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Autor da Semana Hilda Hilst

Éomer

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HILDA HILST- (1930-2004)


"Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)
Aflição de ser água em meio a terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra."

Hilda Hilst


BIOGRAFIA

Hilda Hilst nasceu em 21 de abril de 1930, na cidade de Jaú, interior do Estado de São Paulo, filha única do fazendeiro, jornalista, poeta e ensaísta Apolônio de Almeida Prado Hilst e de Bedecilda Vaz Cardoso. Com a separação de seus pais muda-se, com a mãe, para a cidade de Santos (SP). Seu pai, que sofria de esquizofrenia, foi internado num sanatório em Campinas (SP), tendo nessa época 35 anos de idade. Até sua morte passou longos períodos em sanatórios para doentes mentais.

Foi para o colégio interno, Santa Marcelina, na cidade de São Paulo, em 1937, onde estudou por oito anos. No ano de 1945 matricula-se no curso clássico da Escola Mackenzie, na mesma cidade.

Em 1946, pela primeira vez, visitou o pai em sua fazenda em sua cidade natal, Jaú. Em apenas três dias, no pouco tempo que passou com ele, perturbou-se com sua loucura. Em "Carta ao Pai" diz: "Só três noites de amor, só três noites de amor", implorava o pai, sim, o pai, ele nunca fizera uma coisa como essa, sim, era Jaú, interior de São Paulo, um dia qualquer de 1946, sim, a filha deslumbrante, tremendo em seus 16 anos, sim, o pai a confundia com a mãe, a mão dele fechada sobre a dela, sim, o pai a confundia com a mãe, a confundia, sim?...

Em 1948 inicia seus estudos de Direito na Faculdade do Largo do São Francisco (conclui o curso em 1952, nunca tendo exercido a profissão). A partir de então levaria uma vida boêmia que se prolongou até 1963. Moça de rara beleza, Hilda comportava-se de maneira muito avançada, escandalizando a alta sociedade paulista. Despertou paixões em empresários, poetas; inclusive Vinicius de Morais, que teria pedido Hilda em casamento (proposta que foi recusada) e artistas em geral. O próprio Drummond de Andrade, que dedicou à Hilda um poema, a teria cortejado:

Abro a folha da manhã
Por entre espécies grã-finas
Emerge de musselinas
Hilda, estrela Aldebarã.

Tanto vestido enfeitado
Cobre e recobre de vez
Sua peclara nudez
Me sinto mui perturbado.

Hilda girando boates
Hilda fazendo chacrinha
Hilda dos outros, não minha
Coração que tanto bates.

Mas chega o Natal
e chama à ordem Hilda
Não vês que nesses teus giroflês
Esqueces quem tanto te ama?

Então Hilda, que é sab(ilda)
Manda sua arma secreta:
um beijo de Morse ao poeta.
Mas não me tapeias, Hilda.

Esclareçamos o assunto:
Nada de beijo postal
No Distrito Federal
O beijo é na boca e junto.

Em 1949 é escolhida para saudar, entre os alunos de Direito, a escritora Lygia Fagundes Telles, por ocasião do lançamento de seu livro de contos "O Cacto Vermelho".

Hilda lança, nos dois anos seguintes, seus primeiros livros: "Presságio" (1950), e "Balada de Alzira" (1951). Em 1955 publica "Balada do Festival".

No ano de 1957 viaja pela Europa por sete meses (junho a dezembro). Namora com o ator americano Dean Martin e, fazendo-se passar por jornalista, assedia, sem sucesso, Marlon Brando, outro galã de Hollywood.

Hilda Hilst: Eu queria muito conhecer o Marlon Brando, achava-o lindo, e então me tornei namoradinha do Dean Martin só pra ficar perto do Marlon. Mas eu não conseguia essa aproximação de jeito nenhum. Me vi obrigada a aguentar o Dean bêbado vários dias e, como ele não me apresentava o Marlon, resolvi ir ao hotel onde ele estava, dei uma linda gorjeta ao porteiro e perguntei o número do quarto dele. Cheguei lá, bati na porta, esperei uns dez minutos. Marlon Brando apareceu com um extraordinário robe de seda, acompanhado do ator francês Christian Marquand, que, anos depois, revelou ser seu amante. Eu estava acompanhada de uma amiga, a Marina de Vincenzi, e meio de pileque. Disse-lhe que queria fazer uma entrevista. Mas eu só olhava para os pés dele e não sabia o que dizer. Aí ele falou: “Só porque você é bonita acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?” Ele achou graça, foi educadíssimo, mas eu não consegui entrar no quarto e dormir com ele. Fiquei decepcionadíssima. Naquela noite, novamente, ele tinha escolhido o Marquand...

Em 1959 publica o livro de poesia "Roteiro do silêncio" e "Trovas de muito amor para um amado senhor” (reeditado em 1961, por Massao Ohno). José Antônio de Almeida Prado, primo da escritora, inspira-se em poemas desse último livro e compõe a "Canção para soprano e piano". Em outras oportunidades voltou a basear-se em textos de Hilda para compor alguns de seus trabalhos mais significativos. Os compositores Adoniran Barbosa ("Quando te achei") e Gilberto Mendes ("Trovas"), entre outros, também se inspiraram em textos da autora.

"Ode fragmentária" é lançado em 1961. Em 1962 é agraciada com o Prêmio Pen Club de São Paulo pelo livro "Sete cantos do poeta para o anjo". Passa a morar na Fazenda São José, a 11 quilômetros de Campinas (SP), de propriedade de sua mãe. Abre mão da intensa vida de convívio social para se dedicar exclusivamente à literatura. Tal mudança foi influenciada pela leitura de "Carta a El Greco ", do escritor grego [/B]Nikos Kazantzakis. Entre outras teses, defende no escritor a necessidade do isolamento do mundo para tornar possível o conhecimento do ser humano. Em 1966 muda-se para a Casa do Sol, construída na fazenda, onde passa a viver com o escultor Dante Casarini. Neste mesmo ano morre seu pai.

Em 1967 redige "A possessa" e "O rato no muro", iniciando uma série de oito peças teatrais que escreveria até 1969. Lança "Poesia" (1959 / 1967).

