O tema é complexo e é provável que o texto dê o que falar. Acho que em parte pela falta de jeito do Joca... Não sei. Mas é uma discussão interessante. Deve ser lido integralmente, de preferência duas vezes:
Acho que podemos trazer de volta uma discussão sobre a ficcionalização do próprio escritor que discutimos num tópico sobre o artigo do Luís Antônio Giron. Destaco essa passagem aqui do texto do Joca:
Esse ato de colocar o escritor ele-mesmo numa trama ficcional talvez tenha efeitos colaterais insuspeitados a princípio. Talvez seja uma forma de lidar com a angústia que o processo criativo envolve, sem recair na retaliação física (tipo o Drummond que, de tanto dar esporros na sua persona lírica, foi se distanciando de seu corpo [vide o poema da mão suja] e criando um a espécie de saco-de-pancadas [que é o José]). Talvez seja uma forma de manter a idealidade e contravencionalidade do fazer literário. Poder atacar e subsistir. O que desaguaria em exemplos irônicos como o da vendagem do Leminski: um poeta que defendia a poesia como uma in-utilidade desbancar um best-seller.
A questão do suicídio
por Joca Reiners Terron
Com frequência, tem-se falado da crescente profissionalização dos escritores brasileiros. Andam com excesso de trabalho, cheios de oportunidades etc. O mercado editorial é uma mãe, e mesmo que a maior parte dos autores não sobreviva de direitos autorais (parece ser apenas questão de tempo que os livros comecem a vender, é o que se diz), não lhes faltam serviços muito bem pagos de preparação de texto, tradução, revisão, redação de aparatos (que é jargão para orelhas, sinopses, releases e demais instrumentos utilizados na divulgação de um livro) e o circuito de festivais literários só aumenta, com gordos cachês para os palestrantes (cuja frequente solicitação obriga os autores a desenvolver seu talento retórico, ao qual também é desejável somar-se alguma propensão à comédia stand-up, muito em voga nos dias de hoje), hospedados habitualmente em hotéis e resorts de alto nível, além de alimentados com o que há de melhor na rica e variada culinária regional do país, ademais três vezes ao dia (pelo menos nos dias em que tais escritores se encontram no cumprimento da função para a qual foram convidados, de palestrantes ou então debatedores, e que não são poucos ao ano). Alguns até colaboram com a imprensa e escrevem em blogues, meios reconhecidamente esbanjadores no que se refere a pró-labores. São todos uns vendidos.
O óbvio reflexo desse processo (e o relativo conforto que tão recente condição lhes atribui, ainda mais se acrescida às vultuosas somas distribuídas pelos prêmios e bolsas de criação literária ou mesmo a alta grana resultante da venda de histórias para o cinema), é a queda acentuada da taxa de suicídio entre escritores brasileiros das novas, novíssimas e nem tão novas gerações. Evidentemente, a consolidação do ofício não parece ser o único motivo para que isso aconteça.
Não é de hoje que se sabe das relações entre criatividade artística e doenças mentais. Aristóteles menciona a ligação entre melancolia e “enfermidades oriundas da bile negra” em um ensaio clássico que lhe foi atribuído, Problema xxx, no qual comenta aspectos da medicina antiga, que relacionava os quatro elementos naturais – a saber, água, terra, fogo e ar – à tipificação dos humores, divididos em sangue, fleuma, bile amarela dos coléricos e bile negra dos melancólicos. O escritor, o poeta e o filósofo, portanto, estariam sob influência de Saturno, planeta que rege os humores. Desse modo, ao nascer tinham seu destino artístico assinalado, ao mesmo tempo em que eram condenados à instabilidade psíquica. Essa condição bipolar, aparentemente, facilitava (ou induzia) à compreensão anímica da realidade, culminando em obras de arte (no caso, obras de arte clássicas, ou seja obras que deram sentido àquilo que atualmente se compreende como arte).
A coisa não parou por aí: em um curioso livrinho de 1997 chamado …Or Not to Be, A Collection of Suicide Notes, Mark Etkind cita estudos mais recentes, como aqueles realizados pelo psiquiatra Kay Jamison, que afirmam que maníacos depressivos usam rimas, aliterações e palavras idiossincráticas em proporção muito maior que outras pessoas. “Quando pensamos em escritores criativos”, afirma Jamison, “pensamos em ousadia, sensibilidade, inquietude e descontentamento, todas qualidades do temperamento maníaco depressivo”. Etkind lamenta o fato de que a mesma doença que conduz artistas à grandeza, também os impeça de usufruir de seu sucesso. Pesquisas do dr. Jamison concluíram que 1) Escritores sofrem de dez a vinte vezes mais de crises maníaco-depressivas do que outras pessoas; 2) Entre os britânicos, amostragem indica que 38% dos artistas criativos passam por tratamentos de transtornos de humor. Entre poetas, a porcentagem é ainda mais alta, atingindo 50%.
É notória, assim como anacrônica, a conformação romântica da persona literária. O escritor contemporâneo, para ajustar medidas de seu próprio éthos, recorre a crenças passadistas. O incrível é que não se suicide mais. O estudo de Jamison constatou o aumento estatístico de suicídios ocorridos após a morte de uma figura pública, invariavelmente um artista. É chamado de “Efeito Werther”, pois refere-se à onda de suicídios causada no século 18 pelo romance de Goethe, Os Sofrimentos do Jovem Werther. A. Alvarez, em seu ensaio O Deus Selvagem, afirma que “no ponto mais alto do Romantismo a vida em si mesma era como se fosse ficcional, e o suicídio se tornou um ato literário.” Para verificar a índole composta de recusas e ressentimentos dos escritores atuais, basta visitar o Facebook. A lista de acusações de uns contra outros é imensa: são vendidos. Entreguistas. A panelinha do norte acusa a do sul de privilégios e submissão às forças do capital. E vice-versa. No entanto, não se suicidam mais. Por quê? Parece-me um contrassenso.
Essa mistura inseparável entre vida e arte que parece subsistir à prova da passagem do tempo nas mídias sociais conspira para que a literatura permaneça em sua posição aprioristicamente imaterial, que não deve ser conspurcada por aspectos comerciais ou mesmo que não possa ser profissionalizada, tornando-se motivo de sustentação financeira de quem a faz, com o preço de não ser literatura, de ser outra coisa qualquer que não seja literatura verdadeira. Comparada com o negócio das artes plásticas, da música popular ou do cinema, por exemplo, onde artistas sobrevivem de sua produção (e até enriquecem) não pertence a 2013 mas a 1787, ano da publicação do livro de Goethe.
E no entanto, não se suicidam.
Tenho uma teoria a respeito, vaga como provavelmente é vago este artigo: não se suicidam porque não estão mais sozinhos, porque agora têm com quem falar. Não são muitos, apenas uns cinco ou seis amigos que comentam a cada vitupério essencial de um, que retribui ao brado retumbante de outro, e assim vão, nessa pequena cadeia inconsútil de almas de outrora, perdidas no presente desses espasmos e frêmitos digitais de Facebook. Às vezes brigam entre si.
Não faz mal ressaltar que, assim como Edwin Schneidman, eu nunca li um bilhete de suicídio que desejasse ter escrito.
E no entanto não se suicidam, nem mesmo no Facebook onde poderiam apagar seus perfis, porém não apagam.
http://www.blogdacompanhia.com.br/2013/11/a-questao-do-suicidio/
Acho que podemos trazer de volta uma discussão sobre a ficcionalização do próprio escritor que discutimos num tópico sobre o artigo do Luís Antônio Giron. Destaco essa passagem aqui do texto do Joca:
A. Alvarez, em seu ensaio O Deus Selvagem, afirma que “no ponto mais alto do Romantismo a vida em si mesma era como se fosse ficcional, e o suicídio se tornou um ato literário.”
Esse ato de colocar o escritor ele-mesmo numa trama ficcional talvez tenha efeitos colaterais insuspeitados a princípio. Talvez seja uma forma de lidar com a angústia que o processo criativo envolve, sem recair na retaliação física (tipo o Drummond que, de tanto dar esporros na sua persona lírica, foi se distanciando de seu corpo [vide o poema da mão suja] e criando um a espécie de saco-de-pancadas [que é o José]). Talvez seja uma forma de manter a idealidade e contravencionalidade do fazer literário. Poder atacar e subsistir. O que desaguaria em exemplos irônicos como o da vendagem do Leminski: um poeta que defendia a poesia como uma in-utilidade desbancar um best-seller.