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Garota Exemplar (Gillian Flynn)

Ana Lovejoy

Administrador
A Intrínseca é uma pateta mesmo. Quem aqui lembra do lançamento de Pequena Abelha, e toda aquele marketing de "Quanto menos você souber da história, melhor?". Bem, usaram a carta na hora errada, era um livro que estava totalmente ok saber o enredo todo, e agora que eles tem um lançamento do tipo "quanto menos você souber da história, melhor", o que eles fazem, o queeeee? Revelam quase todos os malditos detalhes da trama na sinopse de divulgação do livro. Enfim, se até o momento vocês não tinham ouvido falar deste livro, não procurem por resenhas, não procurem pela sinopse: sim, quanto menos souber, melhor.

Vale saber que é um thriller, que há uma história de um casal em crise e que as personagens são daquelas bem críveis, sabe? Das que você consegue ver um amigo ou até mesmo você ali. Comecei a ler o livro ontem e não consigo largar, e se abri o tópico sem terminá-lo e que quero salvar vocês da campanha de marketing desastrosa da Intrínseca.

E é isso. Depois não digam que eu não avisei. Beijo, não me liguem que estou ocupada lendo. :gira:
 
A Intrínseca é uma pateta mesmo. Quem aqui lembra do lançamento de Pequena Abelha, e toda aquele marketing de "Quanto menos você souber da história, melhor?". Bem, usaram a carta na hora errada, era um livro que estava totalmente ok saber o enredo todo, e agora que eles tem um lançamento do tipo "quanto menos você souber da história, melhor", o que eles fazem, o queeeee? Revelam quase todos os malditos detalhes da trama na sinopse de divulgação do livro. Enfim, se até o momento vocês não tinham ouvido falar deste livro, não procurem por resenhas, não procurem pela sinopse: sim, quanto menos souber, melhor.

Vale saber que é um thriller, que há uma história de um casal em crise e que as personagens são daquelas bem críveis, sabe? Das que você consegue ver um amigo ou até mesmo você ali. Comecei a ler o livro ontem e não consigo largar, e se abri o tópico sem terminá-lo e que quero salvar vocês da campanha de marketing desastrosa da Intrínseca.

E é isso. Depois não digam que eu não avisei. Beijo, não me liguem que estou ocupada lendo. :gira:

Depois me avisa se gostou. Queria ler mas, não sei porque, fiquei com um pé atrás.
 
to copiando e colando o que escrevi para o bró. tem spoilers. tipo, tenha em mente que estraga um pouco a experiência de leitura saber ler o que escrevi sem ter lido o livro, etc. tá sem formatação pq sou preguiçosa, tchans.

Juro que não sei exatamente o que despertou minha curiosidade sobre Garota Exemplar, de Gillian Flynn. Acho que uma reportagem mencionando o fato de que este livro tinha desbancado Cinquenta Tons de Cinza, e aí eu queria saber qual era a nova pira do momento, não sei. O fato é que coloquei no kindle e comecei a ler sem grandes expectativas, primeiro porque a) eu estava um pouco traumatizada com a Intrínseca (ver lista de piores leituras de 2012), b) O enredo parecia de filme que eu assistia no Supercine (ainda passa Supercine?) e c) Meu preconceito bocó dizia que se desbancou Cinquenta Tons de Cinza, boa coisa não poderia ser.

Mas ok, comecei a ler. E poucas páginas depois, já não queria mais abandonar o livro, principalmente quando percebi a jogada que Flynn começou a fazer com as opiniões que o leitor tinha das personagens. E se menciono isso já, assim, segundaparagrafamente, é porque quero dar um aviso para você que ainda não leu Garota Exemplar: fuja da campanha de marketing da editora. Não leia sinopse do livro, orelha, nem nada. Algumas informações que estão sendo colocadas para anunciar o livro acabam te colocando na pista errada e, o principal, afetando seu julgamento das personagens de uma forma diferente do que deveria ocorrer. Sobre isso falo um pouco mais para frente, aguenta aí.

