INTRODUÇÃO
Moacyr Scliar
O Destino ainda bate à porta, claro, mas nesta
época de comunicações instantâneas prefere o telefone. Na tarde de 30 de outubro de 2002, voltando
para casa cansado de uma viagem, recebi uma ligação.
Era uma jornalista do jornal O Globo, dando-me uma
notícia que, a princípio, não entendi bem: parece que
um escritor tinha ganho, na Europa, um prêmio importante com um livro baseado em um texto meu.
Minha primeira reação foi de estranheza: um escritor, e do chamado Primeiro Mundo, copiando um
autor brasileiro? Copiando a mim? Ela se ofereceu para
me dar mais detalhes, o que foi feito em telefonemas
seguintes, e assim aos poucos fui mergulhando no que se
revelaria, nos dias seguintes, um verdadeiros torvelinho,
uma experiência pela qual eu nunca havia passado.
Sim, um escritor canadense chamado Yann
Martel havia recebido, na Inglaterra, o prestigioso
prêmio Booker, no valor de 55 mil libras esterlinas,
conferido anualmente a autores do Common wealth
britânico ou da República da Irlanda (entre outros:
Ian McEwan, Michael Ondaatje, Kingsley Amis,
J.M.Coetzee, Salman Rushdie, Iris Mur doch). Sim, 12
ele dizia que havia se baseado em um livro meu, Max
e os felinos, publicado no Brasil em 1981, pela L&PM
(Porto Alegre), e traduzido poucos anos depois nos
Estados Unidos como Max and the Cats (New York,
Ballantine Books, 1990) e na Fran ça como Max et
les Chats (Paris, Presses de la Renais sance, 1991). É
uma pequena novela que escrevi com grande prazer
– lembro-me de um fi m de semana na serra gaúcha
em que matraqueava animado a máquina de escrever,
em todos os minutos em que não estava cuidando de
meu fi lho, ainda pequeno.
Minha primeira reação não foi de contrariedade.
Ao contrário, de alguma forma senti-me envaide cido
por ter alguém se entusiasmado pela idéia tanto
quanto eu próprio me entusiasmara. Mas havia, na
notícia, um componente desagradável e estranho,
tão estranho quanto desagradável. Yann Martel não
tinha, segundo suas declarações, lido a novela. Tomara conhecimento dela através de uma resenha do
escritor John Updike para o New York Times, resenha
desfavorável, segundo ele.
Esta afi rmativa me perturbou. Max and the Cats
não chegou a ser um best-seller, mas os artigos sobre o
livro, que me haviam sido enviados pela editora, eram
favoráveis – inclusive o do New York Times, assinado
por Herbert Mitgang. Teria Updike escrito uma outra
resenha – para o mesmo jornal? Se era esse o caso,
por que eu não a recebera? Será que os editores só
mandavam resenhas favoráveis?
À afi rmativa seguia-se um comentário de Martel.
Uma pena, dizia ele, que uma idéia boa tivesse sido 13
estragada por um escritor menor. Mas, em seguida,
levantava uma outra hipótese: e se eu não fosse um
escritor menor? E se Updike tivesse se enganado? De
qualquer maneira a idéia principal do livro serviu-lhe
de ponto de partida para sua obra Th e Life of Pi. E
qual é essa idéia?
O Max Schmidt de meu livro é um jovem alemão
que está fugindo do nazismo e que embarca para o
Brasil. O navio em que viaja, um velho cargueiro,
transporta também animais de um zoológico. Há
um naufrágio, criminoso, mas Max salva-se em um
escaler. E de repente sobe a bordo um sobrevivente
inesperado e ameaçador: um jaguar. Começa então a
segunda parte da novela, que tem como título O jaguar
no escaler.
Esta, a idéia que motivou Martel. O seu personagem, Piscine Molitor Patel, Pi, é um menino hindu
cujo pai é dono de um zoológico. A família emigra
para o Canadá, levando os animais a bordo. Há, na
segunda parte do livro, um naufrágio (que depois será
considerado criminoso). Pi salva-se. No mesmo barco
estão um tigre de Bengala, um orangotango e uma
zebra. O tigre liquida os três e Pi fi ca à deriva com o
felino por mais de duzentos dias.
O texto de Martel é diferente do texto de Max e
os felinos. Mas o leitmotiv é, sim, o mesmo. E aí surge
o emba raçoso termo: plágio.
Embaraçoso não para mim, devo dizer logo. Na
verdade, e como disse antes, o fato de Martel ter usado
a idéia não chegava a me incomodar. Incomodava-me a 14
suposta resenha e também a maneira pela qual tomei
conheci mento do livro. De fato, não fosse o prêmio,
eu talvez nem fi casse sabendo da existência da obra.