Em 1968, por imposição da mãe, internada no mesmo sanatório em Campinas onde estivera seu pai, casa-se com Dante Casarini. Escreve as peças "O visitante", "Auto da barca de Camiri", "O novo sistema" e "As aves da noite". "O visitante" e "O rato no muro" são encenadas no Teatro Anchieta, em São Paulo, para exame dos alunos da Escola de Arte Dramática, sob direção de Terezinha Aguiar.

Em 1969 escreve "O verdugo" e "A morte do patriarca". A primeira recebe o Prêmio Anchieta. A montagem de "O rato no muro", sob a direção de Terezinha Aguiar, é apresentada no Festival de Teatro de Manizales, na Colômbia.

Em 1970 é lançada sua primeira obra em prosa: "Fluxo-Floema". A peça "O novo sistema" é encenada em São Paulo, no Teatro Veredas, pelos Grupo Experimental Mauá (Gema), sob a direção de Terezinha Aguiar. Baseando-se nos experimentos do pesquisador sueco Friedrich Juergenson relatados no livro "Telefone para o além", Hilda iria se dedicar, ao longo desta década que se iniciava, à gravação, através de ondas radiofônicas, de vozes que, assegurava, seriam de pessoas mortas. No mesmo período anunciou a visita de discos voadores à sua fazenda. Morre sua mãe, Bedecilda.

Em 1972 o Grupo de Teatro Núcleo, da Universidade Estadual de Londrina, sobre a direção de Nitis Jacon A. Moreira, encena a peça "O verdugo". Essa mesma peça é encenada no Teatro Oficina, em São Paulo, sob a direção de Rofran Fernandes, no ano seguinte, época em que foi lançado seu novo livro "Qadós".

Em 1974 é lançado "Júbilo, memória, noviciado da paixão". Dele faz parte a bela "Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio". Um dos mais belos poemas da autora.

I

É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.

II

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.


III

A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência

E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.

A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta

Por que recusas amor e permanência?

VI

Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães

E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressaga

Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:

Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta

Quando tu, Dionísio, não estás.

VIII

Se Clódia desprezou Catulo
E teve Rufus, Quintius, Gelius
Inacius e Ravidus

Tu podes muito bem, Dionísio,
Ter mais cinco mulheres
E desprezar Ariana
Que é centelha e âncora

E refrescar tuas noites
Com teus amores breves.
Ariana e Catulo, luxuriantes

Pretendem eternidade, e a coisa breve
A alma dos poetas não inflama.
Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta

Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra.


IX

“Conta-se que havia na China uma mulher
belíssima que enlouquecia de amor todos
os homens. Mas certa vez caiu nas
profundezas de um lago e assustou os peixes.”



Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo

Pensando

Que se a mim não deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.

E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
Preexistida e exata

Apenas tu, Dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas tuas águas.


X

Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, Dionísio, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.

Em 1977 é publicado o livro "Ficções", que recebe o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), como "Melhor Livro do Ano". Em 1980 são publicados os livros "Poesia (1959/1979)", "Da morte. Odes mínimas" e "Tu não te moves de ti". Recebe da APCA o prêmio pelo conjunto da obra. Estreia a montagem de "As aves da noite" no Teatro Ruth Escobar, com direção de Antônio do Valle. Divorcia-se de Dante Casarini, mas o ex-marido continua morando na Casa do Sol.

Em 1982 passa a fazer parte do Programa do Artista Residente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Lança "A obscena senhora D". No ano seguinte publica "Cantares de perda e predileção", que recebe os prêmios Jabuti (da Câmara Brasileira do Livro) e Cassiano Ricardo (do Clube de Poesia de São Paulo).

Em 1984 saem os "Poemas malditos, gozosos e devotos". Em 1986, publica os livros "Sobre a tua grande face" e "Com meus olhos de cão e outras novelas". 1989 marca o lançamento de "Amavisse".

Em 1990 é lançado "O caderno rosa de Lori Lamby", livro que consagra a nova fase iniciada em "A obscena senhora D. No mesmo ano lança "Contos d'escárnio/Textos grotescos e Alcoólicos”. O quarto livro dessa fase, "Cartas de um sedutor", é lançado em 1991. Estreia, em São Paulo, a peça "Maria matamoros", adaptação do texto "Matamoros" que se encontra no livro "Tu não te moves de ti".

Em 1992 lança a antologia poética "Do desejo" e "Bufólicas", na verdade uma brincadeira quase infantil da autora, por muitos visto como uma paródia. Passa a colaborar com o Correio Popular, jornal diário de Campinas (SP), escrevendo crônicas semanais; o trabalho se estenderia até 1995.

Em 1994, "Contos d'escárnio & Textos Grotescos" é traduzido para o francês.

No ano seguinte sai o volume "Cantares do sem nome e de partidas". O Centro de Documentação Alexandre Eulálio, da UNICAMP, adquire seu arquivo pessoal. A escritora sofre isquemia cerebral.

Em 1997 , lança "Estar sendo. Ter sido". Seus poemas são lidos em Quebec, Canadá, juntamente com textos de Safo, Gabriela Mistral e Marguerite Yourcenar, entre outras autoras, no recital Le féminin du feu, durante as comemorações do Dia Internacional da Mulher.

A edição bilíngue (português-francês) do livro "Da morte. Odes mínimas" é publicada em 1998. Publica também "Cascos & Carícias: crônicas reunidas (1992-1995)", volume de textos que saíram no jornal "Correio Popular". Volta a se dedicar a questões sobrenaturais: afirma acreditar no contato dos mortos com a Terra através de mensagens enviadas via fax. Reafirma o desejo de construir em suas terras um centro de estudos da imortalidade.

Em 1999, lança a antologia poética "Do amor". Sob a coordenação do escritor Yuri V. Santos entra no ar seu site oficial:


"O caderno rosa de Lori Lamby" é levado ao palco sob a direção de Bete Coelho e tendo no papel principal a atriz Iara Jamra.