A questão é que minha cabeça está aqui cheia de ideias a serem comentadas sobre o livro, mas não queria estragar a experiência inicial de ninguém, portanto fica a velha recomendação: volte quando tiver acabado de ler. Por incrível que pareça, esse meu cuidado nada tem a ver com o enredo principal que tem sido apresentado por aí (mulher desaparece, marido é o principal suspeito, etc.), aliás, eu acho que é o tipo de livro que “sobrevive” muito bem mesmo que revelem spoilers, só que fica aquela sensação de chupar bala sem tirar o papel (há!). Avisados? Ok, então agora vamos por partes. Três, como no livro.


Parte um: Rapaz perde garota

Vamos colocar uma trilha sonora para esta parte do post? Vamos? Ok. Lá vai clica aqui, dá o play e me acompanhe.

Como disse antes, acabei me encantando pelo livro assim que percebi que tinha caído na jogada de Flynn. Garota Exemplar abre com a narração de Nick, no dia do aniversário de casamento. Ele obviamente não gosta mais da esposa, que vê como uma mulher mimada, irritada (e irritante!). Mas não entenda errado: nada é colocado de forma óbvia “Ela é uma mimada”. O estilo de Flynn é bastante sutil, e é nas entrelinhas que vamos pegando as peças para montar o quebra-cabeça que é a personalidade do casal protagonista.

Logo após o capítulo de Nick, vemos uma entrada do diário de Amy do dia em que eles se conheceram. Há algo no estilo de Amy que faz você se encantar de imediato: um certo senso de humor, o modo como se dirige ao leitor e mesmo a visão que ela tem de si e de outras pessoas: enfim, você logo começa a perceber que aquela Amy ali não bate com a Amy de Nick.

A narrativa segue assim, com um capítulo de Nick descrevendo os eventos dia após dia desde o desaparecimento de Amy, e um capítulo com uma página do diário de Amy, que aos poucos vai se afastando do dia em que se conheceram e se aproximando do momento em que eles saem de Nova York e passam a morar no Missouri. E se pedi para que vocês dessem um play em Love Will Tear Us Apart é porque essa parece justamente a trilha do casal. É quase possível ouvir “When routine bites hard… and ambitions are low” nas páginas do diário de Amy.

E sim, progressivamente você começa a odiar Nick. Nick, o canalha. Nick, o egoísta. O sujeito que muito provavelmente foi o responsável pelo sumiço da própria esposa. Por mais que ele se diga inocente, chega um momento em que vai ficando impossível acreditar que ele realmente seja. E não só pelo que Amy diz: ele mesmo se apresenta como um narrador não-confiável quando avisa quantas vezes mentiu para a polícia em poucas horas, ou quando diz coisas como “Eu sou um grande fã da mentira por omissão“. E aproveitando as mentiras (e omissões), Flynn é inteligente o suficiente para manter de forma paralela à desconstrução de Nick a história do que diabos aconteceu com Amy. E aí você trabalha na realidade com dois enredos: o thriller, com todo o suspense sobre o sumiço de Amy, e a história sobre as dificuldades do casamento.

Há algo ali que sempre acreditei: de como é fácil ser uma pessoa querida por apenas uma noite, e como a convivência pode ser complicada justamente por revelar o que realmente somos. Questões que antes não eram levantadas geram verdadeiras batalhas (quem vai trocar a areia do gato?!), traços de nossa personalidade não podem mais ser ocultados. E o amor, ele resiste a tudo isso?

E chegamos ali na metade do livro, achando que as coisas caminharão previsivelmente por aí, com Nick (odioso Nick!) se afundando cada vez mais em suas mentiras e Amy provavelmente próxima de um fim bastante trágico. Então vem a parte dois.

