Demorou, mas finalmente aconteceu: a cultura do coitadinho chegou aos cinemas. Desde que “O Lobo de Wall Street” estreou em 25 de dezembro, o dia que nos torna ainda mais suscetíveis a adornos emocionais que não carregamos no resto do ano, o diretor Martin Scorsese está acuado pela imprensa e opinião pública.
A razão? O filme, baseado na autobiografia de Jordan Belfort, um poderoso corretor de ações que passou boa parte dos anos 1990 fraudando o mercado de ações de Wall Street, glamourizaria a vida de Belfort e de seus cúmplices, não dando um final decente para o personagem real –que escreveu o livro depois da prisão, de 1998 a 2006, e certamente faturou uma boa grana com a venda dos direitos de filmagem de sua história, mas ainda longe dos US$ 110 milhões que precisou pagar à Receita.
A filha de um dos sócios de Belfort foi a público criticar Scorsese, lembrando que seu pai morreu na pobreza com os prejuízos deixados após a descoberta do trambique do executivo. A revista “Variety” publicou uma a
nálise afirmando que “O Lobo de Wall Street” bateu um “recorde profano” por ter 506 “fucks” em seus 180 minutos–o recordista anterior seria “Faça a Coisa Certa”, de Spike Lee, que é uma ótima companhia.
Vejam bem. Martin Scorsese, o homem que criou “Taxi Driver”, “Os Bons Companheiros”, “Touro Indomável”, “Depois de Horas”, “A Invenção de Hugo Cabret”, “Os Infiltrados”, entre outros tantos clássicos, está sendo acuado porque seu filme, impróprio para menores de idade, tem palavrões. Só não é mais estúpido do que a discussão levantada, ano passado, pelo documentário “Bully”, que foi aos cinemas com a censura não recomendada para adolescentes, exatamente o público do filme.
Adolescentes não falam “foda-se” ou “vai se foder” (dependendo do contexto da tradução) nos Estados Unidos. Que crianças educadas. Mas há incômodos maiores para os neo-caretoides que as redes sociais adoram proliferar em “O Lobo de Wall Street”: sexo e drogas.
A primeira cena do longa já mostra que Scorsese não estava no clima de brincadeira. Mostra Leonardo DiCaprio (Jordan Belfort) cheirando cocaína da bunda de uma garota pelada. Por três horas, essa não é a única vez em que vemos Leo, o galã de “Titanic” (as adolescentes que o idolatravam já não estão grandinhas o suficiente?), cheirando, fumando e tomando pílulas proibidas. E muito menos não é a única vez que vemos mulheres lindíssimas peladonas pelo filme.
Sexo? Há pouco. Aí mora a confusão. É engraçado que o país que está consagrando “Azul é a Cor Mais Quente”, que tem cenas realmente dignas de um bom pornô noventista de Andrew Blake, se diz “chocado” com “cenas de sexo” de “O Lobo de Wall Street”. Não sei que tipo de educação sexual alguns críticos possuem no país, mas certamente não foi a mesma que tive no colégio Objetivo. As cenas de sexo são poucas, o que existe é a projeção do coito no espectador –ou o fato de DiCaprio andar no meio de corpos nus, exaustos após uma orgia que nunca vemos em sua gloriosa sacanagem, implica uma “cena de sexo”?
Por causa disso, 2014 começa com as manchetes nos jornais:
“Martin Scorsese defende ‘O Lobo de Wall Street’ – ‘O demônio se aproxima com um sorriso’, diz cineasta”; ou
“Leonardo DiCaprio defende seu filme – ‘As ações que esses personagens representam são tudo que há de errado com o mundo em que vivemos’, conta o astro.”
Sério. Chegamos ao momento único que diretores e atores precisarão dirigir um filme já pensando na explicação para os politicamente corretos ou para quem acha que o mundo é de algodão doce. Vamos mais além, então. Vamos fazer Brian De Palma refilmar “Scarface” sem Al Pacino cheirar aquele monte de cocaína na mesa e sair atirando de seu escritório. Vamos pedir para Burt Lancaster ressuscitar e fazer um jornalista bonzinho, que não leva ninguém à ruína. Vamos tirar “The Sopranos” do ar e prender David Chase. Vamos impedir a estreia da segunda temporada de “House of Cards”, que mostra políticos corruptos. Vamos refilmar “Star Wars” com Darth Vader virando tio de Luke para não dar exemplo de má paternidade.
Pode parecer um exagero, afinal, Oliver Stone já passou por isso antes com “Assassinos por Natureza”, Kubrick idem com “Laranja Mecânica”, e Quentin Tarantino já perdeu a paciência por ter de explicar a violência de seus filmes. Mas é emblemático quando um diretor de 71 anos de idade, um homem que conhece (e é apaixonado por) cinema como raríssimos seres humanos e que já fez até filme budista ainda precisa, em 2014, explicar à imprensa sobre a (i)moralidade de um personagem. Será que perdemos tanto assim nossa capacidade de compreensão do sarcasmo e ironia? Estamos de volta à “Sedução dos Inocentes”, de Fredric Wertham.
O pior é que nem achei o filme a obra-prima que Scorsese prometia. Ele está ousado como nunca, mas a edição por muitas vezes se mostra apressada, desconexa, revelando falhas de continuidade grotescas. É um filme vigoroso sobre ganância na primeira hora, mas redundante em muitos momentos –apesar de Leonardo DiCaprio e Jonah Hill em estado de graça.
Não preciso defender Martin Scorsese ou uma obra dele.
Mas será que teremos de criar um cinema higiênico, com personagens que sempre são coitadinhos explorados pelo sistema? Será que todo longa terá de ser maniqueísta
, claro como a luz do dia em relação às ações de seus protagonistas (mau é mau, bom é bom)? Será que estamos à beira de um colapso intelectual que nos impede de separar o errado do certo em uma obra de arte? Será que vamos virar um grande final de “She-Ra”, com o Geninho explicando a moral da história?
Pondé (mais munição para mais críticas nas redes sociais)
escreveu: “Mas nossa época, como eu costumo dizer muitas vezes, é a época do marketing de comportamento. A ‘ciência da mentira dos losers’. Dentro desta disciplina geral, existe o marketing do desejo, especializado em mentir para as pessoas dizendo que ‘sim, confie no seu desejo que tudo dará certo’.’
A discussão deve existir. Não quero ver Superman matando Zod a sangue frio só porque é cool ser “dark”, por exemplo. Fica o temor é de um mundo frouxo que vire um livro de Nicholas Sparks, onde todos ficarão felizes no Facebook espalhando gatinhos bonitinhos e posts que enobrecem o ser humano.
O importante é disfarçar os lobos de cordeiros virtuais.
Porque a vida está fácil pra todo mundo.