No lugar de Martel eu procuraria avisar o autor.
A liás, foi o que fi z, em outra circunstância. Meu livro
A mulher que escreveu a Bíblia teve como ponto de
partida uma hipótese levantada pelo famoso scholar
norte-americano Harold Bloom segundo a qual uma
parte do Antigo Testamento poderia ter sido escrita
por uma mulher, à época do rei Salomão. Tratava-se,
contudo, de um trabalho teórico. Mesmo assim, coloquei o trecho de Bloom como epígrafe do livro – que
enviei a ele (nunca respondeu – nem sei se recebeu
–, mas eu cumpri minha obrigação). Martel agiu de
maneira diferente. No prefácio, em que agra dece a
muitas pessoas, atribui a “fagulha da vida” (“the spark
of life”) que o motivou a mim. Mas não entra em
detalhes, não fala em Max e os felinos.
Nada se cria, tudo se copia, é um dito freqüente
nos meios acadêmicos. Escrevendo a respei to do incidente (prefi ro este termo), Luis Fernando Verissimo
observou que Shakespeare baseou nume rosas obras em
trabalhos de contemporâneos menores. Em realidade,
não há escritor que não seja infl uenciado por outros
– Bloom, a propósito, fala da “angústia da infl uência”.
Quando comecei a rabiscar meus primeiros textos,
copia va descaradamente. Em redações escolares,
transcrevi várias frases do Cazuza, de Viriato Correa,
um livro que foi lido por várias gerações de crianças 15
brasileiras. Mas isto, no começo. É um sinal de maturidade pro curarmos andar com nossas próprias pernas.
E também é um sinal de maturidade reconhecer, de
forma explíci ta, a utilização do material de outros. Em
trabalhos científi cos isto é feito mediante citação bibliográfi ca. A transcrição também não pode ser extensa.
Essas coisas são levadas cada vez mais a sério,
apesar de a noção de propriedade intelectual ser relativamente nova na história da humanidade. Tomemos,
por exemplo, os trabalhos de Hipó cra tes, considerado
o pai da medicina, e que viveu no século V a.C.. É
difícil saber o que é realmente obra dele e o que foi
escrito por seus discípulos. O nome Hipócrates era
uma grife, uma gratuita franchising. Era livremente
usado porque à época não havia direitos autorais. Em
matéria de texto, isso surgiu com a indústria editorial,
portanto em plena mo dernidade. Shakespeare ainda
vivia uma fase de transição.
Uma idéia é uma propriedade intelectual. Isto
não signifi ca que não possa ser partilhada. Pode,
sim, e freqüentemente o é. Um editor propõe um
mesmo tema para vários autores e faz uma antologia
com os trabalhos: nada demais nisso. Um autor não
está prejudicando o outro. É diferente da situa ção de
um produto qualquer que é copiado, o que impli ca
prejuízo para o produtor original – a pirataria. Usar a
mesma idéia literária não chega a ser pirataria.
Depois de muito debate sobre o assunto o livro de
Martel fi nalmente chegou-me às mãos. Li-o sem rancor; ao contrário, achei o texto bem escrito e o riginal. 16
Ali estava a minha idéia, mas era com curiosidade que
eu seguia a história; queria ver que rumo tomaria sua
narrativa – boa narrativa, aliás, dotada de humor e
imaginação. Ficou claro que nossas visões da idéia
eram completamente diferentes. As associações que
eu fi z são diferentes das que Martel faz.
Um náufrago num escaler diante de um jaguar
– o que signifi caria aquilo para mim? Por que teria
me ocorrido aquela imagem? É uma per gunta que
pode se aplicar a qualquer obra de fi cção (e a qualquer
sonho, qualquer fantasia). E que admite dois tipos de
resposta, em níveis diferentes. Um, mais profundo, e
por conseguinte mais misterioso, diz que tais coisas se
originam no inconsciente; são fantasias ligadas a traumas, cuja elaboração pode demandar muitas horasdivã. O outro tipo de explicação é aquele que ocorre
ao próprio autor. Para mim o jaguar era a imagem de
um poder absoluto e irracional. Como foi o poder do
nazismo, por exemplo. Ou, numa escala bem menor,
o poder da ditadura militar que se instalou no Brasil
em 1964. Martel dá uma conotação diferente – religiosa – à imagem. E isto, presumo, deve ter reforçado
nele a convicção de que não estava copiando, mas sim
usando a idéia como ponto de partida.