Parte dois: Rapaz encontra garota

E é aqui que vem o tapa na cara do leitor. A dinâmica inicial foi de Nick apresentando Amy como uma verdadeira megera, e aos poucos descobrimos o quão doce ela é, e quem realmente não presta ali é Nick, certo? Pois logo na primeira frase da Parte dois você, como leitor, provavelmente soltará um sonoro “WTF?!“. Diz Amy:

“Estou feliz agora que estou morta. Tecnicamente, desaparecida. Em breve, considerada morta.”

Era madrugada e eu precisava dormir, e tive que deixar o livro bem ali, naquela frase. Passei a manhã do dia seguinte pensando no que aquilo poderia significar. Flynn vai dar uma de Machadão, e fará uma Amy Cubas? Ou…

… ou Amy não tinha sido assassinada coisa nenhuma e planejara tudo aquilo? O charme do livro é justamente que Flynn não tem pressa: ela vai brincar com você até não poder mais. Se na parte dois você chega pensando que Amy é uma santa e que Nick não conseguia enxergar a sorte que tinha (o que o tornava ainda pior com todo o seu pacote de defeitos), eis que ficamos sabendo o tipo de psicótica que ela é.

Agora que não há mais um mistério (já que não há crime), você poderia pensar que a narrativa perderia o ritmo, ficaria sem graça, mas não é o que acontece. Primeiro porque Amy “do mal” continua sendo ótima ao falar com o leitor, mesmo que com discursos inflamados sobre “Garotas Legais” (que não deixam de ter um fundo de verdade, diga-se de passagem) e uma lógica bastante obtusa. E segundo porque é aí que, desculpe o clichê, a história pega fogo: de um lado temos Nick agora correndo contra o tempo para provar sua inocência, do outro temos Amy tentando se esconder até que Nick seja preso.

Há um certo exagero nas histórias do passado de Amy que começam a surgir que lembram sim, aqueles filmes de Supercine. Você já deve ter visto algum filme assim, com uma personagem completamente maluca que não tem a menor noção do mal que pode fazer para alguém só para “provar um ponto”. Nessa altura você não só odeia Amy (como antes odiara Nick), mas também tem medo: ela não tem limite, fica claro. E é essa noção que será o ponto principal da terceira e última parte.

Parte três: Rapaz consegue garota de volta

Se a segunda parte parece meio louca, a terceira é completamente insana. Eu ainda estou “digerindo” um pouco o desfecho, o rumo que a história tomou, mas foi difícil não pensar em toda sorte de psicopatas que já foram narrados ou interpretados na literatura e no cinema. Amy voltou para casa e agora está decidida a fazer com que Nick a ame novamente. Sim. Depois de tudo aquilo.

Acredito que aqui Flynn deixou de lado o humor mais leve da Amy na primeira parte para partir para um certo humor negro. Lembra um pouco a história do casal que se odeia em Survive Style #5 (se não viu este filme ainda, assista): tentam se matar, mas simplesmente não conseguem viver um sem o outro, porque o “estar juntos” é parte do que faz com que eles sejam quem são. As páginas aqui estão cheias de frases como “Sou um ótimo marido porque tenho muito medo de que ela me mate“. Acho que dá para ter uma ideia do que quis dizer sobre humor negro.

E é na voz de Amy que temos a pista do que o livro representa: “Não é o que todo casamento é, de qualquer maneira? Apenas um demorado jogo de ele disse, ela disse?“. Descobrimos então que o que temos em mão é justamente a maneira de Amy dar a última palavra. É até irônico, mas com o desfecho acabei vendo Garota Exemplar como um “Serena” ao contrário, onde a tônica não é o amor, mas o ódio.

TL;NR, Anica!

Para você que teve preguiça de ler as outras partes, vamos ficar com algumas considerações finais. Eu gostei bastante do livro, mesmo. Adorei o modo como a Flynn manipula o leitor através de uma personagem como Amy. Gostei muito do Nick que ela criou – se Amy é louca demais para ser real, Nick é tão cheio de imperfeições que poderia ser aquele seu amigo ou conhecido. O jeito que o mistério do desaparecimento de Amy é conduzido é bem interessante também (notem como Nick quase nunca revela qual foi a pista da “Caça ao Tesouro” logo que a encontra).

