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Pobre romance brasileiro (LUÍS ANTÔNIO GIRON)

Ana Lovejoy

Administrador
Coluna de Luís Antônio Giron que saiu na época, reproduzo aqui:

Que grande romance brasileiro surgiu nos últimos 20 anos? Que autor nacional gera discussão ou mesmo revolta com suas histórias que quebram tabus? Há um escândalo nas rodas literárias capaz de indignar a nação? A resposta é um triplo não. A estagnação se apossou da vida literária do Brasil – para não mencionar a vida cultural como um todo. Nem as celebridades consagradas e muito menos as novas gerações conseguem lançar obras importantes. Vou tentar analisar as cinco razões de nossa absoluta esterilidade.
Em primeiro lugar, sofremos de superprodutividade e hiperatividade. Mas o volume de lançamentos não condiz com a qualidade dos textos. No Brasil, são lançados cerca de 2 mil títulos de ficção nacional por ano, entre romances, novelas e contos. Os blogs literários abundam, além de ficção via Twitter e Facebook. Mais de cem festivais de literatura inspirados na Festa Literária Internacional de Paraty acontecem pelo país inteiro. São eventos que movimentam e dão aos escritores emprego e uma razão de existir. Eles promovem o contato estreito entre autores, editores, jornalistas, agentes, blogueiros e microblogueiros. São festivais tão intensos que vivem de si próprios, dispensando até a figura do leitor. Os autores adoram se ler mutuamente – e distribuir elogios sob a condição de receberem igual honraria num futuro próximo. Também dão declarações para tudo que é veículo de comunicação, mesmo que não tenham nada a dizer de fato. Por seu turno, os críticos respondem em suas resenhas e tuites com uma comovente cumplicidade. E participam de júris que premiam os mesmos escritores.
Essa prática – eu diria círculo vicioso – dá origem à segunda causa da miséria intelectual que assola o país: a autocomplacência da classe autoral, se é que podemos dizer assim. Nunca houve tanta gente escrevendo tanto, nem tanta bobagem. Aqui se encaixa uma terceira razão: como todo mundo se cansou da velha geração de ficcionistas, que se repetia e chafurdava na própria mediocridade, a solução foi depositar as esperanças nas gerações mais frescas. O resultado é o atual culto à juventude dourada da literatura. Os jovens adquiriram o direito – que os moços do passado não tiveram – de escrever o que bem entendem, com todo o brilho da falta de experiência e de visão de mundo que lhe são característicos. A leviandade e a abordagem superficial são encaradas com bonomia pelos especialistas e agentes literários, que aprovam tudo o que é produzido pelos romancistas, desde que tenham menos de 30 anos.
Tudo isso seria perdoável caso os novos e velhos autores estivessem se ocupando de temas relevantes. A ausência de assunto é a quarta razão. Não vou citar nomes porque seria dar corda à polêmica. Tenho me debruçado com grande boa vontade sobre a ficção brasileira contemporânea. E, salvo exceções, o resultado é desapontador. O assunto predominante dos romancistas atuais é o próprio umbigo dos romancistas atuais. Os protagonistas desses romances e narrativas curtas não passam de extensões mais ou menos infiéis de seus autores, em geral indivíduos com problemas de criatividade ou, em casos mais graves, dor de corno. Eles criam tramas onfálicas e autoficcionais que giram em torno da própria barriga ou do próprio sexo. Não há ambição e nem mesmo o risco de errar.
Nenhum autor parece se importar com a investigação da alma humana e das sombras do inconsciente. Alguns são partidários da fantasia e da trama policial, embora eles não façam mais que uma frágil imitação do romance pop e dos quadrinhos. Pouquíssimos se preocupam em lidar com a agitada história do Brasil, mesmo a recente. Até porque todo mundo já se esqueceu de que um dia tivemos uma ditadura, fomos muito pobres e analfabetos. Eram tempos em que surgiam autores como Machado de Assis e João Guimarães Rosa – figuras hoje tão veneradas como pouco lidas, pelo menos por quem deveria lê-los. A falta de imaginação matou o espírito dos autores. Estão tão mortos que não se importam nem mesmo com os leitores.
Nem vou me deter no aspecto do estilo, pois este foi deixado de lado há muito tempo. Os jovens romancistas consideram o experimentalismo e o uso poético da narrativa uma atividade ultrapassada. Mesmo assim, fazem questão de imitar alguns modelos experimentais. Nove entre dez autores locais com menos de 30 anos querem virar a reencarnação de David Foster Wallace, o autor americano que, sintomaticamente, se enforcou em 2008 durante uma crise de criatividade, enquanto tentava escrever o romance The pale king. As versões tupiniquins de Foster Wallace não correm risco e não fazem o favor aos leitores de se suicidarem... Quem sabe assim adquirissem um status de mito post mortem.
Infelizmente, não há nem um único cadáver jovem para abrilhantar a literatura brasileira contemporânea. Os escritores estão todos vivos, saudáveis e desfrutando de viagens planetárias e projetos de renúncia fiscal. Eis aqui o quinto motivo de nosso por assim dizer excesso de modéstia literária: o poder do marketing. Hoje nenhum contador de histórias poderá triunfar sem se cercar de especialistas em promoção pessoal, institucional e comercial. Autores de ficção são produtos vendáveis: têm de reunir beleza, juventude e, de preferência, mas não obrigatoriamente, inteligência.
Deve existir alguma solução para aperfeiçoar a qualidade de nossos romancistas e contistas. Não consigo vislumbrar nada melhor do que aposentar prematuramente alguns deles – e sair em busca de talentos legítimos. Seria necessário uma limpeza na literatura nacional. Minha impressão é de que ela é bem pior que a do resto dos países ibero-americanos e perdeu um tempo tão precioso que não será capaz de se recuperar da inferioridade.

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E aí? Dor de cotovelo? Nunca será publicado no selo do Draccon? Concordam, discordam, etc?
 
E aí? Dor de cotovelo? Nunca será publicado no selo do Draccon? Concordam, discordam, etc?

Basta lembrar da Carta Capital do começo do ano, com a chamada de capa "O vazio da cultura – ou a imbecilização do Brasil". É gente que quer criar um senso elitista artificial mas que são, como diria Cazuza, "caboclos querendo ser ingleses" - ou seja, é impossível.
 
