Melian
Período composto por insubordinação.
“... tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.”
(João Cabral de Melo Neto)
Neste tópico, quero fazer uma leitura da obra A educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto, considerando o trabalho de arte como principal operador do processo de composição dos poemas. Ou seja, pretendo fazer uma leitura desta obra à luz de uma teoria proposta não pelos especialistas na obra cabralina, mas pelo próprio escritor pernambucano. Para tanto, usarei como base o lúcido ensaio sobre a composição poética, intitulado A inspiração e o trabalho de arte, escrito por João Cabral de Melo Neto.
A educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto, foi publicado, pela primeira vez, em 1966, e desde então, tem suscitado muitos estudos. A obra tem 48 poemas e é divida em quatro partes, cujos títulos são: Nordeste (a), Não Nordeste (b), Nordeste (A) e Não Nordeste (B). O que é comum às quatro seções em que a obra se divide é a permanência do tema “Nordeste”, que aparece mesmo que seja precedido do prefixo “não”, “é como no movimento dialético em que uma tese só existe porque pressupõe a si a própria negação, ou seja, a existência do que é negado impõe-se, justamente, porque é ela a condição do negado”. (UBIRAJARA, 2008, p. 37). Esse exercício de negação, que pressupõe a dialética da tese e antitese, já evidencia, desde o título, um dos traços constitutivos da obra: a negação.
Cada uma das quatro seções do livro contém 12 poemas. No total, 24 poemas da obra abordam a realidade pernambucana e os outros 24, pertencentes às seções Não Nordeste (a) e Não Nordeste (B), versam sobre diversos assuntos, a saber: a arquitetura, o canto do galo, o erotismo, entre outros, todos permeados, direta ou indiretamente, pela temática da negação.
Negação que está impressa, irônica e jocosamente, na dedicatória do livro, quando o escritor dedica a obra ao seu primo, o poeta modernista Manuel Bandeira: “A Manuel Bandeira esta antilira para seus oitent’anos” (MELO NETO, 1997, p. 1). Nesta dedicatória, João Cabral faz uma espécie de paródia com a “Lira dos cinquent’anos”, de Manuel Bandeira. Com a substituição da palavra “lira” pela palavra “antilira”, o poeta deixa claro seu posicionamento antilírico - que é reforçado pelo fato de os 48 poemas que compõem A educação pela pedra não terem a presença do vocábulo “eu” - anunciando a fundamentação do seu estilo de escrita que, em detrimento do subjetivismo e da fluidez dos versos dos poemas líricos, privilegia a ausência de fluidez, a ausência de excessos e o verso de ritmo truncado. Evidencia, enfim, sua concisão estilística.
João Cabral de Melo Neto observou que muitos escritores pautam sua poética pela substituição da “preocupação de se comunicar pela preocupação de exprimir-se” (MELO NETO, 1994, p. 724), o que faz com que eles adotem uma escrita que seja impulsionada pelo inefável, pela teoria da inspiração, que “será definida por uns como uma presença sobrenatural” (MELO NETO, 1994, p. 728). As poesias advindas do ideal de inspiração são escritas “em linguagem corrente, não por amor à linguagem corrente, mas como um resultado de sua pouca elaboração” (MELO NETO, 1994, p. 729).
João Cabral, por outro lado, acreditava que o ensimesmamento do poeta que buscava, prioritariamente, em sua escrita, se expressar, era prejudicial ao leitor, que não teria como compartilhar do insight que gerara a composição do poema e, por conseguinte, não conseguiria estabelecer com a obra uma comunicação.
Para não incorrer na incomunicabilidade, João Cabral de Melo Neto desenvolveu sua poética pautada pelo predomínio do trabalho de arte,
A partir disso, a escrita cabralina visa à construção de uma linguagem-pedra, uma linguagem que prima pela expressão do poema, não do poeta, por meio da qual se busca a simetria entre a estrutura da linguagem e a da realidade representada, como se pode evidenciar no poema que dá título à obra, “A educação pela pedra”:
No poema “A educação pela pedra”, tem-se a premissa que guiará a composição da obra homônima, a da resistência ao fluir da escrita, ou seja, a adoção de uma escrita que seja trabalhada de modo a ter a consistência e resistência de uma pedra. Uma escrita próxima da realidade do Nordeste, da realidade da “árvore pedrenta (o sertanejo), incapaz de não se expressar em pedra” (MELO NETO, 1997, p. 4), ressaltada em toda a obra.