Há várias camadas no que poderia ser apenas um thriller. Não dá para terminar Garota Exemplar sem pensar no modo como julgamos pessoas a partir de um único ponto de vista (lembrei aqui do TED O perigo da história única), de como nos relacionamos com pessoas, de como não dá para ser outra pessoa por muito tempo. É realmente muito para se pensar. E só por isso a leitura já teria valido a pena, mas coloque aí o modo como Flynn consegue manter a tensão do começo ao fim (sim, até quando já sabemos que Amy não está sumida), e insisto: ele “sobrevive” mesmo que revelem spoilers. O mistério, no final das contas, acaba sendo menos importante do que tudo o que a história do casal acaba trazendo para o leitor.
 
Não vou ler a resenha porque tem spoilers, e, como vc falou, eles estragam a experiência da leitura... mas, assim, por alto, parece que vc gostou, né?
Tava com receio em relação a esse porque vi uma matéria cujo título era: "Gillian Flynn, a mulher que desbancou 'Cinquenta tons de cinza'", aí nem li o resto, pois pensei que os livros eram parecidos :roll:

também li esse texto, e pensei a mesma coisa: para desbancar 50 shades só pode ser porcaria, ou ainda, outra porcaria ~~erótica~~ do tipo. mas não é, fique tranquilo.
 
uma guria escreveu um texto no book riot argumentando que o livro é misógino. achei a ideia meio exagerada - ou pelo menos que ela não captou bem que amy

é uma sociopata, e que bem, gurias sociopatas existem, assim como homens. agora vamos só retratar mulher mentalmente estável nos livros?

anyway, tá aqui o link para quem quiser ler: http://bookriot.com/2014/06/18/gone-girl-misogynist-novel/
 
Eu estava procurando um post meu por aqui, mas não encontrei, o que é uma surpresa, já que eu fiquei obcecada por esse livro durante um bom tempo. Mas escrevi um trequinho sobre o livro no Posfácio. Na verdade, foi mais um post em que eu discutia sobre os spoilers estragarem ou não a experiência de leitura. (Eu detesto spoiler, como todo mundo sabe, mas consegui ser racional ao escrever o post hahahahaha).


Sabe-se que ter elementos de um romance policial não faz com que um livro necessariamente se encaixe nesse gênero. A tônica investigativa está presente na literatura desde os livros clássicos até os best-sellers. Ao tomarmos conhecimento da “Trilogia Tebana”, de Sófocles, por exemplo, podemos dizer que é provável que Édipo tenha sido o primeiro detetive da literatura. Para desvendar os mistérios inerentes a ele, para constituir a sua identidade, o rei de Tebas desvendava os enigmas que cruzavam o seu caminho. Ao ampliarmos um pouco a temática de Édipo, podemos dizer que, para Claude Lévi-Strauss, o maior trunfo do Mito de Édipo é nos mostrar que, no fim das contas, não sabemos quem somos. E, no caso de Édipo, seria melhor ele ter permanecido ignorante acerca de suas origens?

No livro Teoria da viagem, Michel Onfray, ao falar sobre o que ocasiona o deslocamento do viajante, aponta para o fato de que “só pegamos a estrada movidos pelo desejo de partir em nossa própria busca com o propósito, muito hipotético, de nos reencontrarmos ou, quem sabe, de nos encontrarmos”.1 Ele ressalta ainda que “os trajetos dos viajantes coincidem sempre, em segredo, com buscas iniciáticas que põem em jogo a identidade”. Nessa perspectiva, “toda viagem é iniciática – assim como uma iniciação não cessa de ser uma viagem. Antes, durante e depois se descobrem verdades essenciais que estruturam a identidade”.