Em 2000, lança "Teatro reunido" (volume 1)". Estreia, em Brasília, a adaptação teatral de "Cartas de um sedutor". Estreia, na Casa de Cultura Laura Alvin, no Rio de Janeiro, o espetáculo "HH informe-se", reunião e adaptação teatral de textos da autora. Inauguração, em dezembro, da "Exposição Hilda Hilst - 70 anos", evento criado pela arquiteta Gisela Magalhães no SESC Pompéia, em São Paulo.

Em 2001, estreia, no Rio de Janeiro, a adaptação teatral de "Cartas de um sedutor". A Editora Globo passa a ser responsável por toda sua obra publicada.

Agraciada, em 2002, com o Prêmio Moinho Santista - 47ª edição, categoria poesia.

Agraciada, em 2002, pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), na área de literatura, com o Grande Prêmio da Crítica pela reedição de suas "Obras completas".

Hilda Hilst faleceu no dia 04 de fevereiro de 2004, na cidade de Campinas (SP) .

Não me procures ali / Onde os vivos visitam / Os chamados mortos. / Procura-me / Dentro das grandes águas / Nas praças / Num fogo coração / Entre cavalos, cães, / Nos arrozais, no arroio / Ou junto aos pássaros / Ou espelhada / Num outro alguém, / Subindo um duro caminho / Pedra, semente, sal / Passos da vida.Procura-me ali / Viva.

Obras

Poesia:

Presságio, 1950.
Balada de Alzira, 1951.
Balada do festival, 1955.
Roteiro do Silêncio, 1959.
Trovas de muito amor para um amado senhor, 1961.
Ode fragmentária, 1961.
Sete cantos do poeta para o anjo, 1962.
Poesia (1959/1967)l, 1967.
Júbilo, memória, noviciado da paixão, 1974.
Poesia, 1980.
Da Morte. Odes mínimas, 1980.
Cantares de perda e predileção, 1980.
Poemas malditos, gozosos e devotos, 1984.
Sobre a tua grande face, 1986.
Amavisse, 1989.
Alcoólicas, 1990.
Do desejo, 1992
Bufólicas, 1992.
Cantares do sem nome e de partida, 1995.
Do amor, 1999.

Ficção:

Fluxo-Floema, 1973.
Ficções, 1977.
Tu não te moves de ti, 1980.
A obscena senhora D, 1982.
Com meus olhos de cão e outras novelas, 1986.
O caderno rosa de Lori Lamby, 1990.
Contos d'escárnio/Textos grotescos, 1990.
Cartas de um sedutor, 1991.
Rútilo nada,1993.
Estar sendo. Ter sido, 1997.
Cascos e carícias: crônicas reunidas (1992 / 1995), 2000.
Do desejo, 1992.
Do amor, 1999.

Teatro :

A Possessa - 1967.
O rato no muro - 1967.
O visitante - 1968.
Auto da barca de Camiri - 1968.
O novo sistema - 1968.
As aves da noite - 1968.
O verdugo - 1969
A morte do patriarca - 1969.
Teatro reunido (volume I) - 2000. (com exceção da peça "O verdugo", todas as obras são inéditas).



CARACTERÍSTICAS

A temática dos textos de Hilda Hilst foi, durante muito tempo, o universo imponderável das ações humanas, a inquietude do ser, o sexo, a morte, a finitude, a reflexão e a angústia. Não podemos nos esquecer do “masculino e do “feminino” tão bem caracterizados em Ariana e Dionísio e do confronto entre a “carne” e o “espírito”:

E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?

Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas

Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia

Nem omiti que a alma está além, buscando

Aquele Outro
. E te repito: por que haverias

De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e de acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

Mas o tratamento rigoroso da matéria literária tornou muito densa essa sua literatura - que ao longo de mais de trinta anos de intensa atividade, ficou restrita a uns poucos eleitos. Sua poesia, repleta de indagações metafísicas, acabou conduzindo-a a mergulhos no universo das leituras da física e da filosofia, que toma como apoio em sua busca de respostas sobre a imortalidade da alma.

Ao ser questionada, em entrevista concedida ao “Cadernos de Literatura Brasileira”, sobre o que sua obra, no fundo, procurava ela responde, sucinta e definitiva: “Deus”:

Eu gostava de ficar na capela do colégio. Eu queria me aproximar da ideia de um Deus que tenha sido o executor de tudo, desse mundo que é tão notavelmente paradoxal e cruel. E essa mania eu não tirei nunca da minha vida: quer dizer, de existir uma potencialidade qualquer que você nomeia de algum nome e eu o nomeio Deus de vários nomes: Cara Escura, Sorvete Almiscarado, Grande Obscuro, O Sem Nome, o Mudo Sempre, o Tríplice Acrobata. É uma vontade de estabelecer um intercâmbio com essa força muito grande, porque eu não acredito que as coisas acabem assim.

“Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu
Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.”


A Trilogia Obscena de Hilda Hilst

O Caderno Rosa de Lori Lamby

Com a publicação de “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, (1990), primeiro livro da chamada “Trilogia Obscena”, a escritora anuncia o "adeus à literatura séria". Justifica essa medida radical como uma tentativa de vender mais e assim conquistar o reconhecimento do público. A obra provoca "espanto e indignação" em seus amigos e na crítica, por tratar do tema pedofilia. O editor Caio Graco Prado se recusa a publicá-la e o artista plástico Wesley Duke Lee a considera "um lixo".

O livro conta a história de Lori Lamby, garota de oito anos que se prostitui com o apoio de seus pais e que narra, com sua linguagem infantil, suas aventuras sexuais em um caderno. É claro que um livro desses, na época em que impera o “politicamente correto”, só pode causar revolta. Como se um escritor se tornasse pedófilo por abordar a pedofilia ou racista por ter em sua obra um personagem que tenha preconceito racial. Mas em O Caderno Rosa... o buraco é mais embaixo, com o perdão do trocadilho. Além de fazer sexo, Lori Lamby gosta do que faz e gosta do dinheiro que isso lhe traz, principalmente: Ele perguntou me lambendo se eu gostava do dinheiro que ele ia me dar. Eu disse que gostava muito porque sem dinheiro a gente fica triste porque não pode comprar coisas lindas que a gente vê na televisão.