A lição da pedra é inscrita em todos os poemas da obra, nos quais se pode evidenciar o trabalho de arte, de lapidação das palavras, porque João Cabral persegue o rigor criativo que visa à disciplinar as palavras-pedras. A imagem da pedra, tão difundida no meio literário pelo poema “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade - poeta modernista, por quem João Cabral de Melo Neto tinha um grande apreço - na obra cabralina ganha uma ressignificação: a pedra nos poemas de A educação pela pedra não está no meio do caminho, ela é o caminho da escrita. Caminho no qual a metapoesia se faz presente, caminho que o poeta pernambucano, concomitantemente, percorre e ensina como percorrer.
E neste caminho, o trabalho de arte se dá pelo processo de seleção das pedras, como se faz ao “Catar feijão”:
A abordagem do processo de seleção tanto do feijão quanto das palavras na construção do poema supracitado, reflete um dos artifícios do fazer artístico que ganha relevância na escrita de João Cabral, o de se retirar os excessos. Entretanto, o poeta chama a atenção para que não se retire aquilo que garante vida ao poema: a pedra-tecido.
Desde a antiguidade clássica, o uso do termo “tecer” carrega, de certa forma, a função de ordenação. O trabalho do tecelão é arranjar as linhas de modo que elas formem o tecido. Na cultura clássica, destaca-se o “Mito de Aracne”, uma exímia tecelã que, ao se gabar do seu talento e ser arrogante com a deusa Atena, sofreu retaliações e decidiu cometer suicídio, foi quando a filha de Zeus interferiu, e transformou-lhe em uma aranha.
Outra conhecida história de tecelã é a de Penélope, rainha de Ítaca, e esposa de Odisseu. Conforme o poema épico de Homero, “A odisséia”, enquanto esperava que seu esposo retornasse da Guerra de Tróia – relatada em outro poema épico de Homero, “Ilíada” - Penélope tecia uma manta, e dizia aos seus pretendentes – que não mais acreditavam que Odisseu pudesse retornar – que só se casaria com um deles quando terminasse a manta. Ao anoitecer, a rainha de Ítaca desfazia o que tinha tecido, um artifício para não terminar a manta e não ter de se casar com outro homem, uma vez que acreditava que seu esposo estivesse vivo e, portanto, retornaria à Ítaca.
Tanto a história de Aracne quanto a de Penélope são usadas, alegoricamente, para representar o fazer poético. A primeira, ao ser transformada em aranha, produzia fios tênues, inconsistentes, o que, de certo modo, a distancia do fazer poético de João Cabral de Melo Neto. O escritor pernambucano, para tecer sua escrita, a faz com um fio feito de pedra, que tal qual os nordestinos, resiste ao sol escaldante.
A tecedura de Penélope, por sua vez, está mais próxima da tecedura poética de João Cabral. O exercício da esposa de Odisseu de tecer e destecer a manta corresponde ao exercício da composição poética de escrever, retirar os excessos, e reescrever. Esse exercício de articulação dos fios está representado no poema “Tecendo a manhã”:
No poema acima, o cantar dos galos representa o unir dos fios-pedra na construção poética. Um galo sozinho não consegue anunciar a chegada do amanhecer, não tece a manhã, mas quando muitos galos se unem, o dia se ilumina. Quando os galos comunicam-se, seu canto ganha força. A comunicação entre os galos alude à comunicação que João Cabral pretende estabelecer entre suas poesias e os leitores.
Nesta perspectiva, uma palavra sozinha não constitui um poema, mas quando o escritor elenca várias palavras, tem-se a construção do poema. Entretanto, a convivência entre essas palavras no texto não é fluida, é truncada, porque elas são palavras-pedra.
“Tecendo a manhã” é fundamental para a definição da poética de João Cabral. A “tecedura” do poema obedece a um rigor estrutural que cumpre a função de associar, simultaneamente, o sentido coletivo de sua construção e a solidariedade das ações humanas.
Na perspectiva do “amanhecer”, e de sol, destaca-se o curioso “Num monumento à aspirina”, poema no qual o poeta da enxaqueca presta uma homenagem à aspirina, único medicamento que era capaz de aliviar a dor de cabeça que o acompanhava desde a adolescência. Quando faleceu, João Cabral já tinha ingerido mais de setenta mil comprimidos de aspirina.