O exercício que faz Juan Preciado em Pedro Páramo, do escritor mexicano Juan Rulfo, ao viajar para Comala, sua terra natal, é o de conhecer seu pai e sua terra, que ele visualizava por meio das lembranças de sua mãe, não por lembranças que fossem, primariamente, suas, uma vez que ele deixara Comala bem cedo. Conhecer suas origens é uma forma de buscar a constituição da identidade.

Na esteira do desejo de conhecer-se que guia muitos personagens da literatura, segue o desejo do leitor de saber o que a obra lhe reserva. A leitura de Garota Exemplar, de Gillian Flynn, me deixou em crise com algo que eu venho cultivando há um bom tempo: a ideia de que, mais do que o que se conta, importa o como se conta. Afinal, faço parte da imensidão de pessoas que leu Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, sabendo que Diadorim era uma mulher, e isso não fez com que o livro se tornasse menos interessante – embora eu admita que, se não soubesse, a experiência de leitura pudesse ser diferenciada. Aliás, no fim das contas, as estratégias narrativas adotadas por Guimarães Rosa para tratar, entre outras coisas, da temática do amor que independe de orientação sexual, é que me fascinaram completamente.

Gosto de ser surpreendida. Às vezes, a surpresa não reside apenas no que acontece, mas, principalmente, no engendramento estético da obra. Por isso, quando falo sobre livros, gosto que tanto o enredo quanto a técnica literária utilizada para seu desenvolvimento me surpreendam. Meus autores favoritos conseguem me surpreender com coisas inusitadas. Eles arrancam lágrimas e sorrisos da minha alma. E eu saio de algumas leituras mais devastada do que entrei. Porque é isso o que importa, ser surpreendida. Cortázar é um dos meus escritores preferidos porque me surpreende. Acredito que O jogo da amarelinha seja um dos livros mais fantásticos do mundo porque Cortázar faz com que o leitor tenha a sensação de que está construindo a narrativa e, de certa forma, está.

Último round eu leio em ocasiões específicas. Leio naqueles momentos em que eu preciso de Cortázar. Porque eu acredito que seja assim. Não se lê Cortázar porque os outros dizem que você precisa ler. Você lê Cortázar porque precisa de Cortázar. E quando preciso ler Cortázar, me perco e me acho nos estilo de colagem que povoa a sua escrita. Ler Cortázar é como brincar de gato e rato, eu escondo o livro de mim, porque é gostoso saborear a sensação do “por ler”, “por saber”… eu desejo ler, mas acho que desejo mais o desejo de ler. Cortázar faz com que eu me sinta como a protagonista do conto “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector… e eu agradeço ao Cortázar por, a cada releitura, me surpreender. Cortázar é um dos meus maiores exemplos da efetividade do como contar.

Para as pessoas que se preocupam com o que se conta mais do que o como se conta, acredito que tenha sido um choque absurdo lerem, no início do romance Bonsai, de Alejandro Zambra, que “no final ela morre e ele fica sozinho” (p. 10). Foi um choque para mim, também, confesso. Choque semelhante eu tive há dez anos, quando li, pela primeira vez, Orquídea Negra, de Neil Gaiman. Não, não pretendo entrar no mérito da interminável discussão que se ocupa em dizer se quadrinhos são ou não literatura. O que eu quero dizer é que a maestria narrativa de Neil Gaiman (aliada à magnífica arte de Dave McKean) faz com que a história da Orquídea Negra seja construída na medida em que a técnica de fazer quadrinhos é desconstruída e ressignificada. Brinca-se com os clichês de histórias de super-heróis para se construir a história de uma heroína que, bem, morre nas primeiras páginas dos quadrinhos.

Mas Machado de Assis já nos ensinou, com Memórias Póstumas de Brás Cubas, que as estratégias narrativas são admiráveis. Afinal, trata-se de um morto contando as suas memórias e, no fim das contas, ninguém dá muita atenção para o motivo da morte de Brás Cubas, a gente quer saber é como ele conduziu sua vida. E, para não ficar apenas na obra inaugural do Realismo no Brasil, por que não citar Dom Casmurro? Acho que, antes de aprendermos a falar, já sabemos da eterna pergunta: “Capitu traiu ou não Bentinho?” Mas saber disso não nos impede de ler o romance do – tomando emprestado o jeito Drummond de ver Machado – Bruxo Alusivo e Zombeteiro.