***
Seja como for a história, teve desdobramentos
surpreendentes. Nos dias que se seguiram, comecei
a receber cartas, e-mails, telefonemas – e, sobretudo,
pedidos de entrevistas de vários órgãos da imprensa. 17
Não sou um autor desconhecido, mas certamente
nenhum dos meus livros teve a repercussão alcançada
por esse. E nenhum esteve envol vido em tanta confusão. Confusão esta que começou com a divulgação
– extra-ofi cial – do resultado do prêmio, num site da
Internet, um “fi asco”, na expressão do jornal londrino
Th e Guardian, de 26 de outubro. Simultaneamente,
vinha à luz a questão da idéia do livro. Em 27 de
outubro, o próprio Yann Martel publicou no Th e
Sunday Times, de Londres, um artigo que falava sobre
o seu livro – e o meu. No domingo, 3 de novembro,
O Globo publicou, em página inteira, a matéria para
a qual eu tinha sido entrevistado. A jornalista Daniela
Name lembrava: “Max e os felinos não é o primeiro
romance brasileiro supostamente plagiado por um
autor estrangeiro. Publicado em 1934, A sucessora, de
Carolina Nabuco, gerou um debate literário quando
Rebecca, da inglesa Daphne du Maurier, foi editado
quatro anos depois”. (Rebecca, aliás, foi adaptado para
o cinema por Alfred Hitchcock.) Dois dias depois,
apareceu um outro artigo, vastamente difundido pelas
agências internacionais: aquele escri to para o New
York Times pelo correspondente do jornal no Brasil,
Larry Rohter, que me entrevistou por telefone. O
título era: “Tiger in a Lifeboat, Panther in a Lifeboat:
a Furor Over a Novel” (O tigre num bote, a pantera
num bote: um escândalo sobre um romance). Depois
de explicar aos leitores americanos como pronunciar
meu nome (Mo-uh-seer Skleer), Rohter falava do
sucedido, destacando que seu jornal jamais tinha 18
publicado qualquer resenha de John Updike acerca
de Max and the Cats. Também mencionava a reação
da imprensa brasileira.
A isto seguiu-se a reação de um órgão da imprensa
canadense, o National Post. A matéria publi cada no dia
7 de novembro levava como título: “New chapter in a
nation’s rage toward Canada” (Um novo capítulo na
raiva de uma nação [o Brasil] contra o Canadá). E o
subtítulo, usando a alite ração de que os anglo-saxões
tanto gostam, era mui to signifi cativo: “Beef, Bombardier, books”. O texto procurava associar a questão dos
livros com os episódios da proibição da importação da
carne brasileira pelo Canadá (o “beef”) supostamente
por razões sanitárias, e a concorrência entre a brasileira
Embraer e a canadense Bombardier para a venda de
aviões. Ou seja: o assunto estava ultrapassando os
limites da controvérsia literária. E difundia-se cada vez
mais, como constatei, ao procurar descobrir na Internet o noticiário a respeito. Entrei no Google, digitei
dois nomes, Yann Martel e Moacyr Scliar – e fi quei
estarre cido: havia mais de quinhentos textos sobre o
aff aire. E os pedidos de entrevistas continuavam. No
dia 15, cheguei aos Estados Unidos, onde deveria dar
uma palestra em Amherst, Massachusetts. Em minha
passagem (de menos de um dia) por Nova York, fui
entrevistado por cinco órgãos de imprensa.
A pergunta que mais me faziam – e, nos Estados
Unidos, faziam-me de forma insistente – dizia respeito
a um processo judicial. Algo para o qual eu não tinha
a menor disposição. Não só porque demandaria tempo 19
e energia, como também porque minha atitude não
era, e nem nunca foi, litigante. Como mencionei
antes, se, ao tempo em que começou a escrever seu
livro, Yann Martel tivesse entrado em contato comigo
dizendo que queria aproveitar a idéia, eu teria concordado, e de bom grado. Ele não o fez, o que pode ser
considerado inadequa do – mas, ilegal? Eu relutava em
ver a coisa dessa maneira. De modo que resolvi dar
o assunto por encerrado – para decepção, não pude
deixar de notar, de algumas pessoas, que gosta riam de
ver a briga continuar.
***
Algumas conclusões se podem tirar desse episódio,
para o qual o adjetivo “bizarro” me ocorreu desde o
início. É, de fato, uma coisa muito estranha. Há, nela,
uma discussão objetiva sobre o que vem a ser, afi nal, plá-
gio. Objetiva porque há evidentes repercussões práticas
nesta época de marcas, patentes e direitos autorais, mas
nem por isso fácil de resolver. Mesmo que princípios
gerais sejam fi xados, cada caso será um caso e exigirá
uma decisão, judicial ou não, independente.
A outra questão diz respeito aos famosos quinze
minutos de fama, de que falava Andy Warhol. Um
livro chega ao noticiário de duas maneiras. Pode ser
através de uma artigo crítico ou de uma resenha. Mas,
se for dessa maneira, pode-se ter certeza de que a repercussão será limitada. Barulho mesmo faz o succès de
scandale. Que, diga-se desde logo, não afasta o mérito
literário. Escândalo provocaram livros como Madame
Bovary, de Flaubert, L’Assomoir, de Zola, e Le diable 20
au corps, de Raymond Radiguet, para fi carmos só na
França, onde se originou a expressão. E qual o mecanismo deste sucesso? É como se as pessoas dissessem,
repetindo o Eclesiastes: há livros demais no mundo
– acrescentando em seguida: dêm-me um motivo para
ler esse livro em particular. E, quanto mais picante,
mais controverso for o motivo, melhor – e tanto
maior a possibilidade dos quinze minutos de fama.
Por coincidência, na mesma época da discussão sobre
os livros, estourou o escândalo Winona Ryder: a atriz
tinha sido surpreendida roubando roupas de uma loja.
Não menos sur preendente foi o artigo aparecido em
um jornal americano, dizendo que o julgamento seria
benéfi co para a carreira de uma atriz cujos últimos
fi lmes, segundo o articulista, não haviam tido muito
êxito. Pouco depois disso, um conhecido contou-me
o sonho que tivera: sonhara que a história do plágio
havia sido combinada entre Yann Martel e eu, para
mútua promoção. Um sonho inteiramente explicável,
na conjuntura em que vivemos. Livro depende de promoção – e a promoção depende, entre outras coisas, da
visibilidade do autor. Isso explica o desaparecimento
do pseudônimo, por exemplo. E explica as viagens
coast to coast que os escritores americanos fazem, atravessando os Estados Unidos de um ponta a outra para
falarem de seus livros em palestras e programas de tevê.
É claro que qualquer coisa que chame a atenção para
a obra, nestas circunstâncias, é bem-vinda.
Nem todos os escritores aceitam essa injun ção.
Lembro Rubem Fonseca recusando-se a falar sobre sua 21
obra em uma mesa-redonda: “O que tenho a dizer está
nos meus livros”. Mas entre essa recusa e a aceitação
total, às vezes até entusiástica, há um gradiente de
possibilidades no qual os escritores vão se situando
conforme sua disponibilidade, conforme seu temperamento, conforme sua ca pacidade de comunicação.
Parte disso corres ponde ao papel do escritor como
intelectual: as pessoas esperam que quem sabe escrever
saiba também falar e tenha idéias a transmitir.
O importante é não fazer um investimento
emocional nesta fama passageira. O importante é não
tentar repetir os quinze minutos. “Não há segundo
ato nas vidas americanas”, disse Scott Fitzgerald, e isso
é válido especialmente para arte e literatura: depois
que as cortinas do palco se fecham, elas não abrem
mais. As pessoas que não acreditam, ou não querem
acreditar nisso, entregam-se, não raro, às mais paté-
ticas tentativas para fazer de novo brilhar, sobre si,
os refl etores do sucesso. Que têm um grande efeito:
aquecem o ego. E não existe entidade que deseje ser
mais aquecida, e massageada, e acarinhada, do que
o ego. No passado, essa era uma exigência tímida,
porque individualismo é uma coisa relativamente
recente: pode ter existido sempre, mas criou força
com a moder nidade, e triunfa nesta época narcísica
em que vivemos. O ego exige sucesso. Mas, como
disse Clarice Lispector, numa carta a uma jovem que
pretendia tornar-se escritora: “Quando você fi zer
sucesso, fi que contentinha, mas não contentona. É
preciso ter sempre uma simples humil dade, tanto 22
na vida como na literatura”. Contenti nha, mas não
contentona: em quatro palavras, Clarice disse tudo, o
que não é de admirar, em se tratando de uma grande
escritora. É interessante, aliás, que tenha usado a expressão “contente”, mas não “feliz”. Não é a mesma
coisa. Felicidade é uma coisa transcendente, imaterial.
Contente é aquele que contém: sua carência foi preenchida com elogios, com tapinhas nas costas. No Brasil
temos a expressão “o bloco dos contentes”. Usa-se em
geral para pessoas que, ligadas à administração pública,
conseguem favores, privilégios, mordomias. O que as
contenta vem de fora.
Literatura não é fonte de contentamento. Nem
é coisa que possa ser feita pelo membro de um bloco.
Ela é, essencialmente, um vício solitário. Isto não
quer dizer que tenha de ser praticada numa isolada
torre de marfi m. A grande literatura inevitavelmente
refl ete o contexto social da época. Mas o faz como um
sismógrafo, cuja agulha desloca-se como resposta a
movimentos profundos. Espero que isso tenha acontecido, ao menos em parte, ao menos em pequena parte,
com uma história chamada “Max e os felinos”. Todo
o resto, francamente, não tem muita importância.
Março de 2003