João Cabral compara, nesse poema, o comprimido de aspirina ao sol, mas não ao sol que castiga o nordestino, e, sim ao sol como astro da claridade. A luz advinda da aspirina pode ser entendida como uma luz que, ao amenizar a enxaqueca, garante o equilíbrio, tão prezado pelo poeta, para que ele possa continuar a escrever. Em outras palavras, a aspirina garante-lhe a manutenção de sua lucidez poética.
O rigor estético de João Cabral de Melo Neto aliado à poesia social, fez com que o poeta, crítico e tradutor Haroldo de Campos alcunhasse-lhe de Geômetra engajado. Tal alcunha enfatiza “como ele reúne, a um só tempo, a precisão milimétrica do verso racionalizando-o com o interesse pela problemática nordestina, principalmente no que concerne aos problemas advindos da seca” (UBIRAJARA, 2008, p. 34).
No que tange aos aspectos formais da poesia cabralina em A educação pela pedra, o crítico Antonio Carlos Secchin postula que “nas seções ou partes minúsculas” (SECCHIN, 1999. P. 221), ou seja, nas subdivisões: Nordeste (a) e Não Nordeste (b), “os poemas têm 16 versos; nas maiúsculas, 24. A rima, nas duas seções iniciais, comparece toante, nos versos pares, tendo esquema bastante diversificado (mas nunca deixando de existir) nas partes finais” (SECCHIN, 1999, p. 221).
A temática social aparece em diversos poemas de A educação pela pedra. Dentre eles, destaca-se “Rios Sem Discurso” por ele, de certa forma, representar a junção das “duas águas” da poética cabralina: a metalingüística e a social. A primeira se dá pela associação que se pode fazer entre o rio e a palavra. A segunda vertente presentifica-se, dentre outros artifícios, pela apresentação da imagem da palavra em estado de dicionário, que, por estar sozinha, incomunicável, assemelha-se ao ser humano em estado de isolamento.
O poema “Rios sem Discurso”, desde o título, conduz o leitor para o âmbito da negação. Sabe-se que o discurso se caracteriza pelo fluir das palavras, que se assemelha ao fluir das águas do rio. Ao assumir, no título do poema, que os rios são sem discurso, sem curso, portanto, João Cabral instiga a nossa percepção para uma outra forma de curso do rio, na qual “a construção do percurso fluvial é também a reflexão sobre o discurso da poesia” (SECCHIN, 1999, p. 237).
A água, elemento presente não só em “Rios Sem Discurso”, mas em muitos dos poemas que compõem a obra A educação pela pedra, pode funcionar como elemento de articulação, de trânsito por uma escrita pedregosa, desse modo, remontando o que o filósofo grego, Tales de Mileto, já dizia sobre o elemento úmido perpassar todas as coisas vivas. No caso em questão, a água perpassa o labor estético da escrita cabralina. Escrita que é viva na medida em que busca a retratação de um viver severino.
Assim, em uma escrita coerente com a proposta da elaboração artística, João Cabral de Melo Neto, em A educação pela pedra, elege a escrita pétrea como base do processo de composição poética, mas para manter o equilíbrio – traço marcante da poética cabralina- insere a água nos seus poemas, elemento que conduz os discursos-pedras.
REFERÊNCIAS:
MELO NETO, João Cabral de. A Educação pela pedra. In: A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
MELO NETO, João Cabral de. A inspiração e o trabalho de arte. In: João Cabral de Melo Neto – obra completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
SECCHIN, Antônio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. Rio de Janeiro: Top Books, 1999.
UBIRAJARA, Rafael. A antilira de Cabral. In: MACIEL, Luiz Carlos Junqueira; XAVIER, Gilberto. Cadernos de Literatura Comentada: UFOP 2009. Belo Horizonte: Horta Grande LTDA, 2008.
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.”
(João Cabral de Melo Neto)
Neste tópico, quero fazer uma leitura da obra A educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto, considerando o trabalho de arte como principal operador do processo de composição dos poemas. Ou seja, pretendo fazer uma leitura desta obra à luz de uma teoria proposta não pelos especialistas na obra cabralina, mas pelo próprio escritor pernambucano. Para tanto, usarei como base o lúcido ensaio sobre a composição poética, intitulado A inspiração e o trabalho de arte, escrito por João Cabral de Melo Neto.
A educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto, foi publicado, pela primeira vez, em 1966, e desde então, tem suscitado muitos estudos. A obra tem 48 poemas e é divida em quatro partes, cujos títulos são: Nordeste (a), Não Nordeste (b), Nordeste (A) e Não Nordeste (B). O que é comum às quatro seções em que a obra se divide é a permanência do tema “Nordeste”, que aparece mesmo que seja precedido do prefixo “não”, “é como no movimento dialético em que uma tese só existe porque pressupõe a si a própria negação, ou seja, a existência do que é negado impõe-se, justamente, porque é ela a condição do negado”. (UBIRAJARA, 2008, p. 37). Esse exercício de negação, que pressupõe a dialética da tese e antitese, já evidencia, desde o título, um dos traços constitutivos da obra: a negação.
Cada uma das quatro seções do livro contém 12 poemas. No total, 24 poemas da obra abordam a realidade pernambucana e os outros 24, pertencentes às seções Não Nordeste (a) e Não Nordeste (B), versam sobre diversos assuntos, a saber: a arquitetura, o canto do galo, o erotismo, entre outros, todos permeados, direta ou indiretamente, pela temática da negação.
Negação que está impressa, irônica e jocosamente, na dedicatória do livro, quando o escritor dedica a obra ao seu primo, o poeta modernista Manuel Bandeira: “A Manuel Bandeira esta antilira para seus oitent’anos” (MELO NETO, 1997, p. 1). Nesta dedicatória, João Cabral faz uma espécie de paródia com a “Lira dos cinquent’anos”, de Manuel Bandeira. Com a substituição da palavra “lira” pela palavra “antilira”, o poeta deixa claro seu posicionamento antilírico - que é reforçado pelo fato de os 48 poemas que compõem A educação pela pedra não terem a presença do vocábulo “eu” - anunciando a fundamentação do seu estilo de escrita que, em detrimento do subjetivismo e da fluidez dos versos dos poemas líricos, privilegia a ausência de fluidez, a ausência de excessos e o verso de ritmo truncado. Evidencia, enfim, sua concisão estilística.
João Cabral de Melo Neto observou que muitos escritores pautam sua poética pela substituição da “preocupação de se comunicar pela preocupação de exprimir-se” (MELO NETO, 1994, p. 724), o que faz com que eles adotem uma escrita que seja impulsionada pelo inefável, pela teoria da inspiração, que “será definida por uns como uma presença sobrenatural” (MELO NETO, 1994, p. 728). As poesias advindas do ideal de inspiração são escritas “em linguagem corrente, não por amor à linguagem corrente, mas como um resultado de sua pouca elaboração” (MELO NETO, 1994, p. 729).
João Cabral, por outro lado, acreditava que o ensimesmamento do poeta que buscava, prioritariamente, em sua escrita, se expressar, era prejudicial ao leitor, que não teria como compartilhar do insight que gerara a composição do poema e, por conseguinte, não conseguiria estabelecer com a obra uma comunicação.
Para não incorrer na incomunicabilidade, João Cabral de Melo Neto desenvolveu sua poética pautada pelo predomínio do trabalho de arte,
Melo Neto disse:que pode valer a atividade material e quase de joalheria de construir com palavras pequenos objetos para adorno das inteligências sutis e pode significar a criação absoluta, em que as exigências e as vicissitudes do trabalho são o único criador da obra de arte.
A partir disso, a escrita cabralina visa à construção de uma linguagem-pedra, uma linguagem que prima pela expressão do poema, não do poeta, por meio da qual se busca a simetria entre a estrutura da linguagem e a da realidade representada, como se pode evidenciar no poema que dá título à obra, “A educação pela pedra”:
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal.
(pela dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para que soletrá-la.
*
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra; lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal.
(pela dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para que soletrá-la.
*
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra; lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
No poema “A educação pela pedra”, tem-se a premissa que guiará a composição da obra homônima, a da resistência ao fluir da escrita, ou seja, a adoção de uma escrita que seja trabalhada de modo a ter a consistência e resistência de uma pedra. Uma escrita próxima da realidade do Nordeste, da realidade da “árvore pedrenta (o sertanejo), incapaz de não se expressar em pedra” (MELO NETO, 1997, p. 4), ressaltada em toda a obra.