Apesar dos muitos exemplos – citados ou não neste texto – que endossam a aparente supremacia do como contar sobre o que se conta, cabe uma ressalva aqui: quando se trata de romances policiais – romances fechados – saber, por exemplo, quem é o assassino, estraga, sim, a experiência de leitura. Afinal, a proposta deste gênero, grosso modo, é, justamente, juntar as pistas para solucionar o crime. Quando eu estava lendo Assassinato no Expresso do Oriente, de Agatha Christie, passei por uma situação bem divertida. Uma amiga, que já tinha lido o livro há algum tempo, ficava folheando o livro e colocando o dedo em muitas páginas e, a cada página indicada, ela dizia: “o assassino está aqui”. Enquanto eu lia a obra, não pude entender a simbologia do ato, mas, quando cheguei ao desfecho, compreendi, perfeitamente, o que ela quis dizer. Afinal não se tratava apenas de um assassino, mas de vários, o que significa que, sim, eu poderia encontrar um dos assassinos em alguma página aleatória porque as páginas estavam repletas de assassinos.

À exceção do caso mencionado no parágrafo anterior, eu realmente acredito que a forma que o escritor escolhe para desenvolver o livro é que será fundamental para a qualidade dele, e não o assunto nele abordado, e costumo usar essa justificativa para explicar o porquê de alguns livros com um enredo simples, clichê, até, acabarem por me surpreender. Sobre Garota Exemplar (que, sim, tem uma pegada de livro policial, mas que se aproxima mais de Dennis Lehane do que de Agatha Christie, embora, no fim das contas, não comungue, inteiramente, com nenhum dos dois) é difícil separar o que se conta do processo do como contar. Por isso, o livro de Gillian Flynn fica mais apetitoso se saboreado “de surpresa”, sabe? Tipo aquela história de gente que come carne de rã, sem saber, e acha uma delícia, pensando que está comendo carne de frango, mas quando interrogada sobre o sabor da carne de rã, diz que jamais comeria, porque acha nojento.

Se tivesse lido resenhas sobre o livro, provavelmente, os spoilers me fariam desistir da leitura, mas ainda bem que a única resenha que eu quis ler foi feita por uma pessoa que já avisou que a experiência de leitura ficaria mais completa se o leitor tivesse pouca ou nenhuma informação sobre a obra. Este é o mesmo conselho que dou a quem quiser ler algumas das minhas impressões sobre a obra que serão disseminadas ao longo deste texto, porque, inevitavelmente, elas trarão spoilers.

O romance de Gillian Flynn tem um enredo aparentemente simples, que certamente não é novidade para os leitores que já se aventuraram ao lerem as peripécias de Hercule Poirot e Miss Marple solucionando os mistérios propostos nos livros da Rainha do Crime. Para não dizer das pessoas que acompanharam os muitos casos resolvidos pelo mais famoso consultor investigativo de que se tem notícia, Sherlock Holmes. Sim, os casos não eram simples, mas o resumo deles não era algo que gastaria mais de cinco linhas (mantendo-se, obviamente, o desfecho bem escondido), o complicado era o processo de desvendar o caso, trocando em miúdos, o como se conta.

Garota Exemplar começa com um aparente caso de sequestro: Amy Dunne desaparece, no dia do seu quinto aniversário de casamento com Nick Dunne. Depois da ligação de um vizinho, informando-lhe que a porta da casa estava aberta, Nick sai do bar – que mantém com sua irmã, Margo – e vai para casa. Quando chega lá, encontra a sala revirada, o ferro de passar roupa ainda ligado, e descobre que a sua esposa não está em casa. Por saber que sua esposa nunca deixa nada pela metade (ela certamente terminaria de passar a roupa), Nick tem certeza de que ela foi sequestrada. A polícia é chamada. A partir daí, a trama – que é dividida em três partes – se desenvolve, e ganha rumos um tanto quanto inesperados, embora não inverossímeis.

A primeira parte do livro, além do sumiço de Amy, exibe um retrato do seu casamento com Nick e das coisas não ditas, mas pensadas. No caso de Nick, as coisas não ditas predominam. Na sua ânsia de não ser como o pai, um misógino, ele acaba por se calar até quando deveria falar. Nick é um jornalista do Missouri que viveu em Nova York até perder o emprego. Não há muito o que se falar sobre ele, entretanto, há muito o que se pensar. E aí, acho, está um dos pontos mais bem articulados do livro: Nick não fala muito sobre si, ele fala sobre Amy, sobre como ela tinha um cérebro brilhante. Com essa jogada, ele acaba por se metamorfosear em uma sombra da sua esposa, e a coloca em um pedestal, o lugar que Amy, desde o nascimento, costumava ocupar na vida das pessoas.

Amy, diferentemente do marido, fala bastante, e a sua versão do casamento é-nos apresentada por meio de um diário. Ao levarmos em consideração o fato de que as confissões que se faz no diário são muito íntimas, acreditamos em cada palavra do que ela diz, ou em quase todas. Afinal, é de se estranhar que uma pessoa com formação em Psicologia seja tão inocente quanto ela aparenta ser, em alguns relatos, seja tão falha em ler as pessoas. Há de se levar em consideração que como se trata do seu marido, ela está muito envolvida na questão para ter uma visão mais clara das questões, mas, ainda assim, a aparente ingenuidade dela, às vezes, acaba nos incomodando.

O casamento de Amy e Nick está em crise. E o leitor é informado disso de duas maneiras: pela visão de Nick e pelo diário de Amy. Mas, ao contrário do que se pode imaginar, as visões não são convergentes. Os motivos do fracasso do casamento são diferentes, estão sintonizadas em estações diferentes. Uma coisa é certa: como é o quinto aniversário de casamento deles, Nick tem certeza de que Amy organizara, antes de desaparecer, a caça ao tesouro, que era uma brincadeira na qual ela incluía pistas referentes aos momentos vividos por ela e Nick durante o ano.

Ao avançarmos na leitura da obra, especialmente, na segunda e terceira partes, percebemos que, no fim das contas, Nick não conhecia a sua esposa tão bem como pensava conhecer, “As pessoas querem acreditar que conhecem as outras” (p. 106). Ela, por outro lado, o conhecia bastante. No desfecho do livro, bem antes dele, na verdade, o leitor toma consciência de que Amy é uma exímia manipuladora. Mas não podemos nos esquecer de que a Amy é uma estratégia narrativa, então, quem verdadeiramente nos manipula, é a Gillian Flynn. Ela é a Amy e nós, os leitores, somos os muitos Nicks, marionetes levadas pelas cordinhas, isto é, pelas estratégias narrativas, puxadas por Gillian Flynn.

Se as estratégias narrativas é que importam, qual é o problema de se saber, antes de começar a ler o romance, que Amy era uma psicopata? Bem, o problema é que parte da estratégia narrativa adotada por Gillian Flynn reside em utilizar a Amy do diário para fazer com que o leitor fique com ódio de Nick. Se soubermos, desde o início, que a Amy está manipulando todos os ao seu redor, o pacto narrativo fica prejudicado.

No fim das contas, por mais que queiramos decretar a vitória de um, como contar, sobre o outro, o que se conta, ou vice-versa, cada obra é única, e, por isso, não dá para dizermos com 100% de certeza se saber ou não o caminho percorrido pela obra vai atrapalhar a experiência de leitura. O que podemos fazer é nos munir da coragem de Dorothy e irmos, pela estrada de tijolos amarelos, em direção ao Oz que cada obra literária nos reserva.
 

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