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"Max e os Felinos" X "Life of Pi"

Ana Lovejoy

Administrador
Bom, a "polêmica" não é novidade, mas voltou agora que o filme Life of Pi está chegando (e chegando com chances de Oscar, pelo que andam comentando por aí). A questão é: o autor do livro (Yann Martel) admitiu ter se inspirado no livro de Scliar, chamado "Max e os Felinos". A L&PM publicou uma entrevista com Scliar falando sobre o assunto (de 2009). Segue aí para quem não estava sabendo sobre o assunto ~~ficar por dentro~~

[video=youtube_share;jIQitu5oYWw]http://youtu.be/jIQitu5oYWw[/video]

PS. Tá no Generalidades pq o Scliar é brasileiro, o Martel é canadense, aí aqui é a coluna do meio :dente:
 
Eu concordo com o Scliar no sentido de que o Martel nem falou com ele perguntando se podia usar alguns elementos do livro e tal... Assim, não li esse do Scliar, mas, pelo que parece, não só as intenções, como as histórias em si, são diferentes, então, sei lá, não vejo muiiito como plágio :think:
 
Nossa, não sabia disso.

Mas ficou uma impressão bem forte de que o canadense usou (pra não dizer roubou mesmo) a ideia do brasileiro achando que ninguém ia perceber, e quando a imprensa inglesa levantou a lebre aí ele se retratou.
E deve ter ficado com o c*zinho bem apertado com medo de processo, porque vários autores foram processados por bem menos que isso.
Lembram do monte de processos que cairam em cima da J.K.Rowling por causa do Harry Potter?

Uma coisa é certa, perdi a vontade de ler esse livro e até de ver o filme (que vi o trailer e achei lindo).
Talvez só consiga fazer isso daqui a alguns anos. =/
É bobeira, eu sei, mas sempre vou lembrar do Scliar quando ouvir falar dessa obra e desse escritor.
 
Pelo que me disseram, no final das contas ficaram histórias diferentes: o subtexto do Scliar trata de identidade, enquanto que o do Martel de religiosidade. Não li os mencionados livros mas, conhecendo o Scliar, essa diferença nas camadas entre um e o outro faz sentido.
 
Entrevista antiga com o Yann Martel mencionando a questão.

Não sei vocês, mas tô até aceitando bem a resposta dele.

De boa. Isso acontece frequentemente. Seria complicado para mim se ele fizesse nos mesmos moldes e com a mesma abordagem do Scliar, mas ele foi por um caminho diverso. Talvez fosse o caso de mencionar a inspiração da trama nos "Agradecimentos", mas não acredito que tenha havido má-fé por parte do Martel.
 
Post do Luiz Schwarcz no blog da companhia >> http://www.blogdacompanhia.com.br/2013/02/scliar-e-o-felino/:

Poucos dias após o livro A vida de Pi ganhar o Booker Prize — o prêmio literário mais prestigioso do Reino Unido e um dos mais sérios e bem organizados do mundo —, um escândalo veio à tona, através de uma matéria publicada no Guardian. O jornal inglês foi o primeiro a notar que A vida de Pi tinha uma trama idêntica a Max e os felinos, de Moacyr Scliar. O prêmio já tinha suscitado certa polêmica por conta do livro ser bem menos erudito e literário do que os tradicionais vencedores, mas essa nova acusação chegou à minha porta.

Embora o livro original não tenha sido publicado pela Companhia das Letras, Scliar vinha editando seus trabalhos conosco e me ligou indignado:

— Temos que fazer alguma coisa, tchê. Isso é plágio, Luiz. Vamos acionar advogados, uma coisa como essa não pode acontecer.

Eu falava constantemente com Scliar, como os leitores deste blog sabem — ele foi dos grandes amigos que tive, desde o início da minha carreira profissional.

— Calma, Moacyr, vou me aconselhar com advogados e ver o que é possível.

Enquanto buscava me inteirar do caso, a polêmica fervia. Indelicadamente, Yann Martel, o autor do livro premiado, declarava não ter lido o livro de Scliar, mas apenas uma resenha negativa de John Updike publicada no New York Times, o que o fizera pensar mais ou menos o seguinte: “Que boa ideia mal aproveitada. E se ela fosse retrabalhada por um escritor com o meu talento?”. Scliar nunca fora resenhado por Updike. As declarações de Martel caíam cada vez pior.

A indignação de Moacyr só aumentava. A fumaça também. O New York Times resolveu cobrir o episódio, e em suas páginas dava valor ao talento de Scliar. Foi o suficiente para que meu telefone começasse a tocar, com chamados de duas agências importantes dos Estados Unidos querendo representar mundialmente a obra do nosso grande escritor.

Liguei para Moacyr com essas informações.

— Amigo, a ICM e outras agências querem te representar nos Estados Unidos. Apesar de tudo isso ter surgido através de um episódio lamentável, é uma grande oportunidade. Você tem que aproveitar.

Enquanto isso, os advogados diziam ser impossível mover um processo com base na apropriação de uma ideia, além do custo de uma causa internacional como esta ser altíssimo.

Meu telefone continuava a tocar, e desta vez não eram agentes mas o editor de Martel, Jamie Byng, da Canongate, querendo minha mediação no caso. Jamie é um editor de grande energia, uma figura ímpar no mundo editorial por seu empreendedorismo e criatividade. DJ nas horas vagas, organiza festas famosas durante as feiras de livros, nas quais ele mesmo assume o comando musical.

No telefone ele garantia a boa fé de Martel e me pedia, em conjunto com o autor, que alcançássemos uma solução pacífica. Dar conta da polêmica literária sobre a premiação já era o suficiente para os dois.

Convenci Moacyr de que o processo seria inviável e propus que Martel desse uma entrevista valorizando a obra do brasileiro e se retratando das declarações infelizes. Moacyr, por seu lado, daria declarações dizendo que não moveria processo algum. O leitor do blog pode acessar as matérias publicadas na ocasião pelo Estado e pela Folha.

Ao assistir As aventuras de Pi no cinema agora, não pude deixar de sentir um gosto amargo, além das saudades do grande amigo que partiu.

Infelizmente, seguindo seu caráter superdevotado aos amigos, Scliar não aceitou as propostas das grandes agências que queriam promovê-lo. Se manteve fiel ao agente literário que o representava, que prometeu tirar algum proveito da polêmica e recolocar as obras de Moacyr no mercado de língua inglesa e na Europa — promessa não cumprida. E enquanto o romance de Yann Martel ganhou as telas numa megaprodução, o mundo continua merecendo conhecer melhor os livros de um dos maiores escritores brasileiros do século XX.

eu acabei de ler as aventuras de pi - e pretendo ler max e os felinos em breve para formar opinião própria sobre a questão. mas tenho me irritado com a sequência de compartilhamentos de um texto acusando o martel de plágio. é de uma ignorância sem fim, é aquela revoltinha besta de sofá - pessoa nem vai checar informação e sai apontando dedos. no meu post sobre as aventuras de pi no hellfire eu escrevi o seguinte:

Eu já compartilhei o video com o depoimento do Scliar aqui no blog, mas segue novamente o link para quem quiser ver. Minha primeira consideração sobre o assunto é que as pessoas deveriam se informar mais antes de compartilhar protestos no Facebook. Em uma imagem que acusa Martel de plágio, tem até um sujeito que comentou algo como “Indiano safado!” – sendo que Martel nasceu na Espanha e viveu no Canadá. Esse tipo de comentário já dá bem uma noção do tipo de pessoa que clica no “compartilhar”, não?

Ok, continuando: eu tenho bastante claro na minha cabeça que sem ler Max e os Felinos eu não posso dizer nada com certeza: preciso reconhecer trechos copiados para dizer “Sim, é plágio”. Porque copiar um elemento de uma história não é plágio. Explico: alguém por aí acusa Shakespeare de ser plagiador? Não, né? O engraçado é que poucos enredos de Shakespeare são “originais”. Tome como exemplo Romeu e Julieta, que tem muitos elementos de uma história escrita por um italiano chamado Luigi da Porto. Hamlet teria supostamente vindo de Saxo Gramaticus, A comédia dos erros de Plauto e por aí vai.

E olha, se elementos pudessem ser plagiados, as possibilidades de criação passariam a ser limitadas. A primeira pessoa a escrever um whodunit seria a única que poderia utilizar-se dessa fórmula. Machadão teria plagiado Shakespeare com seu Bentinho ciumento? E por aí seguimos. As questões que devem ser levantadas são: ambos contaram a MESMA história colocando um garoto num bote com um felino? Discutiram as mesmas ideias? Há ações e falas idênticas nos dois textos? Sim para qualquer uma dessas perguntas significa que sim, houve plágio. Caso contrário, Martel aproveitou-se de uma ideia para contar uma história. Mau caráter ou não, ele não é o primeiro e nem será o último a fazer isso. Vide a quantidade de romances com “homenagens” sem qualquer referência que estão surgindo por aí.

De qualquer forma, essa é minha opinião sobre o assunto. O que ouvi do meu irmão (que estuda direitos autorais), é que não se pode “plagiar uma ideia” – e se lerem o post do Luiz Schwarcz no Blog da Companhia verão que os advogados consultados por ele falaram a mesma coisa. Se essa polêmica serve de algo (além de encher o fiofó da Nova Fronteira e da L&PM de dinheiro com a divulgação gratuita dos livros em questão) é justamente para abrir espaço para a discussão sobre qual é o limite entre inspiração e plágio.

Mas insisto: ainda não li Max e os Felinos, pretendo voltar com respostas para essa pergunta em breve. De qualquer forma, para Scliar ter até cogitado processar Martel por plágio, talvez as semelhanças não se resumam à ideia do garoto com um felino num bote salva-vidas. De qualquer forma, o que quero dizer com tudo isso é: parem de replicar acusação no Facebook, vão ler os livros e tirem vocês mesmos suas próprias considerações.
 
Então que na minha busca por um exemplar de Max e os Felinos, cheguei no site da editora (óóó) e lá tem um preview do livro que, por felicidade, tem toda a introdução escrita por scliar em 2003 falando sobre o assunto. eu to copiando e colando aqui porque tem muita gente que tem preguiça de clicar em link (hehehe) e eu acho que vale a leitura. malz pelo texto mal formatado.


INTRODUÇÃO
Moacyr Scliar
O Destino ainda bate à porta, claro, mas nesta
época de comunicações instantâneas prefere o telefone. Na tarde de 30 de outubro de 2002, voltando
para casa cansado de uma viagem, recebi uma ligação.
Era uma jornalista do jornal O Globo, dando-me uma
notícia que, a princípio, não entendi bem: parece que
um escritor tinha ganho, na Europa, um prêmio importante com um livro baseado em um texto meu.
Minha primeira reação foi de estranheza: um escritor, e do chamado Primeiro Mundo, copiando um
autor brasileiro? Copiando a mim? Ela se ofereceu para
me dar mais detalhes, o que foi feito em telefonemas
seguintes, e assim aos poucos fui mergulhando no que se
revelaria, nos dias seguintes, um verdadeiros torvelinho,
uma experiência pela qual eu nunca havia passado.
Sim, um escritor canadense chamado Yann
Martel havia recebido, na Inglaterra, o prestigioso
prêmio Booker, no valor de 55 mil libras esterlinas,
conferido anualmente a autores do Common wealth
britânico ou da República da Irlanda (entre outros:
Ian McEwan, Michael Ondaatje, Kingsley Amis,
J.M.Coetzee, Salman Rushdie, Iris Mur doch). Sim, 12
ele dizia que havia se baseado em um livro meu, Max
e os felinos, publicado no Brasil em 1981, pela L&PM
(Porto Alegre), e traduzido poucos anos depois nos
Estados Unidos como Max and the Cats (New York,
Ballantine Books, 1990) e na Fran ça como Max et
les Chats (Paris, Presses de la Renais sance, 1991). É
uma pequena novela que escrevi com grande prazer
– lembro-me de um fi m de semana na serra gaúcha
em que matraqueava animado a máquina de escrever,
em todos os minutos em que não estava cuidando de
meu fi lho, ainda pequeno.
Minha primeira reação não foi de contrariedade.
Ao contrário, de alguma forma senti-me envaide cido
por ter alguém se entusiasmado pela idéia tanto
quanto eu próprio me entusiasmara. Mas havia, na
notícia, um componente desagradável e estranho,
tão estranho quanto desagradável. Yann Martel não
tinha, segundo suas declarações, lido a novela. Tomara conhecimento dela através de uma resenha do
escritor John Updike para o New York Times, resenha
desfavorável, segundo ele.
Esta afi rmativa me perturbou. Max and the Cats
não chegou a ser um best-seller, mas os artigos sobre o
livro, que me haviam sido enviados pela editora, eram
favoráveis – inclusive o do New York Times, assinado
por Herbert Mitgang. Teria Updike escrito uma outra
resenha – para o mesmo jornal? Se era esse o caso,
por que eu não a recebera? Será que os editores só
mandavam resenhas favoráveis?
À afi rmativa seguia-se um comentário de Martel.
Uma pena, dizia ele, que uma idéia boa tivesse sido 13
estragada por um escritor menor. Mas, em seguida,
levantava uma outra hipótese: e se eu não fosse um
escritor menor? E se Updike tivesse se enganado? De
qualquer maneira a idéia principal do livro serviu-lhe
de ponto de partida para sua obra Th e Life of Pi. E
qual é essa idéia?
O Max Schmidt de meu livro é um jovem alemão
que está fugindo do nazismo e que embarca para o
Brasil. O navio em que viaja, um velho cargueiro,
transporta também animais de um zoológico. Há
um naufrágio, criminoso, mas Max salva-se em um
escaler. E de repente sobe a bordo um sobrevivente
inesperado e ameaçador: um jaguar. Começa então a
segunda parte da novela, que tem como título O jaguar
no escaler.
Esta, a idéia que motivou Martel. O seu personagem, Piscine Molitor Patel, Pi, é um menino hindu
cujo pai é dono de um zoológico. A família emigra
para o Canadá, levando os animais a bordo. Há, na
segunda parte do livro, um naufrágio (que depois será
considerado criminoso). Pi salva-se. No mesmo barco
estão um tigre de Bengala, um orangotango e uma
zebra. O tigre liquida os três e Pi fi ca à deriva com o
felino por mais de duzentos dias.
O texto de Martel é diferente do texto de Max e
os felinos. Mas o leitmotiv é, sim, o mesmo. E aí surge
o emba raçoso termo: plágio.
Embaraçoso não para mim, devo dizer logo. Na
verdade, e como disse antes, o fato de Martel ter usado
a idéia não chegava a me incomodar. Incomodava-me a 14
suposta resenha e também a maneira pela qual tomei
conheci mento do livro. De fato, não fosse o prêmio,
eu talvez nem fi casse sabendo da existência da obra.
No lugar de Martel eu procuraria avisar o autor.
A liás, foi o que fi z, em outra circunstância. Meu livro
A mulher que escreveu a Bíblia teve como ponto de
partida uma hipótese levantada pelo famoso scholar
norte-americano Harold Bloom segundo a qual uma
parte do Antigo Testamento poderia ter sido escrita
por uma mulher, à época do rei Salomão. Tratava-se,
contudo, de um trabalho teórico. Mesmo assim, coloquei o trecho de Bloom como epígrafe do livro – que
enviei a ele (nunca respondeu – nem sei se recebeu
–, mas eu cumpri minha obrigação). Martel agiu de
maneira diferente. No prefácio, em que agra dece a
muitas pessoas, atribui a “fagulha da vida” (“the spark
of life”) que o motivou a mim. Mas não entra em
detalhes, não fala em Max e os felinos.
Nada se cria, tudo se copia, é um dito freqüente
nos meios acadêmicos. Escrevendo a respei to do incidente (prefi ro este termo), Luis Fernando Verissimo
observou que Shakespeare baseou nume rosas obras em
trabalhos de contemporâneos menores. Em realidade,
não há escritor que não seja infl uenciado por outros
– Bloom, a propósito, fala da “angústia da infl uência”.
Quando comecei a rabiscar meus primeiros textos,
copia va descaradamente. Em redações escolares,
transcrevi várias frases do Cazuza, de Viriato Correa,
um livro que foi lido por várias gerações de crianças 15
brasileiras. Mas isto, no começo. É um sinal de maturidade pro curarmos andar com nossas próprias pernas.
E também é um sinal de maturidade reconhecer, de
forma explíci ta, a utilização do material de outros. Em
trabalhos científi cos isto é feito mediante citação bibliográfi ca. A transcrição também não pode ser extensa.
Essas coisas são levadas cada vez mais a sério,
apesar de a noção de propriedade intelectual ser relativamente nova na história da humanidade. Tomemos,
por exemplo, os trabalhos de Hipó cra tes, considerado
o pai da medicina, e que viveu no século V a.C.. É
difícil saber o que é realmente obra dele e o que foi
escrito por seus discípulos. O nome Hipócrates era
uma grife, uma gratuita franchising. Era livremente
usado porque à época não havia direitos autorais. Em
matéria de texto, isso surgiu com a indústria editorial,
portanto em plena mo dernidade. Shakespeare ainda
vivia uma fase de transição.
Uma idéia é uma propriedade intelectual. Isto
não signifi ca que não possa ser partilhada. Pode,
sim, e freqüentemente o é. Um editor propõe um
mesmo tema para vários autores e faz uma antologia
com os trabalhos: nada demais nisso. Um autor não
está prejudicando o outro. É diferente da situa ção de
um produto qualquer que é copiado, o que impli ca
prejuízo para o produtor original – a pirataria. Usar a
mesma idéia literária não chega a ser pirataria.
Depois de muito debate sobre o assunto o livro de
Martel fi nalmente chegou-me às mãos. Li-o sem rancor; ao contrário, achei o texto bem escrito e o riginal. 16
Ali estava a minha idéia, mas era com curiosidade que
eu seguia a história; queria ver que rumo tomaria sua
narrativa – boa narrativa, aliás, dotada de humor e
imaginação. Ficou claro que nossas visões da idéia
eram completamente diferentes. As associações que
eu fi z são diferentes das que Martel faz.
Um náufrago num escaler diante de um jaguar
– o que signifi caria aquilo para mim? Por que teria
me ocorrido aquela imagem? É uma per gunta que
pode se aplicar a qualquer obra de fi cção (e a qualquer
sonho, qualquer fantasia). E que admite dois tipos de
resposta, em níveis diferentes. Um, mais profundo, e
por conseguinte mais misterioso, diz que tais coisas se
originam no inconsciente; são fantasias ligadas a traumas, cuja elaboração pode demandar muitas horasdivã. O outro tipo de explicação é aquele que ocorre
ao próprio autor. Para mim o jaguar era a imagem de
um poder absoluto e irracional. Como foi o poder do
nazismo, por exemplo. Ou, numa escala bem menor,
o poder da ditadura militar que se instalou no Brasil
em 1964. Martel dá uma conotação diferente – religiosa – à imagem. E isto, presumo, deve ter reforçado
nele a convicção de que não estava copiando, mas sim
usando a idéia como ponto de partida.
***
Seja como for a história, teve desdobramentos
surpreendentes. Nos dias que se seguiram, comecei
a receber cartas, e-mails, telefonemas – e, sobretudo,
pedidos de entrevistas de vários órgãos da imprensa. 17
Não sou um autor desconhecido, mas certamente
nenhum dos meus livros teve a repercussão alcançada
por esse. E nenhum esteve envol vido em tanta confusão. Confusão esta que começou com a divulgação
– extra-ofi cial – do resultado do prêmio, num site da
Internet, um “fi asco”, na expressão do jornal londrino
Th e Guardian, de 26 de outubro. Simultaneamente,
vinha à luz a questão da idéia do livro. Em 27 de
outubro, o próprio Yann Martel publicou no Th e
Sunday Times, de Londres, um artigo que falava sobre
o seu livro – e o meu. No domingo, 3 de novembro,
O Globo publicou, em página inteira, a matéria para
a qual eu tinha sido entrevistado. A jornalista Daniela
Name lembrava: “Max e os felinos não é o primeiro
romance brasileiro supostamente plagiado por um
autor estrangeiro. Publicado em 1934, A sucessora, de
Carolina Nabuco, gerou um debate literário quando
Rebecca, da inglesa Daphne du Maurier, foi editado
quatro anos depois”. (Rebecca, aliás, foi adaptado para
o cinema por Alfred Hitchcock.) Dois dias depois,
apareceu um outro artigo, vastamente difundido pelas
agências internacionais: aquele escri to para o New
York Times pelo correspondente do jornal no Brasil,
Larry Rohter, que me entrevistou por telefone. O
título era: “Tiger in a Lifeboat, Panther in a Lifeboat:
a Furor Over a Novel” (O tigre num bote, a pantera
num bote: um escândalo sobre um romance). Depois
de explicar aos leitores americanos como pronunciar
meu nome (Mo-uh-seer Skleer), Rohter falava do
sucedido, destacando que seu jornal jamais tinha 18
publicado qualquer resenha de John Updike acerca
de Max and the Cats. Também mencionava a reação
da imprensa brasileira.
A isto seguiu-se a reação de um órgão da imprensa
canadense, o National Post. A matéria publi cada no dia
7 de novembro levava como título: “New chapter in a
nation’s rage toward Canada” (Um novo capítulo na
raiva de uma nação [o Brasil] contra o Canadá). E o
subtítulo, usando a alite ração de que os anglo-saxões
tanto gostam, era mui to signifi cativo: “Beef, Bombardier, books”. O texto procurava associar a questão dos
livros com os episódios da proibição da importação da
carne brasileira pelo Canadá (o “beef”) supostamente
por razões sanitárias, e a concorrência entre a brasileira
Embraer e a canadense Bombardier para a venda de
aviões. Ou seja: o assunto estava ultrapassando os
limites da controvérsia literária. E difundia-se cada vez
mais, como constatei, ao procurar descobrir na Internet o noticiário a respeito. Entrei no Google, digitei
dois nomes, Yann Martel e Moacyr Scliar – e fi quei
estarre cido: havia mais de quinhentos textos sobre o
aff aire. E os pedidos de entrevistas continuavam. No
dia 15, cheguei aos Estados Unidos, onde deveria dar
uma palestra em Amherst, Massachusetts. Em minha
passagem (de menos de um dia) por Nova York, fui
entrevistado por cinco órgãos de imprensa.
A pergunta que mais me faziam – e, nos Estados
Unidos, faziam-me de forma insistente – dizia respeito
a um processo judicial. Algo para o qual eu não tinha
a menor disposição. Não só porque demandaria tempo 19
e energia, como também porque minha atitude não
era, e nem nunca foi, litigante. Como mencionei
antes, se, ao tempo em que começou a escrever seu
livro, Yann Martel tivesse entrado em contato comigo
dizendo que queria aproveitar a idéia, eu teria concordado, e de bom grado. Ele não o fez, o que pode ser
considerado inadequa do – mas, ilegal? Eu relutava em
ver a coisa dessa maneira. De modo que resolvi dar
o assunto por encerrado – para decepção, não pude
deixar de notar, de algumas pessoas, que gosta riam de
ver a briga continuar.
***
Algumas conclusões se podem tirar desse episódio,
para o qual o adjetivo “bizarro” me ocorreu desde o
início. É, de fato, uma coisa muito estranha. Há, nela,
uma discussão objetiva sobre o que vem a ser, afi nal, plá-
gio. Objetiva porque há evidentes repercussões práticas
nesta época de marcas, patentes e direitos autorais, mas
nem por isso fácil de resolver. Mesmo que princípios
gerais sejam fi xados, cada caso será um caso e exigirá
uma decisão, judicial ou não, independente.
A outra questão diz respeito aos famosos quinze
minutos de fama, de que falava Andy Warhol. Um
livro chega ao noticiário de duas maneiras. Pode ser
através de uma artigo crítico ou de uma resenha. Mas,
se for dessa maneira, pode-se ter certeza de que a repercussão será limitada. Barulho mesmo faz o succès de
scandale. Que, diga-se desde logo, não afasta o mérito
literário. Escândalo provocaram livros como Madame
Bovary, de Flaubert, L’Assomoir, de Zola, e Le diable 20
au corps, de Raymond Radiguet, para fi carmos só na
França, onde se originou a expressão. E qual o mecanismo deste sucesso? É como se as pessoas dissessem,
repetindo o Eclesiastes: há livros demais no mundo
– acrescentando em seguida: dêm-me um motivo para
ler esse livro em particular. E, quanto mais picante,
mais controverso for o motivo, melhor – e tanto
maior a possibilidade dos quinze minutos de fama.
Por coincidência, na mesma época da discussão sobre
os livros, estourou o escândalo Winona Ryder: a atriz
tinha sido surpreendida roubando roupas de uma loja.
Não menos sur preendente foi o artigo aparecido em
um jornal americano, dizendo que o julgamento seria
benéfi co para a carreira de uma atriz cujos últimos
fi lmes, segundo o articulista, não haviam tido muito
êxito. Pouco depois disso, um conhecido contou-me
o sonho que tivera: sonhara que a história do plágio
havia sido combinada entre Yann Martel e eu, para
mútua promoção. Um sonho inteiramente explicável,
na conjuntura em que vivemos. Livro depende de promoção – e a promoção depende, entre outras coisas, da
visibilidade do autor. Isso explica o desaparecimento
do pseudônimo, por exemplo. E explica as viagens
coast to coast que os escritores americanos fazem, atravessando os Estados Unidos de um ponta a outra para
falarem de seus livros em palestras e programas de tevê.
É claro que qualquer coisa que chame a atenção para
a obra, nestas circunstâncias, é bem-vinda.
Nem todos os escritores aceitam essa injun ção.
Lembro Rubem Fonseca recusando-se a falar sobre sua 21
obra em uma mesa-redonda: “O que tenho a dizer está
nos meus livros”. Mas entre essa recusa e a aceitação
total, às vezes até entusiástica, há um gradiente de
possibilidades no qual os escritores vão se situando
conforme sua disponibilidade, conforme seu temperamento, conforme sua ca pacidade de comunicação.
Parte disso corres ponde ao papel do escritor como
intelectual: as pessoas esperam que quem sabe escrever
saiba também falar e tenha idéias a transmitir.
O importante é não fazer um investimento
emocional nesta fama passageira. O importante é não
tentar repetir os quinze minutos. “Não há segundo
ato nas vidas americanas”, disse Scott Fitzgerald, e isso
é válido especialmente para arte e literatura: depois
que as cortinas do palco se fecham, elas não abrem
mais. As pessoas que não acreditam, ou não querem
acreditar nisso, entregam-se, não raro, às mais paté-
ticas tentativas para fazer de novo brilhar, sobre si,
os refl etores do sucesso. Que têm um grande efeito:
aquecem o ego. E não existe entidade que deseje ser
mais aquecida, e massageada, e acarinhada, do que
o ego. No passado, essa era uma exigência tímida,
porque individualismo é uma coisa relativamente
recente: pode ter existido sempre, mas criou força
com a moder nidade, e triunfa nesta época narcísica
em que vivemos. O ego exige sucesso. Mas, como
disse Clarice Lispector, numa carta a uma jovem que
pretendia tornar-se escritora: “Quando você fi zer
sucesso, fi que contentinha, mas não contentona. É
preciso ter sempre uma simples humil dade, tanto 22
na vida como na literatura”. Contenti nha, mas não
contentona: em quatro palavras, Clarice disse tudo, o
que não é de admirar, em se tratando de uma grande
escritora. É interessante, aliás, que tenha usado a expressão “contente”, mas não “feliz”. Não é a mesma
coisa. Felicidade é uma coisa transcendente, imaterial.
Contente é aquele que contém: sua carência foi preenchida com elogios, com tapinhas nas costas. No Brasil
temos a expressão “o bloco dos contentes”. Usa-se em
geral para pessoas que, ligadas à administração pública,
conseguem favores, privilégios, mordomias. O que as
contenta vem de fora.
Literatura não é fonte de contentamento. Nem
é coisa que possa ser feita pelo membro de um bloco.
Ela é, essencialmente, um vício solitário. Isto não
quer dizer que tenha de ser praticada numa isolada
torre de marfi m. A grande literatura inevitavelmente
refl ete o contexto social da época. Mas o faz como um
sismógrafo, cuja agulha desloca-se como resposta a
movimentos profundos. Espero que isso tenha acontecido, ao menos em parte, ao menos em pequena parte,
com uma história chamada “Max e os felinos”. Todo
o resto, francamente, não tem muita importância.
Março de 2003
 
Bacana.

Resumindo, ainda acho que as pessoas deveriam largar mão do ufanismo besta e já odiar automaticamente um livro que sequer leram por conta de uma injustiça causada contra um autor nacional. A obra de Scliar merece ser conhecida e Martel não agiu da melhor forma – estes são pontos inquestionáveis. Mas reforçar essa polêmica alardeando plágio (ou mesmo dizendo que o livro do Martel é ruim, como já vi gente publicar por aí como argumento de defesa de Scliar. Você pode achar o livro ruim, mas isso jamais será um argumento sobre a questão) é simplesmente uma bobagem.

Então, o que achei ruim nessa história foi mesmo isso que você menciona no blog, Anica, de o Martel não ter, desde o começo, falado da ideia que teve ao ler a história do Scliar.

Foi mesmo bem ruim mesmo aquela conversa de que tinha lido uma suposta "crítica ruim" sobre o livro e tal.
Não precisava disso.

E legal saber que o próprio Moacir Scliar gostou de "A História de Pi". =]
 

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