Tem algumas hipérboles no texto, mas tem muita coisa que acerta na lata, como o compadrismo entre escritores (que é escancarado principalmente na literatura especulativa). Do jeito que trocam elogios sobre as obras uns dos outros, seria de pensar que temos um Grande Sertão: Veredas sendo publicado por semana, mas basta pegar uma dessas obras "fenomenais" na mão para ver o tamanho da propaganda enganosa. Tá aí o próprio Draccon que não me deixa mentir.
 
Tem algumas hipérboles no texto, mas tem muita coisa que acerta na lata, como o compadrismo entre escritores (que é escancarado principalmente na literatura especulativa). Do jeito que trocam elogios sobre as obras uns dos outros, seria de pensar que temos um Grande Sertão: Veredas sendo publicado por semana, mas basta pegar uma dessas obras "fenomenais" na mão para ver o tamanho da propaganda enganosa. Tá aí o próprio Draccon que não me deixa mentir.

Também achei essa parte do "compadrismo" bem acertado - e isso não se resume apenas aos autores fantásticos, como também os moleques da Granta. A autoficção virou tendência geral, e o José Louzeiro disse algo bem acertado recentemente, "os autores perderam o interesse na vida alheia". Contudo, não dá pra apontar o dedo pra todo um grupo e dizer, "cês tão mal". Tanto entre subzeros e inGrantas há algo de aproveitável. Talvez não seja questão de termos autores insossos, mas de não termos uma crítica mais feroz e ativa no que concerne à produção cultural.
 
Eu concordo em grande parte com ele. Lembro de um post da Bensimon no blog do Cia em que ela diz odiar um livro que pretendia revolucionar a literatura brasileira, mas não poderia falar sobre isso. Em outro post, ela diz que atingiu o lugar de escritora, no meio de pessoas acima da mediocridade da classe média (minhas palavras, mas por aí). Eu sempre tive bem presente, pelo que eu leio dos nossos novos escritores e pelo que eles falam de si, que boa parte deles tem mais interesse em ser escritor do que em escrever um bom livro. A coisa parece não passar muito de uma tentativa de se manter "na vida cultural do país". Ou seja, boa parte dos nossos autores é como boa parte dos nossos políticos: mais preocupados em manter os postos que ocupam do que em fazer algo de relevante.

A incapacidade de enxergar os arredores, de fugir um pouco do próprio mundo também é bem latente. Sempre me pergunto quando alguém vai se prestar a escrever um bom livro que trabalhe alguma coisa da história ou da cultura do Brasil. De agora até 2020, alguém vai escrever um bom livro que se passe nos anos da ditadura? Alguém vai resgatar e manter documentado em ficção de qualidade como era a vida na época do governo Collor, como os pais eram mais irritadiços, como as finanças eram uma preocupação constante e imprevisível? E quem vai fazer tudo isso sabendo construir frases e sem se entregar à autocomplacência?

E sobre o David Foster Wallace: ainda que ele tenha colocado equivocadamente a questão do suicídio, e ainda que eu tenha sido tiete dele por um bom tempo também: PELO AMOR DE DEUS, não dá mais pra aguentar as referências ao nome dele, nem aquele discurso que se faz de sincero fabricando ingenuidade, nem posts cheios de notas de rodapé trazendo informaçõezinhas pessoais do autor.
 
Alguém vai resgatar e manter documentado em ficção de qualidade como era a vida na época do governo Collor, como os pais eram mais irritadiços, como as finanças eram uma preocupação constante e imprevisível?

a felicidade é fácil do edney silvestre faz um trabalho bem legal do período do governo collor.

a parte da camaradagem entre autores me parece algo natural. por coincidência hoje mesmo eu estava lendo alguns textos sobre blurbs (porque estava meio incomodada com a quantidade de blurbs que tenho visto assinados pelo franzen), e quase todos eles deixavam no mínimo implícito que um autor elogia outro esperando aumentar a rede de contatos e, assim, as indicações (e o reconhecimento) para sua próxima publicação. obviamente não seria diferente por aqui, ainda mais se formos considerar que alguns autores por várias questões (idade, cidade onde moram, interesses em comum, etc) são DE FATO amigos (e comes, se for considerar o casal mágico lá). não acho que isso seja diferente em outras formas de arte, btw. aliás, não só em arte, até em empresa é assim. não que eu ache certo, mas só não acho que seja um "mal" só da literatura brasileira.
 
@Tillion: lamento ser eu a lhe informar, mas você nunca vai ser publicado pelo selo Fantasy. :lol:

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a felicidade é fácil do edney silvestre faz um trabalho bem legal do período do governo collor.

a parte da camaradagem entre autores me parece algo natural. por coincidência hoje mesmo eu estava lendo alguns textos sobre blurbs (porque estava meio incomodada com a quantidade de blurbs que tenho visto assinados pelo franzen), e quase todos eles deixavam no mínimo implícito que um autor elogia outro esperando aumentar a rede de contatos e, assim, as indicações (e o reconhecimento) para sua próxima publicação. obviamente não seria diferente por aqui, ainda mais se formos considerar que alguns autores por várias questões (idade, cidade onde moram, interesses em comum, etc) são DE FATO amigos (e comes, se for considerar o casal mágico lá). não acho que isso seja diferente em outras formas de arte, btw. aliás, não só em arte, até em empresa é assim. não que eu ache certo, mas só não acho que seja um "mal" só da literatura brasileira.

Me interessei pelo livro do Edney Silvestre, tinha me passado despercebido. Lembro de pretender comprar o primeiro livro dele (que também atendia a algumas das minhas reclamações), mas sempre desistindo. A Companhia também tá lançando um livro potencialmente interessante (Em breve tudo será mistério e cinza). Mas são dois escritores de fora da nossa atual geração de ouro.

Sobre os blurbs e as trocas de elogios: claro que é comum e é uma prática válida pra questões comerciais. O Laub esses tempos disse que torce pra que os livros dos amigos dele sejam bons, pra que ele não precise enfrentar o dilema de ser hipócrita e elogiar ou acabar criticando e estremecendo uma amizade. O problema é a ausência de críticas pra lado nenhum. Autores atuais são intocáveis, o máximo que eles se permitem é dizer que não gostam de Clarice Lispector. Por outro lado, o Franzen costuma elogiar e criticar quase que por militância, mas fica pelo menos claro que ele tá defendendo uma ideia de literatura, de uma comédia social de prosa realista, então tu já sabe que ele vai elogiar a Paula Fox, o Russell Banks (nunca o Updike), mas ele também não se furta a criticar inclusive o Foster Wallace.
 