UBIRAJARA disse:Assim, nota-se que a lição da pedra é a do silêncio, da dureza, da concretude, enfim, é a antilição, que aniquila o pressuposto dialógico de qualquer ensinamento. O nordestino não é capaz de aprender da pedra porque ele próprio é seu tutor e traz em essência tal conhecimento, como indicam os dois últimos versos do poema.
A lição da pedra é inscrita em todos os poemas da obra, nos quais se pode evidenciar o trabalho de arte, de lapidação das palavras, porque João Cabral persegue o rigor criativo que visa à disciplinar as palavras-pedras. A imagem da pedra, tão difundida no meio literário pelo poema “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade - poeta modernista, por quem João Cabral de Melo Neto tinha um grande apreço - na obra cabralina ganha uma ressignificação: a pedra nos poemas de A educação pela pedra não está no meio do caminho, ela é o caminho da escrita. Caminho no qual a metapoesia se faz presente, caminho que o poeta pernambucano, concomitantemente, percorre e ensina como percorrer.
E neste caminho, o trabalho de arte se dá pelo processo de seleção das pedras, como se faz ao “Catar feijão”:
Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve o oco, palha e eco.
2
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve o oco, palha e eco.
2
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
A abordagem do processo de seleção tanto do feijão quanto das palavras na construção do poema supracitado, reflete um dos artifícios do fazer artístico que ganha relevância na escrita de João Cabral, o de se retirar os excessos. Entretanto, o poeta chama a atenção para que não se retire aquilo que garante vida ao poema: a pedra-tecido.
Desde a antiguidade clássica, o uso do termo “tecer” carrega, de certa forma, a função de ordenação. O trabalho do tecelão é arranjar as linhas de modo que elas formem o tecido. Na cultura clássica, destaca-se o “Mito de Aracne”, uma exímia tecelã que, ao se gabar do seu talento e ser arrogante com a deusa Atena, sofreu retaliações e decidiu cometer suicídio, foi quando a filha de Zeus interferiu, e transformou-lhe em uma aranha.
Outra conhecida história de tecelã é a de Penélope, rainha de Ítaca, e esposa de Odisseu. Conforme o poema épico de Homero, “A odisséia”, enquanto esperava que seu esposo retornasse da Guerra de Tróia – relatada em outro poema épico de Homero, “Ilíada” - Penélope tecia uma manta, e dizia aos seus pretendentes – que não mais acreditavam que Odisseu pudesse retornar – que só se casaria com um deles quando terminasse a manta. Ao anoitecer, a rainha de Ítaca desfazia o que tinha tecido, um artifício para não terminar a manta e não ter de se casar com outro homem, uma vez que acreditava que seu esposo estivesse vivo e, portanto, retornaria à Ítaca.
Tanto a história de Aracne quanto a de Penélope são usadas, alegoricamente, para representar o fazer poético. A primeira, ao ser transformada em aranha, produzia fios tênues, inconsistentes, o que, de certo modo, a distancia do fazer poético de João Cabral de Melo Neto. O escritor pernambucano, para tecer sua escrita, a faz com um fio feito de pedra, que tal qual os nordestinos, resiste ao sol escaldante.
A tecedura de Penélope, por sua vez, está mais próxima da tecedura poética de João Cabral. O exercício da esposa de Odisseu de tecer e destecer a manta corresponde ao exercício da composição poética de escrever, retirar os excessos, e reescrever. Esse exercício de articulação dos fios está representado no poema “Tecendo a manhã”:
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
No poema acima, o cantar dos galos representa o unir dos fios-pedra na construção poética. Um galo sozinho não consegue anunciar a chegada do amanhecer, não tece a manhã, mas quando muitos galos se unem, o dia se ilumina. Quando os galos comunicam-se, seu canto ganha força. A comunicação entre os galos alude à comunicação que João Cabral pretende estabelecer entre suas poesias e os leitores.
Nesta perspectiva, uma palavra sozinha não constitui um poema, mas quando o escritor elenca várias palavras, tem-se a construção do poema. Entretanto, a convivência entre essas palavras no texto não é fluida, é truncada, porque elas são palavras-pedra.
“Tecendo a manhã” é fundamental para a definição da poética de João Cabral. A “tecedura” do poema obedece a um rigor estrutural que cumpre a função de associar, simultaneamente, o sentido coletivo de sua construção e a solidariedade das ações humanas.
