Senhoras e senhores.
Meu cliente é ninguém mais ninguém menos que Vladimir Vladimirovitch Vladimitovitcha Vladimirovatchim Nabokov.
Cadê o Nabokov? Cadê o Nabokov?
ACHOU!
Sim, meu cliente é essa pessoa povoada de sonhos que vocês podem observar na sorridente foto.
No entanto, não desejo falar da vida de meu cliente, pois meu cliente teve uma vida sofrida. Imagino que nenhum de vocês tenha algum dia saboreado a sensação de se ver desumanamente de sua própria casa, correto? Pois bem, uma vez eu saí de casa e esqueci a chave. Eu sei do que estou falando, senhoras e senhores. Agora imaginem a dor que um homem sentiu ao se ver expulso de seu país... de seus costumes... de sua terra... de sua língua!
Aposto que o pobre Nabokov não sorriu tantas vezes como nessa foto. Naturalmente, ele não sorriu... Mas ele nos fez sorrir, senhoras e senhores! Ele nos fez sorrir a partir de tudo o que soube fazer com sua língua... Ah, sim... A língua. Como diria Marco Antônio na peça de Shak...
É, o Shakespeare tá na disputa... Ops.
Enfim. Imagino que todos saibam quão boa é a sensação de se ler um livro. Nós sabemos bem disso pois um livro nos transporta para uma nova realidade, seja lá onde ela for: se dentro de nós, como no caso da poesia, ou se fora de nós, como no caso da prosa. E essa viagem nos permite ampliar a vida, nos permite enriquecê-la. No entanto, não basta apenas viajar. Viajar é muito pouco, pois a história em si é apenas um processo no todo a que chamamos "encantamento de ler". O como uma história é contada... é que conta.
E, se me permitem a modéstia, meu cliente sabia como ninguém contar uma história danada de boa. Ela sabia usar a língua... Ah, se sabia! Vamos observar apenas uma pequena passagem de um romance de meu cliente denominado "Pnin":
Surpreendeu-o verificar o quanto era afeiçoado a seus dentes. A língua, aquela foca gorda e lustrosa, costumava deixar-se cair com um baque e deslizar alegre entre os rochedos familiares, conferindo os contornos de um reino ameaçado mas ainda seguro, mergulhando da grota na angra, encontrando um pedaço de alga doce na mesma fenda de sempre; mas agora não restava nenhuma das antigas marcas do terreno, tudo o que existia era apenas uma grande fenda sombria, numa terra incógnita de gengivas…
A passagem é de quando Pnin arranca seus dentes. Coisa banal, se considerarmos o contexto em que a obra foi escrita... Quantos de nossos avós não usavam dentaduras, não é mesmo? Drummond escreveu um poema sobre isso: "Dentaduras duplas". Mas voltando ao assunto, que descrições, senhoras e senhores! Fico tão emocionado que tenho vontade de jogar confetes...
A metaforização da língua que se espraia num reino perdido reflete a condição lastimável que meu cliente sofreu ao longo de sua vida. Aliás, grande parte de sua obra trata desse tema, do exilado, do desterro. Pnin é a história de um professor que se refugia da Rússia revolucionária, aliás. Desse modo, quando meu cliente caracteriza a língua como uma "foca gorda e lustrosa", é provável que ele esteja se lembrando do final do capítulo 1 do romance Ulysses, de James Joyce, o qual, aliás, foi brilhantemente estudado por meu cliente:
"A sleek brown head, a seal's, far out on the water, round."
Menciono este detalhe pois a próxima frase é:
"Usurper". Sim, senhoras e senhores, um adjetivo que, para um exilado, é um tanto quanto duro e revelador, não acham? Pois sim... Essa mesma língua, essa mesma foca que pode remeter ao regime russo, como se, no final das contas, até mesmo a língua de Pnin tivesse sido também (e secretamente) tomada dele (como de fato o foi para meu cliente); essa mesma língua deslizava alegre nos "rochedos familiares", pois, afinal de contas, costumamos nos lembrar da dentição na fase da infância, quando a perdemos (novamente o verbo "perder", senhoras e senhores!), ou quando estamos velhos e não podemos mais cuidar de nós mesmos...
E o que dizer de "conferindo os contornos de um reino ameaçado mas ainda seguro"? É claro que tudo o que resta a Pnin é sua fala, é sua voz de protesto contra as vicissitudes crudelíssimas do inumano regime russo. E tanto o é que o que resta a Pnin é "grande fenda sombria, numa terra incógnita de gengivas...". É o destino de um exilado, senhoras e senhores. O destino de um exilado exposto por um episódio banal, um episódio que fez parte do cotidiano de muitos mas que somente meu cliente soube conduzir com seu estilo comumente citado como "mágico".
Enfim. Minha apresentação neste embate foi singela. Um só parágrafo, a meu ver, é o suficiente para que todos possam observar com clareza o alcance da linguagem e a profundidade que os mínimos detalhes da linguagem de meu cliente é capaz de alcançar.
Com amor,