Mas os autores e críticos fazem mesmo esse clubinho do tapinha nas costas? Nunca vi muito disso. Acho que tô por fora. Agora que a gente vê os autores se achando muito a gente vê...

No mais achei o artigo bem generalista. Ele precisaria dar exemplos e especificar algumas ideias, mas parece ele mesmo evitar a "polêmica". Por exemplo: quem é a geração consagrada e quem é a nova? Obras "importantes" em que sentido? O que seriam "temas relevantes"? A "investigação da alma humana"? a história do Brasil?

Acho que ele está se guiando muito pelo modelo das artes "de vanguarda" que deveriam gerar discussão, revolta, ser experimentais e esquecendo que vivemos em outro, o do mercado das artes. Muito do que ele critica pode ser atribuído, de certa forma à falta de leitores. Feiras literárias (irrelevantes?), só escritores que leem escritores (e quem mais lê no país?), auto-ficção (como tentativa de ganhar o leitor pela exposição da intimidade da "celebridade" escritor), falta de experimentalismo (ninguém quer mais dedicar muito tempo decifrando as coisas, o público brasileiro não tem formação, é preciso abandonar o experimentalismo até certo ponto se quiser ser lido). E acho que a gente tem vários bons romances nos últimos 20 anos, inclusive "experimentais", como o "eles eram muitos cavalos", para citar um.

Basta lembrar da Carta Capital do começo do ano, com a chamada de capa "O vazio da cultura – ou a imbecilização do Brasil". É gente que quer criar um senso elitista artificial mas que são, como diria Cazuza, "caboclos querendo ser ingleses" - ou seja, é impossível.
Quem quer criar um senso elitista artificial? O Luís Antônio Giron ou os jovens autores/autores contemporâneos?

Também achei essa parte do "compadrismo" bem acertado - e isso não se resume apenas aos autores fantásticos, como também os moleques da Granta. A autoficção virou tendência geral, e o José Louzeiro disse algo bem acertado recentemente, "os autores perderam o interesse na vida alheia". Contudo, não dá pra apontar o dedo pra todo um grupo e dizer, "cês tão mal". Tanto entre subzeros e inGrantas há algo de aproveitável. Talvez não seja questão de termos autores insossos, mas de não termos uma crítica mais feroz e ativa no que concerne à produção cultural.
Você acha que uma crítica melhor melhoraria os artistas, Bruce? Tenho minhas dúvidas de como ela faria isso.

Eu concordo em grande parte com ele. Lembro de um post da Bensimon no blog do Cia em que ela diz odiar um livro que pretendia revolucionar a literatura brasileira, mas não poderia falar sobre isso. Em outro post, ela diz que atingiu o lugar de escritora, no meio de pessoas acima da mediocridade da classe média (minhas palavras, mas por aí). Eu sempre tive bem presente, pelo que eu leio dos nossos novos escritores e pelo que eles falam de si, que boa parte deles tem mais interesse em ser escritor do que em escrever um bom livro. A coisa parece não passar muito de uma tentativa de se manter "na vida cultural do país". Ou seja, boa parte dos nossos autores é como boa parte dos nossos políticos: mais preocupados em manter os postos que ocupam do que em fazer algo de relevante.
Por um lado, parece que o que interessa é mais a fama mesmo (e o que contribui para a inflação de publicações que ele fala). Do tipo: qualquer um pode escrever. Mas a Bensimon não é muito parâmetro não, acho (falo isso pelos posts dela no blog da Companhia, não li nada dela (como você leu), mas eles me deixam com um pé atrás).
 
Última edição:
O principal problema vai continuar sendo um: se as pessoas não tirarem essa mania de resetar a história pra validar argumentos, a comunicação vai sempre redundar nesse tipo de artigo espúrio como o do Giron.

Acho que muita coisa do que eu falaria já foi dita aqui, como a coisa do compadrismo literário -- basicamente, o que eu iria dizer a Anica disse.

Queria falar mais sobre essa coisa da tendência autobiográfica do romance contemporâneo. Se tomarmos simplesmente o que foi dito pelo Giron, que toma em algumas passagens alguns critérios de análise um tanto quanto questionáveis (ele dá a entender que só o romance com escopo metafísico prevalece), não vamos chegar a conclusão nenhuma. Mas, basicamente, se por um lado é um fato que a imersão autobiográfica é uma tendência não só do romance, como da literatura em geral, por outro nós não podemos traduzir isso no sentido apocalíptico ou de um modo de repetição, quem dirá no fato de que os escritores perdem a capacidade de falar do outro.

Na verdade, via de regra a literatura de uns tempos pra cá vem tratando muito a figura do outro. E a tal ponto que algumas das técnicas narrativas por ela utilizadas mostram isso de modo mais ou menos claro, como a técnica do simultaneísmo ou as raízes objetivistas (cabralinas) no caso da poesia. É notório que os romancistas se pautaram em relações humanas tênues, não raro incomunicáveis que se ligam por mínimos fios de contato. Por exemplo, em David Foster Wallace eu considero mais ou menos frequente a utilização da nota de rodapé como um modo icônico, simbólico e efetivo de ligar histórias que não se comunicam. É uma forma subterrânea de mostrar que as relações sociais continuam vivas, tá certo, mas que estão sob nossos pés -- mais ou menos como a teia que me une aos meus 180 amigos no Facebook: onde ela está?

Com o advento desta segunda década, muita coisa mudou. Já não podemos falar tão impunemente num panorama pós-utópico. Quem diria que o brasileiro sairia às ruas, por exemplo? Quem diria que ocupariam Wall Street? É claro que a narrativa de escopo simultaneísta sofreu um baque, de modo que a tendência da literatura agora pode ser claramente a de tratar uma intimidade, seja a de tratar histórias íntimas, seja a de tratar a autobiografia, seja a de trazer o, digamos, cotidiano, o banal-afetivo para a esfera literária.

Cito, para tal, o fabuloso estudo de André Schwartz denominado A tendência autobiográfica do romance contemporâneo: Coetzee, Roth e Piglia. Em determinada passagem, o autor nos diz:

Se o fenômeno vem sendo bastante comentado por analistas de tantas áreas, essa interpenetração entre autobiografia e ficção ainda precisa ser mais bem discutida dentro dos estudos literários, uma vez que - e é essa a hipótese deste estudo - assume sua configuração corrente nas últimas décadas, depois da Segunda Guerra Mundial, ou, mais apropriadamente, em decorrência dos eventos ocorridos na Segunda Guerra Mundial.

(...)

É como se houvesse uma necessidade fundamental de retornar à cena em que tudo implodiu. (...) Se o homem encolhera, se a humanidade atingira o fundo do poço, talvez esse retorno, esse recomeço, passasse por um olhar ficcionalizado para a própria história pessoal, para a constituição contraditória e incerta desse único sujeito que talvez se possa conhecer e desconhecer minimamente, o pequeno eu.

Isto é, as reviravoltas que hoje presenciamos requer ao homem uma forma de comunicação que não mais pode se pautar apenas na constatação incomunicável de nossas relações. Afinal de contas, este é um padrão posto em cheque. Parece muito mais claro que a internet não serve apenas majoritariamente como um meio de afastar as pessoas, mas, porquê não?, de uni-las. Dito pelo Michel Laub em Existe amor no FB, "perdoemos o resto da humanidade, que é filha de Deus, mas não tanto, por usar os atalhos disponíveis -- incluindo o Facebook, por que não? -- para chegar lá."

O âmbito autobiográfico, sendo assim, é um modo de autoavaliação que consiga trazer consigo uma forma de encarar a realidade e não prescindir da objetividade que está inerente a tais coisas. É uma fusão de um panorama que incomodava a crítica pelo fato de parecer pendido demais para o seco, o estéril. A narrativa autobiográfica é o contar uma história, naturalmente, mas um modo de contá-la que traga o indivíduo consigo, que traga um retorno. Essa história é a formação de uma identidade, pois o literato hodierno entendeu que identidade=indivíduo+espaço. De algum modo é como se ele chegasse a essa equação e, para retratá-lo com a profusão e profundidade de suas implicações num ambiente onde o indivíduo e o espaço se virtualizam, ele vai direto no olho do furacão: na narrativa de matizes autobiográficos, bem à guisa do romance Mãos de Cavalo do Daniel Galera (cada vez mais ele sobe no meu conceito).

No âmbito da poesia, é comum que os poetas contemporâneos falem de viagens. É comum que surjam poetas que tratem do cotidiano de modo não raro epifânico. Dito pela poetisa Alice Sant'Anna numa coluna entitulada Poesia do Cotidiano, a revelação que ocorre à Adília Lopes frente a uma flor ou ao Carlito Azevedo passando pelo Habib's após o enterro da mãe é algo que não apenas se vale da experiência autobiográfica, coisa que o Bandeira já trabalhava muito bem, mas é algo epifânico, é como se fosse a descoberta de uma informação que justamente o fluxo de informações não pode dar. Para citar outra coluna da Alice, Viagens Necessárias,

Eles não estão interessados em fazer turismo, conhecer pontos históricos, experimentar a gastronomia local, tirar fotos sorridentes. As duas viagens são grandiosas, custosas, e provavelmente lhes causarão arrependimento. Mas tanto Frances quanto Marc precisam deixar os olhos soltos em outra paisagem, em algum canto que não lhes é familiar, longe de casa.

Apesar de falar de uma obra alheia, isso é revelador pois mostra que a experiência epifânica com o cotidiano parece ultrapassar a própria epifania, é algo que traz uma marca que ainda não sei definir direito no poeta... A Alice tem um poema que inclusive fala disso, Rabo de Baleia:

um enorme rabo de baleia
cruzaria a sala nesse momento
(...)
é abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
(...)

Onde quero chegar é: a crítica do Giron é espúria em muitos momentos, repito. Reclamar que a literatura contemporânea não produz muitos Guimarães Rosas's é sem pé nem cabeça, é você querer resetar a história para que seu argumento caiba direitinho. A literatura contemporânea é feita de autores medianos e medíocres (TODA literatura é, seja o Trecentto, a literatura elizabetana, o barroco espanhol), e isso sempre em doses cavalares, pois somente o tempo, isto é, uma pancada de leitores reunidos e com mentes distintas; só o tempo pode peneirar isso. Se o leitor contemporâneo não está preparado para ler obras ruins, então que ele SE ESCONDA atrás do cânone. É um sinônimo de fraqueza não interpretar uma desilusão como um impulso para novas descobertas. Dito pelo T. S. Eliot:

We shall not cease from exploration
And the end of all our exploring
Will be to arrive where we started
And know the place for the first time.

Afora isso, quando ele elege pontos de chegada metafísicos para a qualidade de uma obra, ou pontos totalizantes, por mais que isso seja uma verdade relativa, pois toda grande obra toca ou aborda temas universais direta ou indiretamente, ele está, pelo contrário, dando a entender de forma até mesmo clara que a obra deve tratar de modo direto, o que é um contrassenso ridículo e até mesmo risível. Se pegarmos uma obra como o Ulysses, vamos ver exatamente o contrário: como dito pelo Caetano Galindo neste vídeo, o Ulysses não é uma obra de escopo cartesiano. Talvez nas partes do Stephen seja, mas só mesmo uma deturpação interpretativa muito grande pra me pegar o Leopold Bloom e meter metafísica no coitado, quando ele é um Esteves Sem Metafísica quase que do começo ao fim. E isso não o empobrece, não preciso nem dizer.

Por fim, o panorama autobiográfico da literatura contemporâneo é um modo, em linhas gerais, da literatura unir duas tendências que, cedo ou tarde, toda literatura tem de dar um jeito. Seja, por exemplo, num Yeats unindo, graças aos conselhos dum Pound, suas facetas metafísicas com suas facetas objetivas, suas facetas sentimentais com suas facetas chão-e-asfalto, seja mesmo na técnica narrativa caudalosa dum Proust que vai da descrição lírica-objetivada do jardim dos Swann às repercussões do som do violino nas lembranças do Sr. Swann. É um novo passo, uma mudança de paradigmas que não requerem com tanta facilidade técnicas antigamente empregadas, mas, antes, a descoberta de novos caminhos que, se por um lado parecem serem os mesmos, por outro mostram uma necessidade distinta e, por conseguinte, um resultado distinto. Ainda estou raciocinando acerca disso no âmbito da poesia, pois não acho que as implicações banais-epifânicas aludidas pela Alice e por ela praticadas redundem, se forem bem desenvolvidas, na lírica terna e carinhosa, amargurada e (auto)irremediável do Bandeira. Tem algo de novo acontecendo e minhas antenas ainda não captaram o quê que tá rolando.
 
a parte da camaradagem entre autores me parece algo natural. por coincidência hoje mesmo eu estava lendo alguns textos sobre blurbs (porque estava meio incomodada com a quantidade de blurbs que tenho visto assinados pelo franzen), e quase todos eles deixavam no mínimo implícito que um autor elogia outro esperando aumentar a rede de contatos e, assim, as indicações (e o reconhecimento) para sua próxima publicação. obviamente não seria diferente por aqui, ainda mais se formos considerar que alguns autores por várias questões (idade, cidade onde moram, interesses em comum, etc) são DE FATO amigos (e comes, se for considerar o casal mágico lá). não acho que isso seja diferente em outras formas de arte, btw. aliás, não só em arte, até em empresa é assim. não que eu ache certo, mas só não acho que seja um "mal" só da literatura brasileira.

O próprio Franzen tem uma relação muito próxima com Chabon, Lethem, entre outros. Updike andava junto com Mailer e Vidal. Harper Lee e Capote. Dickens e Collins. Os românticos alemães. É impossível que não haja amizade nesse meio. Contudo, esse companheirismo não pode também cegar a crítica dos outros - afinal, como o outro pode amadurecer/crescer/se aprimorar se só lhe elogiam?

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Quem quer criar um senso elitista artificial? O Luís Antônio Giron ou os jovens autores/autores contemporâneos?

O Giron. Nossos (jovens) autores (contemporâneos) venderam a alma por status mesmo. :lol:

Você acha que uma crítica melhor melhoraria os artistas, Bruce? Tenho minhas dúvidas de como ela faria isso.

Se a crítica fosse mais incisiva, soubesse onde se apoiar pra demonstrar onde está a "falha" e fazer o autor repensar, talvez pudesse fazer isso. Mas repare bem: disse "talvez". Se já falta autocrítica e se o show de egos ocorre a passo largo, talvez o autor nem se incomode com aquela resenha que desconsiderou sua obra.
 
Se a crítica fosse mais incisiva, soubesse onde se apoiar pra demonstrar onde está a "falha" e fazer o autor repensar, talvez pudesse fazer isso. Mas repare bem: disse "talvez". Se já falta autocrítica e se o show de egos ocorre a passo largo, talvez o autor nem se incomode com aquela resenha que desconsiderou sua obra.

Se importar? Please.
Estamos na época do Facebook em que tudo é mero #recalque das #inimigas
Sempre.
 
O principal problema vai continuar sendo um: se as pessoas não tirarem essa mania de resetar a história pra validar argumentos, a comunicação vai sempre redundar nesse tipo de artigo espúrio como o do Giron.

Acho que muita coisa do que eu falaria já foi dita aqui, como a coisa do compadrismo literário -- basicamente, o que eu iria dizer a Anica disse.

Queria falar mais sobre essa coisa da tendência autobiográfica do romance contemporâneo. Se tomarmos simplesmente o que foi dito pelo Giron, que toma em algumas passagens alguns critérios de análise um tanto quanto questionáveis (ele dá a entender que só o romance com escopo metafísico prevalece), não vamos chegar a conclusão nenhuma. Mas, basicamente, se por um lado é um fato que a imersão autobiográfica é uma tendência não só do romance, como da literatura em geral, por outro nós não podemos traduzir isso no sentido apocalíptico ou de um modo de repetição, quem dirá no fato de que os escritores perdem a capacidade de falar do outro.

Na verdade, via de regra a literatura de uns tempos pra cá vem tratando muito a figura do outro. E a tal ponto que algumas das técnicas narrativas por ela utilizadas mostram isso de modo mais ou menos claro, como a técnica do simultaneísmo ou as raízes objetivistas (cabralinas) no caso da poesia. É notório que os romancistas se pautaram em relações humanas tênues, não raro incomunicáveis que se ligam por mínimos fios de contato. Por exemplo, em David Foster Wallace eu considero mais ou menos frequente a utilização da nota de rodapé como um modo icônico, simbólico e efetivo de ligar histórias que não se comunicam. É uma forma subterrânea de mostrar que as relações sociais continuam vivas, tá certo, mas que estão sob nossos pés -- mais ou menos como a teia que me une aos meus 180 amigos no Facebook: onde ela está?

Com o advento desta segunda década, muita coisa mudou. Já não podemos falar tão impunemente num panorama pós-utópico. Quem diria que o brasileiro sairia às ruas, por exemplo? Quem diria que ocupariam Wall Street? É claro que a narrativa de escopo simultaneísta sofreu um baque, de modo que a tendência da literatura agora pode ser claramente a de tratar uma intimidade, seja a de tratar histórias íntimas, seja a de tratar a autobiografia, seja a de trazer o, digamos, cotidiano, o banal-afetivo para a esfera literária.

Cito, para tal, o fabuloso estudo de André Schwartz denominado A tendência autobiográfica do romance contemporâneo: Coetzee, Roth e Piglia. Em determinada passagem, o autor nos diz:



Isto é, as reviravoltas que hoje presenciamos requer ao homem uma forma de comunicação que não mais pode se pautar apenas na constatação incomunicável de nossas relações. Afinal de contas, este é um padrão posto em cheque. Parece muito mais claro que a internet não serve apenas majoritariamente como um meio de afastar as pessoas, mas, porquê não?, de uni-las. Dito pelo Michel Laub em Existe amor no FB, "perdoemos o resto da humanidade, que é filha de Deus, mas não tanto, por usar os atalhos disponíveis -- incluindo o Facebook, por que não? -- para chegar lá."

O âmbito autobiográfico, sendo assim, é um modo de autoavaliação que consiga trazer consigo uma forma de encarar a realidade e não prescindir da objetividade que está inerente a tais coisas. É uma fusão de um panorama que incomodava a crítica pelo fato de parecer pendido demais para o seco, o estéril. A narrativa autobiográfica é o contar uma história, naturalmente, mas um modo de contá-la que traga o indivíduo consigo, que traga um retorno. Essa história é a formação de uma identidade, pois o literato hodierno entendeu que identidade=indivíduo+espaço. De algum modo é como se ele chegasse a essa equação e, para retratá-lo com a profusão e profundidade de suas implicações num ambiente onde o indivíduo e o espaço se virtualizam, ele vai direto no olho do furacão: na narrativa de matizes autobiográficos, bem à guisa do romance Mãos de Cavalo do Daniel Galera (cada vez mais ele sobe no meu conceito).

No âmbito da poesia, é comum que os poetas contemporâneos falem de viagens. É comum que surjam poetas que tratem do cotidiano de modo não raro epifânico. Dito pela poetisa Alice Sant'Anna numa coluna entitulada Poesia do Cotidiano, a revelação que ocorre à Adília Lopes frente a uma flor ou ao Carlito Azevedo passando pelo Habib's após o enterro da mãe é algo que não apenas se vale da experiência autobiográfica, coisa que o Bandeira já trabalhava muito bem, mas é algo epifânico, é como se fosse a descoberta de uma informação que justamente o fluxo de informações não pode dar. Para citar outra coluna da Alice, Viagens Necessárias,



Apesar de falar de uma obra alheia, isso é revelador pois mostra que a experiência epifânica com o cotidiano parece ultrapassar a própria epifania, é algo que traz uma marca que ainda não sei definir direito no poeta... A Alice tem um poema que inclusive fala disso, Rabo de Baleia:



Onde quero chegar é: a crítica do Giron é espúria em muitos momentos, repito. Reclamar que a literatura contemporânea não produz muitos Guimarães Rosas's é sem pé nem cabeça, é você querer resetar a história para que seu argumento caiba direitinho. A literatura contemporânea é feita de autores medianos e medíocres (TODA literatura é, seja o Trecentto, a literatura elizabetana, o barroco espanhol), e isso sempre em doses cavalares, pois somente o tempo, isto é, uma pancada de leitores reunidos e com mentes distintas; só o tempo pode peneirar isso. Se o leitor contemporâneo não está preparado para ler obras ruins, então que ele SE ESCONDA atrás do cânone. É um sinônimo de fraqueza não interpretar uma desilusão como um impulso para novas descobertas. Dito pelo T. S. Eliot:



Afora isso, quando ele elege pontos de chegada metafísicos para a qualidade de uma obra, ou pontos totalizantes, por mais que isso seja uma verdade relativa, pois toda grande obra toca ou aborda temas universais direta ou indiretamente, ele está, pelo contrário, dando a entender de forma até mesmo clara que a obra deve tratar de modo direto, o que é um contrassenso ridículo e até mesmo risível. Se pegarmos uma obra como o Ulysses, vamos ver exatamente o contrário: como dito pelo Caetano Galindo neste vídeo, o Ulysses não é uma obra de escopo cartesiano. Talvez nas partes do Stephen seja, mas só mesmo uma deturpação interpretativa muito grande pra me pegar o Leopold Bloom e meter metafísica no coitado, quando ele é um Esteves Sem Metafísica quase que do começo ao fim. E isso não o empobrece, não preciso nem dizer.

Por fim, o panorama autobiográfico da literatura contemporâneo é um modo, em linhas gerais, da literatura unir duas tendências que, cedo ou tarde, toda literatura tem de dar um jeito. Seja, por exemplo, num Yeats unindo, graças aos conselhos dum Pound, suas facetas metafísicas com suas facetas objetivas, suas facetas sentimentais com suas facetas chão-e-asfalto, seja mesmo na técnica narrativa caudalosa dum Proust que vai da descrição lírica-objetivada do jardim dos Swann às repercussões do som do violino nas lembranças do Sr. Swann. É um novo passo, uma mudança de paradigmas que não requerem com tanta facilidade técnicas antigamente empregadas, mas, antes, a descoberta de novos caminhos que, se por um lado parecem serem os mesmos, por outro mostram uma necessidade distinta e, por conseguinte, um resultado distinto. Ainda estou raciocinando acerca disso no âmbito da poesia, pois não acho que as implicações banais-epifânicas aludidas pela Alice e por ela praticadas redundem, se forem bem desenvolvidas, na lírica terna e carinhosa, amargurada e (auto)irremediável do Bandeira. Tem algo de novo acontecendo e minhas antenas ainda não captaram o quê que tá rolando.

Acho que tu torceu um pouco demais a crítica dele. Pegou alguns argumentos dele e aplicou a interpretação mais pobre possível. A crítica dele me parece ser, em parte, quanto à geração de autores desprovida de interesse e/ou capacidade pra lidar com questões que não sejam aquelas imediatamente ao redor (ou imediatamente ao redor da literatura que eles leem), que gera narrativas que usam o meio do autor pra falar do meio do autor. Não acho que ele teria algo contra um romance autobiográfico, nem contra o uso de elementos autobiográficos. A questão é que os nossos romancistas de hoje têm se dedicado a escrever sobre si mesmos ("egotrip", como dizia o Galera), ou a emular a escrita de autores estrangeiros.

Sobre o Mãos de cavalo (tu já chegou a ler o livro?), é o romance que mais fica à margem da autoficção (mais até que o Cordilheira), entre os do Galera. Ele tem diversos elementos autobiográficos (a Esplanada; o morro; a conversa sobre cogumelos, que acho que o Galera baseou no Träsel; o Hermano que é o nome de um amigo do Galera; o próprio apelido "Mãos de cavalo", que era apelido de um amigo do irmão do Galera; as experiências de juventude, etc), mas é mais uma projeção de angústias do autor pra tratar de personagens e de uma história sobre personagens que não são o autor, nem projeções do autor. O Até o dia em que o cão morreu era bem mais umbiguista, e o Barba ensopada de sangue parece voltar a tratar de algumas questões pessoais do Galera, mas já prestando um pouco mais de atenção nos outros personagens.
 
Acho que tu torceu um pouco demais a crítica dele. Pegou alguns argumentos dele e aplicou a interpretação mais pobre possível. A crítica dele me parece ser, em parte, quanto à geração de autores desprovida de interesse e/ou capacidade pra lidar com questões que não sejam aquelas imediatamente ao redor (ou imediatamente ao redor da literatura que eles leem), que gera narrativas que usam o meio do autor pra falar do meio do autor. Não acho que ele teria algo contra um romance autobiográfico, nem contra o uso de elementos autobiográficos. A questão é que os nossos romancistas de hoje têm se dedicado a escrever sobre si mesmos ("egotrip", como dizia o Galera), ou a emular a escrita de autores estrangeiros.

Sobre o Mãos de cavalo (tu já chegou a ler o livro?), é o romance que mais fica à margem da autoficção (mais até que o Cordilheira), entre os do Galera. Ele tem diversos elementos autobiográficos (a Esplanada; o morro; a conversa sobre cogumelos, que acho que o Galera baseou no Träsel; o Hermano que é o nome de um amigo do Galera; o próprio apelido "Mãos de cavalo", que era apelido de um amigo do irmão do Galera; as experiências de juventude, etc), mas é mais uma projeção de angústias do autor pra tratar de personagens e de uma história sobre personagens que não são o autor, nem projeções do autor. O Até o dia em que o cão morreu era bem mais umbiguista, e o Barba ensopada de sangue parece voltar a tratar de algumas questões pessoais do Galera, mas já prestando um pouco mais de atenção nos outros personagens.

Eu até ia comentar que essa "poética da repetição" é algo normal, mas que os nossos autores andam forçando a barra, mas o Rodrigo já deixou claro esse ponto.
 
Última edição:
Eu concordo com ele com o umbiguismo brasileiro e outras coisas. Mas é engraçado ele ser fã do Philip Roth, o sr. umbigo.
 
Acho que tu torceu um pouco demais a crítica dele. Pegou alguns argumentos dele e aplicou a interpretação mais pobre possível. A crítica dele me parece ser, em parte, quanto à geração de autores desprovida de interesse e/ou capacidade pra lidar com questões que não sejam aquelas imediatamente ao redor (ou imediatamente ao redor da literatura que eles leem), que gera narrativas que usam o meio do autor pra falar do meio do autor. Não acho que ele teria algo contra um romance autobiográfico, nem contra o uso de elementos autobiográficos. A questão é que os nossos romancistas de hoje têm se dedicado a escrever sobre si mesmos ("egotrip", como dizia o Galera), ou a emular a escrita de autores estrangeiros.

Sinceramente, acho que ele tem sim:

O assunto predominante dos romancistas atuais é o próprio umbigo dos romancistas atuais. Os protagonistas desses romances e narrativas curtas não passam de extensões mais ou menos infiéis de seus autores, em geral indivíduos com problemas de criatividade ou, em casos mais graves, dor de corno. Eles criam tramas onfálicas e autoficcionais que giram em torno da própria barriga ou do próprio sexo. Não há ambição e nem mesmo o risco de errar.

Vou tentar responder o resto fazendo um link com a próxima pergunta:

Sobre o Mãos de cavalo (tu já chegou a ler o livro?), é o romance que mais fica à margem da autoficção (mais até que o Cordilheira), entre os do Galera. Ele tem diversos elementos autobiográficos (a Esplanada; o morro; a conversa sobre cogumelos, que acho que o Galera baseou no Träsel; o Hermano que é o nome de um amigo do Galera; o próprio apelido "Mãos de cavalo", que era apelido de um amigo do irmão do Galera; as experiências de juventude, etc), mas é mais uma projeção de angústias do autor pra tratar de personagens e de uma história sobre personagens que não são o autor, nem projeções do autor. O Até o dia em que o cão morreu era bem mais umbiguista, e o Barba ensopada de sangue parece voltar a tratar de algumas questões pessoais do Galera, mas já prestando um pouco mais de atenção nos outros personagens.

Sim, já li o Mãos de cavalo. Não conheço tanto as reentrâncias do livro como estas que você apontou, mas eu já nem estava falando tanto do Mãos de Cavalo como um romance autoficcional. Falava dele mais pela questão da identidade que é uma ramificação ou "evolução" do trato autobiográfico. E mesmo os autores que decidiram ou ainda não conseguiram dar esse salto concepcional, e que ficam, como você mesmo disse, usando "o meio do autor pra falar do meio do autor", eu sinceramente não vejo um problema nisso em-si. No campo da poesia essa foi uma discussão recorrente até pouco tempo atrás, com o panorama metalinguístico que cercava essa mesma poesia; mas, de todo modo, também não vejo um problema nem no egotrip nem na emulação da escrita de autores estrangeiros. Esse último parâmetro foi sempre uma condição recorrente de nossa literatura, ainda mais se a considerarmos pelo que ela durante muito tempo não deixou de ser: uma literatura colonizada. E creio que, mesmo que não fosse assim, este é um procedimento comum no processo de construção da literatura contemporânea, onde não há nenhum peneiramento e inevitavelmente vamos ler obras de artistas que ainda estão, ou que jamais conseguirão, superar seus predecessores ou influências mais diretas.

E é a partir disso que não considero que empobreci a argumentação dele. Aliás, ela me parece bem clara: o Giron mostra uma incapacidade de ver nas características da literatura contemporânea possíveis acertos ou, no mínimo, tendências de construção. É muito cômodo você querer pegar o bolo do que está sendo feito e, a partir de uma média feita nas coxas, chegar a um cômputo geral questionável:

Que grande romance brasileiro surgiu nos últimos 20 anos? Que autor nacional gera discussão ou mesmo revolta com suas histórias que quebram tabus? Há um escândalo nas rodas literárias capaz de indignar a nação?

A resposta da leitora Carlota Joaquina é bem icônica a respeito disso:

Carlota Joaquina disse:
"Que grande romance brasileiro surgiu nos últimos 20 anos?" Para ficar em dois (é subjetivo), O Paraíso é Bem Bacana, de André Sant'Anna, e Nove Noites, de Bernardo Carvalho. "Que autor nacional gera discussão ou mesmo revolta com suas histórias que quebram tabus?" Para ficar em um (e recente), Cristóvão Tezza. "Há um escândalo nas rodas literárias capaz de indignar a nação?" Para ficar em um (e recente), o caso do Jurado C. "Infelizmente, não há nem um único cadáver jovem para abrilhantar a literatura brasileira contemporânea." Para ficar em um (e recente), Rodrigo de Souza Leão.

Continuo mantendo minha opinião de que a argumentação dele é espúria. O egotrip pode possuir ramificações danosas para a literatura? Claro que pode. Do mesmo modo que, pra usar mais uma vez o Ulysses, um capítulo como o dos Rochedos Flutuantes seria uma das bases pra técnica narrativa do simultaneísmo -- e o mesmo simultaneísmo que já foi manejando de forma brilhante por vários autores, esse mesmo simultaneísmo pode ser danoso. Ou, e isso eu considero acertado de se dizer, a construção enfocada do Ulysses talvez tenha até mesmo trazido à baila esse umbiguismo que o Giron está se referindo, se considerarmos que o Ulysses é autoficcional em muitas partes. Claro que o Ulysses é um romance fabuloso advindo de um artista igualmente fabuloso, de modo que mesmo se o Joyce imitasse a escrita melosa dos romances-corriqueiros (como ele de fato imita no capítulo da Nausicaa, usando a técnica da Tumescência), o romance continuaria bom.

Basicamente o que quero dizer é:

Deve existir alguma solução para aperfeiçoar a qualidade de nossos romancistas e contistas. Não consigo vislumbrar nada melhor do que aposentar prematuramente alguns deles – e sair em busca de talentos legítimos. Seria necessário uma limpeza na literatura nacional. Minha impressão é de que ela é bem pior que a do resto dos países ibero-americanos e perdeu um tempo tão precioso que não será capaz de se recuperar da inferioridade.

A reciclagem e descoberta de novos autores é um processo de toda literatura. Mas o que proponho, ou talvez nem tanto "proponhe", é que passemos a, porque não?, enxergar esses 5 defeitos que ele aponta, e de forma pobre, como caminhos que estão sendo traçados. E se você quer saber, eu acho que, numa época de globalização fatídica ou imposta, o fato da prosa contemporânea tratar de "questões que não sejam aquelas imediatamente ao redor" é um ato até mesmo de resistência. Pois as coisas não mudam copernicamente. A poesia saiu de um panorama metalinguístico, eu já disse, caracterizado pelo autor usar os meios do autor para falar dos meios do autor (mas que NUNCA é tão simplezinho assim, pois quais são os meios do autor? eles existem concretamente? podem ser pensados sem uma realidade social?), e está desembocando numa poesia que trata dos objetos cotidianos mais próximos, muitas das vezes numa esfera talvez egótica de construção, é verdade, mas que mostra uma resistência, mostra uma pertinência e digo mais: mostra uma coerência.

Afinal de contas, será mesmo que um romance que saísse da esfera pessoal e imediata do leitor estaria trazendo a realidade que vivemos da forma como a vivemos?
 
Última edição:
Algumas considerações: claro que a gente pode aplicar uma ideia de "não existe tema ruim", e que qualquer tema pode ser rico ou ricamente trabalhado, ou que não importa o que se diz, mas como se diz. Eu continuo não achando que ele criticou o uso de elementos autobiográficos, mas, sim, a incapacidade de sair disso.

Concordo que o Nove noites seja um grande livro. Colocaria o Mãos de cavalo também.

E o que eu disse foi justamente que os autores geralmente não tratam de questões que não sejam aquelas imediatamente ao redor. A gente também pode simplesmente aceitar que o umbiguismo, a brevidade e a fragmentação são levadas para a literatura por reflexo do mundo em que as pessoas vivem, que isso é natural. É claro que é natural que essas questões apareçam na literatura, é inclusive necessário, mas não como simples replicação. Boa parte dos autores novos que eu leio escrevem com grande estreiteza de visão, e com muito pouca capacidade de enxergar além da superfície. Não acho que isso seja ok. A literatura tem uma função cultural extremamente importante, e aceitar que ela seja uma mera replicação do meio é aceitar que ela não seja mais do que um instrumento validação social.
 
Jogando mais lenha na fogueira (apesar de que isso vai queimar pro meu lado), o Edney Silvester Stallone deu uma entrevista pro Rascunho e tal. Achei a entrevista bem fraca, mas tem uma passagem que ele dá uma cutucada:

• Sua bagagem como jornalista ao longo de três décadas lhe ajudou na feitura de Vidas provisórias ou em sua literatura de modo geral? A geografia local e a história estão sempre interligadas no universo de suas personagens, e é o grande fio condutor de seus romances.

Minha ficção está profundamente enraizada no jornalismo. Na realidade da vida de todo dia. E a vida de todo dia começa como? A História, com H maiúsculo, decide nossos destinos. Seja um golpe militar que cerceia as liberdades, seja um atentado terrorista, seja a eleição democrática de um presidente, depois de duas décadas de regime de exceção, para ficar apenas com três exemplos. Estive em locais transformados pela História, como a Mesopotâmia, hoje parte deste país inventado pelo colonialismo britânico que é o Iraque, arrasada por inúmeras invasões, conflitos, guerras. Em meu primeiro romance, o contexto histórico é que formava as circunstâncias que levariam ao assassinato da personagem Anita, e que deslancha toda a trama. Paulo e Bárbara existem dentro do panorama histórico dos últimos quarenta anos do século 20. Balzac escrevia dentro do contexto histórico, Graciliano Ramos escrevia dentro do contexto histórico, Philip Roth escreve dentro do contexto histórico — por que diabos boa parte da literatura brasileira só pode existir para observar o próprio umbigo?

http://rascunho.gazetadopovo.com.br/entre-a-ficcao-e-a-realidade/

Mas ao mesmo tempo, destaco o finalzinho:

• Como definiria o momento atual da literatura brasileira, que se encontra em destaque aos olhos de fora?

Somos a nova grande literatura a ser descoberta pelo restante do mundo. Temos a vitalidade e a originalidade que a literatura norte-americana teve no início do século 20. Aqui, na literatura que se faz no Brasil, estão os novos Hemingways, Bellows, Fitzgeralds, Trumbos que podem encantar os leitores dos outros continentes. Temos uma diversidade e riqueza de temas, estilos e autores como nenhuma outra literatura no mundo neste momento. Alberto Mussa, Luiz Ruffato, Milton Hatoum: que outra literatura contemporânea pode começar citando obras da qualidade desses três autores, um carioca, um mineiro, um amazonense? O que precisamos é prosseguir com os programas de incentivo às traduções surgidos há pouco, aumentá-los, criar centros culturais de nossa língua no exterior, a exemplo do que os alemães fazem com o Instituto Goethe.



Ah sim: na edição em pdf (aqui), nas páginas 12 e 13, tem um ensaio que trata sobre a questão da autoficção. Estou lendo-o neste exato instante, mas ele com certeza vem bem a calhar no que estamos discutindo.
 
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