Na perspectiva do “amanhecer”, e de sol, destaca-se o curioso “Num monumento à aspirina”, poema no qual o poeta da enxaqueca presta uma homenagem à aspirina, único medicamento que era capaz de aliviar a dor de cabeça que o acompanhava desde a adolescência. Quando faleceu, João Cabral já tinha ingerido mais de setenta mil comprimidos de aspirina.
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
*
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
*
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
João Cabral compara, nesse poema, o comprimido de aspirina ao sol, mas não ao sol que castiga o nordestino, e, sim ao sol como astro da claridade. A luz advinda da aspirina pode ser entendida como uma luz que, ao amenizar a enxaqueca, garante o equilíbrio, tão prezado pelo poeta, para que ele possa continuar a escrever. Em outras palavras, a aspirina garante-lhe a manutenção de sua lucidez poética.
O rigor estético de João Cabral de Melo Neto aliado à poesia social, fez com que o poeta, crítico e tradutor Haroldo de Campos alcunhasse-lhe de Geômetra engajado. Tal alcunha enfatiza “como ele reúne, a um só tempo, a precisão milimétrica do verso racionalizando-o com o interesse pela problemática nordestina, principalmente no que concerne aos problemas advindos da seca” (UBIRAJARA, 2008, p. 34).
No que tange aos aspectos formais da poesia cabralina em A educação pela pedra, o crítico Antonio Carlos Secchin postula que “nas seções ou partes minúsculas” (SECCHIN, 1999. P. 221), ou seja, nas subdivisões: Nordeste (a) e Não Nordeste (b), “os poemas têm 16 versos; nas maiúsculas, 24. A rima, nas duas seções iniciais, comparece toante, nos versos pares, tendo esquema bastante diversificado (mas nunca deixando de existir) nas partes finais” (SECCHIN, 1999, p. 221).
A temática social aparece em diversos poemas de A educação pela pedra. Dentre eles, destaca-se “Rios Sem Discurso” por ele, de certa forma, representar a junção das “duas águas” da poética cabralina: a metalingüística e a social. A primeira se dá pela associação que se pode fazer entre o rio e a palavra. A segunda vertente presentifica-se, dentre outros artifícios, pela apresentação da imagem da palavra em estado de dicionário, que, por estar sozinha, incomunicável, assemelha-se ao ser humano em estado de isolamento.
Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água quebra-se em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
*
O discurso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase a frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a sede ele combate.
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água quebra-se em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
*
O discurso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase a frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a sede ele combate.
O poema “Rios sem Discurso”, desde o título, conduz o leitor para o âmbito da negação. Sabe-se que o discurso se caracteriza pelo fluir das palavras, que se assemelha ao fluir das águas do rio. Ao assumir, no título do poema, que os rios são sem discurso, sem curso, portanto, João Cabral instiga a nossa percepção para uma outra forma de curso do rio, na qual “a construção do percurso fluvial é também a reflexão sobre o discurso da poesia” (SECCHIN, 1999, p. 237).
A água, elemento presente não só em “Rios Sem Discurso”, mas em muitos dos poemas que compõem a obra A educação pela pedra, pode funcionar como elemento de articulação, de trânsito por uma escrita pedregosa, desse modo, remontando o que o filósofo grego, Tales de Mileto, já dizia sobre o elemento úmido perpassar todas as coisas vivas. No caso em questão, a água perpassa o labor estético da escrita cabralina. Escrita que é viva na medida em que busca a retratação de um viver severino.
Assim, em uma escrita coerente com a proposta da elaboração artística, João Cabral de Melo Neto, em A educação pela pedra, elege a escrita pétrea como base do processo de composição poética, mas para manter o equilíbrio – traço marcante da poética cabralina- insere a água nos seus poemas, elemento que conduz os discursos-pedras.
REFERÊNCIAS:
MELO NETO, João Cabral de. A Educação pela pedra. In: A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
MELO NETO, João Cabral de. A inspiração e o trabalho de arte. In: João Cabral de Melo Neto – obra completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
SECCHIN, Antônio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. Rio de Janeiro: Top Books, 1999.
UBIRAJARA, Rafael. A antilira de Cabral. In: MACIEL, Luiz Carlos Junqueira; XAVIER, Gilberto. Cadernos de Literatura Comentada: UFOP 2009. Belo Horizonte: Horta Grande LTDA, 2008.
Última edição por um moderador: