homem triste e decadente – e, portanto, não é surpresa (mas é, sim, tocante) constatar como, para se manter minimamente interessado em viver, ele recorre ao seu passado, assistindo aos seus antigos comerciais que, não por acaso, projetam um pouco de cor sobre os grandes e feios óculos que ressaltam seu envelhecimento.
A partir daí, Gilligan nos leva ao período pré-Breaking Bad, quando encontramos Saul nos passos iniciais de sua jornada – e é notável perceber a calma com que o realizador conduz a narrativa: sem jamais ceder ao impulso de atender os desejos do espectador de reencontrar o personagem, o diretor investe numa cena com ritmo calculado que usa os sons diegéticos (o ranger das cadeiras, o ar condicionado, a tosse dos figurantes) para despertar a curiosidade do público com relação ao que estamos vendo (um recurso que ele voltará a utilizar em uma das cenas finais, quando aposta no silêncio, no som do lampião e no tiquetaque de um relógio para salientar a solidão de Saul ao tentar dialogar com aquele que, presumo, é seu irmão). Porém, mais do que isso: frequentemente, Gilligan e o diretor de fotografia Arthur Albert usam lentes grandes angulares que, associadas aos planos abertos, trazem Goodman pequeno, diminuído, em ambientes que parecem engoli-lo e ressaltar sua insignificância, mais uma vez levando o espectador a perceber, apenas visualmente, o estado psicológico do personagem.
Mas esta calma não encontra-se presente apenas na abordagem da direção; está também no roteiro (de Gould e Gilligan), que não se apressa em explicar qual a relação entre Saul e Chuck (vivido por Michael McKean, que, como Bob Odenkirk, tem uma carreira toda construída na comédia, embora seja também eficiente no drama), qual a situação que levou este último a se afastar da empresa de advocacia ou mesmo em esclarecer quem é a mulher com quem Saul divide um cigarro e parece habituada a vê-lo descontar sua frustração na lata de lixo do estacionamento (num eco claro das explosões que levavam Walter White a socar o secador do banheiro).
Aliás, é nesta sequência que enfoca a visita de Saul ao sócio do irmão (de novo: presumo que seja irmão) que o piloto de Better Call Saul traz aquele plano que me fez inclinar para a frente na cadeira e prender a respiração ao perceber que estava mesmo assistindo a uma nova criação dos responsáveis por Breaking Bad:
Em primeiro lugar, a metáfora visual pode ser óbvia, mas não deixa de se tornar memorável especialmente graças à maneira com que é apresentada: naquele ponto do episódio, já percebemos que Saul não apenas se encontra no fundo do poço, mas se sente no fundo do poço. Sente-se – claro – um refugo humano, um lixo. Assim, não só a disposição em cena da lata e de Bob Odenkirk, mas especialmente as cores similares refletidas no metal e do terno do sujeito, complementadas pelo amarrotado da calça e da lata, apresentam a comparação de forma esteticamente irrepreensível, mesmo arrebatadora.
E se Breaking Bad transformou os planos em contra-plongé em marca visual registrada, aqui Gilligan parece estar introduzindo o contrário, frequentemente pontuando a narrativa com planos plongé que – vamos observar nos futuros episódios – podem se tornar uma assinatura da série nova (não que fossem raros na anterior, que inclusive se encerra com um plongé inesquecível).
Contando ainda com as pontas de dois personagens marcantes de Breaking Bad (um não é surpresa, já que Jonathan Banks é o segundo nome listado nos créditos; o segundo, porém, representou um presente divertido), Better Call Saul é um início promissor que sugere a capacidade de Gilligan, Gould e Odenkirk de levar o espectador a enxergar Saul Goodman a partir de novos ângulos – o que, se concretizado, não apenas renderá uma ótima diversão como também, em retrospecto, enriquecerá ainda mais as cenas envolvendo o personagem em suas interações futuras com o homem que eventualmente destruirá sua vida: Walter “Heisenberg” White.