O pai de Lori é um ótimo escritor, mas sua obra não agrada ao público. Então Lalau, seu editor, pede que comece a escrever “um pouco mais de bandalheira” para que possa vender mais. Ou seja, mais do que uma crítica à prostituição infantil (aliás isso passa longe de ser o tema principal da obra) o livro é uma crítica à a prostituição da literatura em si, onde a venda de livros se tornou mais importante que o próprio livro em si. Livro como um produto descartável em uma sociedade de consumo, à qual os escritores muitas vezes se submetem.

Um trecho do livro:

Papi não está mais triste não, ele está é diferente, acho que é porque ele está escrevendo a tal bananeira, quero dizer a bandalheira que o Lalau quer. Eu tenho que continuar a minha história e vou pedir depois pro tio Lalau se ele não quer pôr o meu caderno na máquina dele, pra ficar livro mesmo. Eu contei pro papi que gosto muito de ser lambida, mas parece que ele nem me escutou, e se eu pudesse eu ficava muito tempo na minha caminha com as pernas abertas, mas parece que não pode porque faz mal, e porque tem isso da hora. É só uma hora, quando é mais, a gente ganha mais dinheiro, mas não é todo mundo que tem tanto dinheiro assim pra lamber. O moço falou que quando ele voltar vai trazer umas meias furadinhas pretas pra eu botar. Eu pedi pra ele trazer meias cor-de-rosa porque eu gosto muito de cor-de-rosa e se ele trazer eu disse que vou lamber o piupiu dele bastante tempo, mesmo sem chocolate. Ele disse que eu era uma putinha muito linda. Ele quis também que eu voltasse pra cama outra vez, mas já tinha passado uma hora e tem uma campainha quando a gente fica mais de uma hora no quarto. Aí ele só pediu pra dar um beijo no meu buraquinho lá atrás, eu deixei, ele pôs a língua no meu buraquinho e eu não queria que ele tirasse a língua, mas a campainha tocou de novo. E depois quando ele saiu, eu ouvi uma briga, mas ele disse que ia pagar de um jeito bom, ele usou uma palavra que eu depois perguntei pra mamãe e mami disse que essa palavra que eu perguntei é regiamente. Então regiamente, ele disse. Eu ouvi mami dizer que esse verão bem que a gente podia ir pra praia, mas eu fico triste porque não vamos ter as pessoas pra eu chupar como sorvete e me lamber como gato se lambe. Por que será que ninguém descobriu pra todo mundo ser lambido e todo mundo ia ficar com dinheiro pra comprar tudo o que eu vejo, e todos também iam comprar tudo, porque todo mundo só pensa em comprar tudo. Os meus amiguinhos lá da escola falam sempre dos papi e das mami deles que foram fazer compras, e eu então acho que eles são lambidos todo dia. É mais gostoso ser lambido que lamber, aquele dia que eu lambi o piupiu de chocolate do homem foi gostoso mas acho que é porque tinha chocolate. Sem chocolate eu ainda não lambi.

Contos D’Escárnio/Textos Grotescos

Contos D’Escárnio conta a história de Crasso, que resolve se tornar escritor e narrar as suas aventuras sexuais. O livro também explora o tema do “escritor vendido ao sistema e sua literatura de cunho pornográfico”. Sexo é e sempre será um produto muito valorizado no mercado, com garantia certa de venda:

“Resolvi escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que leem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de fôrma que pensei, por que não posso escrever a minha?” (p. 14)

Mas, como falta talento a Crasso, sua narrativa tem o nível e a profundidade de relatos eróticos contados na seção Fórum de revistas pornô. Machista, com uma visão limitada do universo feminino (“O que eu podia fazer com as mulheres além de foder?”) suas narrativas têm todos os clichês pornográficos: membros avantajados, mulheres ninfomaníacas e submissas, multiorgásmicas e com secreção copiosa de fluídos vaginais. Há também um repúdio de qualquer tipo de sentimento que não seja o desejo sexual: “Será que ando sentindo amor? Meu Deus, isso vai me brochar para sempre”. (p. 87). Desnecessário é dizer que o livro de Crasso se torna um sucesso e ele um escritor famoso e prestigiado.

O que eu podia fazer com as mulheres além de foder? Quando eram cultas, simplesmente me enojavam. Não sei se alguns de vocês já foderam com mulher culta ou coisa que o valha. Olhares misteriosos, pequenas citações a cada instante, afagos desprezíveis de mãozinhas sabidas, intempestivos discursos sobre a transitoriedade dos prazeres, mas como adoram o dinheiro as cadelonas! Uma delas, trintona, Flora, advogada que tinha um rabo brancão e a pele lisa igual à baga de jaca, citava Lucrécio enquanto me afagava os culhões e encostava nas bochechas translúcidas a minha caceta: ó Crasso (até aí o texto é dela) e depois Lucrécio: "o homem que vê claro lança de si os negócios e procura antes de tudo compreender a natureza das coisas". A natureza da própria pomba ela compreendia muito bem. Queria umas três vezes por noite o meu pau rombudo lá dentro. E antes desse meu esforço queria também a minha pobre língua se adentrando frenética naquela caverna vermelhona e úmida. Empapava os lençóis. Era preciso enxugá-la com uma bela toalha felpuda antes de meter na dita cuja. Na hora do gozo ria.
isso não é normal Flora.
bobinho! Isso é vida, alegria, o amor é alegre, Crassinho.
Histérica e sabichona dava gritinhos e rápidos aulidos, e quando tudo acabava, sentava-se sóbria na beirada da cama...

Cartas de um Sedutor

Terceiro livro da trilogia obscena, “Cartas de um Sedutor” aborda temas como o incesto e homossexualismo. O personagem principal, Karl, é um homem rico, amoral e culto, que busca a explicação para sua incompreensão da vida através do sexo. Karl escreve e envia vinte cartas provocativas a Cordélia, sua casta irmã, tentando arrancar da mesma um suposto incesto que teria cometido com o pai:

...“Perdoa-me, Cordélia, mas a não ser tu, minha irmã e tão bela, não tive um nítido e premente desejo por mulher alguma. Mas sempre gosto de ser chupado. Então às vezes seduzo algumas de beiçolinha revirada. Mas o falo na rosa, nas mulheres, só in extremis.” ...Quanto as terríveis recordações que tens do papai, acho muito estranho. Terríveis por quê? Porque te sentes culpada de tê-lo desejado? Isso tudo me parece tão démodé e tão chato. Eu mesmo desejei. Aquele peito dourado, aquelas coxas douradas, aqueles olhos amarelo-dourado, ah,!!! já sei continuas chorando papai ... o sol. Não acredito, Cordélia, que aos 40 continues com esse arremedo de tara.

Os textos das cartas se misturam à vida de Stamatius, um poeta que encontra no lixo os manuscritos de Karl. Stamatius é um mendigo que perdeu tudo “porque tinha mania de ser escritor”. Stamatius é casado com Eulália e os dois fazem do desejo que sentem um pelo outro o único apoio em que se calca a sua relação. Com o desenrolar da obra acaba se percebendo que Karl e Stamatius são a mesma pessoa, com posturas distintas diante dos mesmos questionamentos.

Palomita, lembras-te que mergulhavas o meu pau na tua xícara de chocolate e em seguida me lambias o ganso? Ahhh! tua formosa língua! Evoco todos os ruídos, todos os tons da paisagem daquelas tardes... cigarras, os anus pretos (aves cuculiformes da família dos cuculídeos... meu Deus!) e os cheiros... o jasmim-manga, os limoeiros... e teus movimentos suaves, alongados, meus movimentos frenéticos... Ahhh! Marcel, se te lembras, sentiu todo um universo com as dele madeleines... Deve ter sugado aquela manjuba magnífica do dele motorista com madeleines e avós e chás e tudo...Ah, irmanita, as cortinas malvas, a jarra de prata, os crisântemos dourados, algumas pétalas sobre a mesa de mogno, tu diluída nos meus olhos semicerrados, teu hálito de chocolate e de... “solução fecundante” como diria aquele teu juiz. Ando me sentindo um escroto de um escritor e quando isso começa não acaba mais. O que me faz pensar que eu talvez os seja é toda aquela minha história-tara do dedão do pé do pai. Pulhices de escritor. Outro dia contei ao Tom a história do dedão do pai, como se fosse a história de outro cara, não a minha. Sabes o que me respondeu? “Se algum filho meu tivesse a tara de me chupar o dedão eu dormiria armado.” Ciao. Petite chegou. Apaixonou-se. Uma maçada. Continuo daqui a pouco...

Apesar de no final da vida ter escrito uma literatura de cunho mais erótico, o sexo nunca foi um tema por si só na obra de Hilda e sim apenas base para explorar mais uma das facetas da alma humana, tema esse de que ela soube se utilizar como ninguém. E apesar de ter feito literatura considerada “pornográfica”, tinha consciência de que não era certo ser marcada apenas por isso: “Não é verdade que as relações sexuais sejam uma fixação nos meus livros. Dos meus 36, apenas quatro podem ser classificados como obscenos”. Ela, em suas notas pessoais, questiona o próprio significado do que seria obscenidade:O que é OBSCENO? OBSCENO? Ninguém sabe até hoje o que é OBSCENO. OBSCENO para mim é a miséria, a Fome, a crueldade, a NOSSA época é OBSCENA.”


Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas.
Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei
Aquele que me fez poeta e que me prometeu
Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.​


FONTES

 
Última edição:
Ontem, deixei a aba aberta o dia inteiro, e não consegui fazer um mísero comentário neste EXCELENTE tópico. Eu idolatro a Hilda Hilst. Por tantos motivos que eu nem conseguiria enumerar. Eu gosto do fato de a literatura dela CHOCAR, entende? E não falo dos livros considerados pela crítica como obscenos. A escrita dela choca de qualquer maneira. Acho engraçado o fato de as pessoas se esquivarem de comentar a obra hilstiana. Elas se esquivam por causa da linguagem utilizada pela poeta. As pessoas ainda veem a mulher como "receptora" e o homem como o "provedor". Quando um homem fala de sexo em suas obras, é o máximo, quando uma mulher fala, ela deve ser ignorada. Admiro o fato de a Hilda ter sido quem foi NA ÉPOCA dela. Admiro qualquer mulher que não tenha vergonha de ser mulher. Que não tenha vergonha de falar sobre seus desejos, de vivê-los, consumá-los. Isso não é ser promíscua, é ser você mesma. Admiro, também, uma coisa que li, há tempos, em uma entrevista concedida pela Hilda. Ela falou algo como: "a minha obra traduz, à minha maneira, o anseio do homem e da mulher por Deus. O anseio por uma outra força. Traduz essa busca." A escrita é uma forma de transcendência. E é, na minha opinião, a mais eficaz terapia que existe.

Eu tenho verdadeira loucura por Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio, como vocês já devem saber. "Porque tu sabes que é de poesia, minha vida secreta..." é a minha descrição no profile do Meia Palavra. Não sei se vocês sabem, mas Ode foi musicada. Tem um CD, que é BELÍSSIMO, e vocês podem dar uma conferida. Vocês conseguem encontrar por aí (sacaram?).
 
Eu tenho verdadeira loucura por Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio, como vocês já devem saber. "Porque tu sabes que é de poesia, minha vida secreta..." é a minha descrição no profile do Meia Palavra. Não sei se vocês sabem, mas Ode foi musicada. Tem um CD, que é BELÍSSIMO, e vocês podem dar uma conferida. Vocês conseguem encontrar por aí (sacaram?).

Musicados pelo Zeca Baleiro. Perfeitos
 
Só li agora também. Vou procurar primeiro as obras antigas e terminar com os obscenos.

Mas fiquei mais interessado nessa busca filosófica dela, a procura do Deus dionisíaco que encerra em si todas as contradições, é o mesmo espírito de Schiller e do Nascimento da Tragédia de Nietzsche, a mesma metafísica de artista apresentada em poesia de esgotamento dos instintos, da vida que é esprimida ao máximo, sem moralismo ou racionalizações.

Amei as citações. Vou ler agora mesmo.
 
Musicados pelo Zeca Baleiro. Perfeitos
Isso, isso. Naquele BELÍSSIMO documentário, Palavra (En)cantada, (que eu acho que TODO MUNDO deveria assistir) o Zeca até conta, de forma descontraída, que quando ela o procurou, falou: "Eu quero ganhar dinheiro com a poesia, porque ela NUNCA ME DEU NADA, então, te chamei para musicar meus poemas". :rofl:
 
A vida pessoal e boêmia da Hilda merecia ser contada em livro. Não sei se já há alguma boa biografia dela. Mas achei essa história de invadir o quarto do Marlon Brando fingindo ser jornalista simplesmente genial. Era uma mulher tremendamente a frente do seu tempo. Não é a toa que era chamada de puta pelas amigas. No mais é daquelas escritoras que parece tocada pelo que alguns chamaram de "a chama santa da loucura". Não me admiro que houvesse se interessado interessasse por "cousas metafísicas" como diria o Machado de Assis.
 
Última edição:
Já que estou ressuscitando tópico, este aqui é um dos que eu acho que todo mundo deveria ler, porque Hilda Hilst > VIDA.
 
Deliciosamente imoral pelos poucos poemas em que dei uma olhada.

Vou procurar esses da fase mais esotérica dela, essa relação entre sexualidade e misticismo, ver se é tão interessante quanto parece.
 
Ressuscitando o tópico.

Esse soneto postado no começo é lindo, não? Os Sonetos que Não São podem não ser sabe-se lá o quê, mas que eles são uma coisa eles são: bonitões.

Pena que não dê pra se encontrar nenhum livro com a poesia da Hilst decentemente comprável... Alguém tem alguma sugestão?
 
Post duplo, é, eu sei, mas é que encontrei um link bem legal sobre a poesia da Hilda:

Poesia obscura / luminosa de Hilda Hilst, por Nelly Novaes Coelho. Relativo ao soneto que abre o post do Éomer,

É na essência camoniana do Amor Puro e Absoluto, que vai ser buscada a solução de vida e poesia plenas. Na sequência dos “Sonetos que não são” e na “Do Amor contente muito descontente”, de intencional conotação camoniana ou trovadoresca, se expressa a ambiguidade de reações da mulher que, ao amar, se liberta dos tabus castradores e, ao mesmo tempo, se sente frustrada pelo que deixou de ser, quando optou:

[a autora cita o soneto]

Em metáforas quase transparentes, aí fala a mulher dividida entre o desejo de ser a “esposa” (presença estável, refúgio, proteção, mãe-geradora-de-vida que prolonga o amado no tempo...) e o impulso apaixonado de ser a “outra” (a mobilidade da paixão, a Aventura existencial, a voragem do prazer, onde o eu como que explode em plenitude e por instantes o Momento se identifica com a Eternidade). Terra e água, os elementos primordiais da criação do mundo, são as metáforas que Hilda Hilst toma dos versos de Péricles Eugênio da Silva Ramos (um dos poetas mais representativos da Poesia-45 brasileira): “Aflição de ser terra / Em meio às águas”. Glosando-as, no soneto em questão, a poeta inverte os termos: sente-se “água em meio à terra”. Inversão significativa que, alguns anos depois, será desfeita, pois a poeta vai-se afirmar como “terra”.

Não sabia dessa glosa do Péricles. Mais pra frente ela explica mais claramente as metáforas água/terra:

Através dos símbolos “água” (princípio masculino, fecundador) e “terra” (elemento feminino a ser fecundado), denuncia-se, nessa poesia, a frustração do processo vital, em sua necessária continuidade, porque o amado se recusa à sua tarefa, “deslisando, sem tocar a margem”. Entretanto, a Mulher o espera, como “terra” que é, elemento humano/cósmico a ser fecundado para cumprir sua tarefa de continuadora do humano. Elemento fixo, durável refúgio e estímulo.

Bem legal isso, não?
 
O obsceno como motor da escrita em Hilda Hilst
12 de Março de 2018 às 19:18
Por Aline Leal



Hilda Hilst é um nome em ascensão no mercado literário. Sua obra completa, publicada desde 2001 na editora Globo, foi adquirida pela Companhia das Letras e conquistou uma visibilidade expressiva com o lançamento de
Da poesia (2016), insuflando o nome desta autora entre novos leitores e fomentando a paixão de seu fiel séquito. No primeiro semestre de 2018, a editora lança Da prosa, gênero em que Hilda estreou em 1970, com o livro Fluxo Floema.

Além disso, o anúncio da homenagem à autora na Feira Literária Internacional de Paraty de 2018 gerou uma grande comoção entre os interessados pela obra. Em um ano de eventos marcantes, como as eleições presidenciais e a Copa do Mundo, o peso e a presença desta autora parece ter sido uma decisão acertada da curadoria.

A indicação da curadora Joselia Aguiar confirma a aposta em nomes que, em vida, faziam parte daqueles que frequentavam o hall dos loucos, malditos, marginais. Antecedida por Lima Barreto, escritor negro oriundo de um regime escravocrata, estigmatizado pelo alcoolismo e por passagens em hospícios, segue Hilda Hilst, escritora que nunca se dobrou aos códigos e condutas reservados às mulheres de sua época. São autores que ensaiaram, à sua maneira, um movimento de transgressão, certa violência diante de determinada ordem vigente, violação das formas regulares de vida social, uma afronta ética e estética às nossas sensações, aos nossos sentimentos e pensamentos tão bem determinados.

Tratada frequentemente como maldita, escandalosa e extravagante, qual seria a recepção que este século XXI relegaria à Hilda Hilst? Certamente a sexualidade e outros temas tabus são tratados de forma mais aberta contemporaneamente, já que liberdades foram conquistadas em relação ao comportamento, à exposição, aos direitos do sexo, do corpo, ainda que outros interditos tenham sido levantados em consonância com reivindicações diversas. No entanto, Hilda Hilst fala de uma conduta literária que não pode deixar de ser “entranhadamente ética”, isso porque o motor de todo escritor gira no sentido de não pactuar com o que nos é imposto como mentira circundante: “O escritor é o que diz ‘Não’, ‘Não participo do engodo armado para ludibriar as pessoas’”, afirma em entrevista ao Estado de São Paulo, em 1980, fazendo, portanto, da linguagem e da sintaxe uma ferramenta política (contra a “polícia”).

Assim, é interessante observar a aposta no obsceno que atravessa grande parte da obra hilstiana. Ao jogar luz sobre o que está relegado às sombras, ao revelar o segredo que excede o valor moral – segredo do qual temos medo – o obsceno será um dispositivo de transgressão das convenções sociais que obliteram uma experiência integrada.

Na década de 1990, Hilda Hilst vendeu grande parte de seu acervo – manuscritos, anotações, cadernos, agendas – para o Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio, da Unicamp. Observa-se aí um dedicado trabalho de elaboração de seus temas e suas personagens, indicando que ela pensava sua obra durante um longo período, e pensava escrevendo. Nesse material, o “obsceno” como dispositivo de escrita é um tema de reflexão central. Em uma anotação, lemos: “O obsceno na escrita pode ser uma arma para acordar o outro que dorme profundamente. Uma cuspida também é uma arma-insulto. Você pode usar o obsceno com sarcasmo para por exemplo mostrar a falsidade das convenções”.

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Em outra ocorrência, em entrevista de 1989 para o Jornal do Brasil, Hilda Hilst aponta para aquilo que a mobiliza, apostando sempre no excesso como vetor que orienta sua obra, excesso para o qual sua obra tende: “Para mim a problemática importante é a morte, as relações humanas, as relações eróticas, as situações extremas. Eu não tenho nada a ver com essa coisa do dia-a-dia, ainda que ela possa ser terrível. Eu tenho a ver com as situações extremadas, o homem em convulsão.” Assim, Hilda Hilst sugere que a literatura está mais próxima do que é sujo, desprezado, abjeto, do que dos bons modos e bons costumes. Da experiência literária saímos com menos pontos de sustentação, menos certezas, dela voltaremos menores, mais frágeis e instáveis. Mas a quem poderá interessar este tipo de aniquilação? Talvez àqueles capazes de encontrar, nas fragilidades, suas maiores fortalezas.

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Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/c...-obsceno-como-motor-da-escrita-em-Hilda-Hilst
 
Li a poesia completa dela.

Ok, marcar aqui para fazer um post gigantesco.

Bom, eu comecei a ler a prosa, mas como não terminei, não vou dizer nada além de que é nítida a formação espiritual da Hilda. Espiritual, não necessariamente religiosa. Ela teve uma educação católica esmerada, o que explica o pendor ao misticismo e à literatura religiosa, a devoção, o espírito de abnegação e de enxergar na sexualidade um elemento ambíguo, tanto de pecado e transgressão quanto de libertação, algo característico de certas fases da mística católica, como as visões de Santa Catarina de Sena, Santa Teresa d'Ávila. Mas o que me impressionou mesmo foi Kadosh, que revela mais que conhecimento de hebraico: conhecimento de Kabbalah.

Ok, preciso abrir um graaaaaande parêntese para falar de Kadosh.

A palavra Kadosh é hebraica (קדוש), significando algo santo, puro, limpo, mas o sentido de pureza aqui, no judaísmo, se associa não uma pureza no sentido moral, mas ritual, é a pureza de algo, uma pessoa, objeto, coisa, destinado a algum ato que se relaciona ao culto divino, ao culto do Eterno. Santo é aquilo que é purificado das condições profanas, não é mais ou menos moral que o profano, é uma condição ontológica adquirida pela intencionalidade, ou seja, a consciência de se dirigir ao D'us Eterno de Israel entendendo que, sendo Ele absolutamente Outro, poderoso, Criador do mundo, o Ser Primordial e Fonte de Tudo que existe, não pode ser servido por mãos ou objetos destituídos de uma certa 'separabilidade'. O fator moral acompanha a intenção, pois, logicamente, uma intenção não pode ser pura apenas por ser separada dos usos profanos externos, ela precisa ser 'desprofanizada' interiormente, nas intenções ocultas, no cotejamento dos valores éticos que o pacto do Sinai exige, e, mais ainda, pelas exigências éticas da simples consciência humana.

Logo, há um processo gradual, até iniciático, de separação da consciência: separa-se o uso profano do uso santo (corpo, nêphesh, נפש), separa-se a intenção profana da intenção santa (rúach, alma, רוח), a própria consciência, refinada, é separada entre espírito adormecido e unido às coisas viventes e o separado para o Eterno (espírito, neshamá, נשמה). Isso traz uma série de implicações, que distinguem o judaísmo de suas interpretações e reconstruções posteriores, como o cristianismo. Primeiro, não existe,em função de uma visão dualista, uma separação absoluta entre corpo e mente, ou corpo e espírito, logo, não há nem uma primazia do espírito absoluto, envolto nas trevas da ignorância, nem a completa dependência e inferioridade do corpo, tanto um como o outro são perfeitos, emanados por D'us, e ambos podem estar sendo submersos na continuidade da existência. O que é essa futilidade? É a continuidade, a permanência, a mistura dos elementos do mundo formado às suas características não-separadas, misturadas, que tornam tais elementos, por mais que tenham sido emanados perfeitos pela vontade criadora de D'us, imprestáveis, indignos, ao culto divino. D'us, eternamente Outro, não se mistura, e isso é IMPORTANTÍSSIMO na obra de Hilda. Logo, Ele exige uma separação, um elemento de distinção que retire a essência da coisa da continuidade, a torne separada, distinta. Assim ocorre com os objetos do culto no Tabernáculo, as roupas dos sacerdotes, as vítimas sacrificiais, o próprio combustível, as especiarias, os ingredientes de incensos, o próprio incenso, e, fundamentalmente, o próprio sacerdote, são todos separados da continuidade, e escolhidos, apartados. Esse parece ser um dos significados originais da palavra sagrado: 'sacer', aquilo que está nu na indeterminação do mundo (@Bruce Torres ), separado, distinto, e parece ser o procedimento universal nas tradições, religiões e práticas rituais dos povos em todo o mundo, ainda que eles conceituem o sagrado de outra forma.

De certa forma, podemos ver o próprio povo de Israel, com seus 613 mandamentos (mitsvot), exigências dietéticas, leis rigorosíssimas, hábitos e costumes, sua ética, como um povo santo. Significa, como os detratores antissemitas afirmam, que são melhores que o resto da humanidade? Não, jamais, porque santidade aqui não significa pureza, retidão moral, mas separabilidade, distinção. As próprias normas de proibição da homossexualidade (que dificilmente são válidas ainda hoje), não parecem ser uma prescrição homofóbica de Vayicrá (Levítico), mas um fator de separação, distinção, quando o sexo anal entre homens era utilizado pelos povos idólatras circunvizinhos como uma forma de humilhação, rebaixamento do homem, principalmente dos escravos, e Israel deveria ser uma nação livre, onde até as leis disciplinando as relações entre escravos e senhores impõe respeito pela dignidade humana, solidariedade, proporcionalidade (Vayicrá é repleto de exemplos).

Ok, entendemos a ligação entre os níveis da alma e a caminhada rumo à santidade, e que santidade, no judaísmo e na Cabalá, se relacionam com a separabilidade, distinção. O que isso tem a ver com Hilda? Absolutamente tudo.

A prosa da Hilda é marcada pelo uso atropelado e caótico de palavras, expressões, construções sintáticas e gramaticais inovadoras, e tais elementos se dispõem de forma caótica, desorganizada, isto é, ela se movimenta na continuidade, na profanidade. Mas o que é mais curioso nisso é que não existe um momento de ruptura em que a continuidade se esfacela e a separabilidade se instaura, olímpica e majestosa, não, esse pode ser o espírito das religiões patriarcais, solares, mas não é assim com a espiritualidade lunar, feminina, cabalística de Hilda. O sagrado está exatamente na continuidade, no tecido do mundo, na essência das coisas, no movimento lento e ritmado de conversas, trocas de confidências, nas relações sexuais. Sim, porque o sexo, atividade eminentemente humana que é, capaz de gerar a vida e de glorificar os corpos pelo extremo de separação que traz, é expressão mais sublime que o corpo é capaz de produzir em conjunto com outro. O conceito de alma gêmea na Cabalá se traduz em geminidade de propósito, não em idealismos românticos, algo que Hilda sabia e replica na sua prosa. Alma gêmea é qualquer união, qualquer relação sexual, qualquer toque, até o mais violento, despudorado e, até mesmo, não consentido, que implica no rompimento da continuidade pela santidade, mas a santidade separada, até do estupro, desconhece fronteiras morais, sociais, econômicas, profanas, até mesmo as narrativas e estilísticas.

O estilo caótico da prosa hilstiana, ou antes sua falta de estilo, não é mero replicar das tentativas joyceanas de demolir o cânone literário ("Meu negócio é com D'us!"), mas é uma desfiguração consciente e intencional da autora-Kadosh que no seio da continuidade amorfa não rompe com nada, mas rompe com o próprio Kadosh, desmantela, desfigura, arrebenta a santidade, testa sua força, seu vigor, a potência da santidade-Kadosh contra a massa violenta e formalmente perfeita e acabada da continuidade sem D'us. Hilda brinca de D'us, brinca com D'us, zomba de D'us, testa D'us contra todas as forças sociais, canônicas, artísticas, econômicas, sexuais, testa, Hilda violenta, agride, estupra D'us. Hilda transa com D'us, O humilha, O prende entre as coxas do sentido mais acalorado e apressado e gozoso, e treme, convulsiona, delira D'us. Kadosh! Kadosh! Kadosh! As narrativas mais insólitas, o texto mais sem sentido, os diálogos mais inconclusivos, as fases da vida se arrebentando e se misturando, o arrombamento da infância expressam o comportamento mais ortodoxo e padronizado do sábio cabalista: desafiar Kadosh no centro do seu poder, expandir a Luz da Formação, quebrar a continuidade pelo descobrimento de Kadosh no centro de cada trepada, gozo, objeto.

A própria caracterização da divindade auxiliar, do D'us Que Aparece, o Adam Kadmon, o Modelo de Homem Primordial, que Hilda parece profanizar é o mesmo impulso devorador de sábios: como o rabino Akiva que ressuscita rabinos do passado para consultar-lhes sobre profecias tratando do futuro, descumprindo a Torá para que a Torá e o povo judeu pudessem ser salvos naquela geração; Baal Shem Tov, revelando os segredos iniciáticos da Cabalá para todo o povo judeu para que a Shechiná (Presença Divina) inundasse o mundo e apressasse a vinda do Messias; Shimon bar Yochai, confrontando um anjo de destruição, para não falar dos grandes Patriarcas e Profetas que desafiaram D'us, enfiaram o dedo na cara de Kadosh, quando este, exercendo o papel de Executor da vontade divina, pecava pela falta de proporção e excesso de crueldade. Abraão não desafia D'us quanto à destruição de Sodoma e Gomorra, não negocia, não 'ousa falar' diante D'Ele? Moisés não intercede constantemente pelo povo de Israel, não negocia, não implora, não aplaca a ira divina o tempo todo em Shemot (Êxodo)? Hilda faz o mesmo.

Kadosh está escancarado no mundo, não se ausentou dele, não o abandonou á própria sorte, mas sem o homem não moverá uma palha de dentro de seu Castelo de continuidade escura, escondido da manifestação. É preciso despertar Kadosh, acordá-lo de seu sono, desafiá-lo, por a obra de redenção em movimento, porque o Messias não vai vir sem ser provocado, ele depende da coragem do homem em encontrar D'us. Como eu, que tentei também cutucar Kadosh lendo a prosa de Hilst, mas confesso que tive que parar, as alturas eram grandes demais, e o que essa mulher tentou fazer só pode ser comparado ao procedimento metafísico de Clarice em Paixão segundo G.H., mas esta é uma feiticeira, poderosa, mas apenas uma feiticeira. Aqui, Hilda é uma sábia cabalista, e é assustador o que ela conseguiu cutucar.

Kadosh! Kadosh! Kadosh!
 
Última edição:
Nunca li nada dela, estou querendo começar.
Me indicam alguma coisa específica para a primeira leitura ou tanto faz?

EDIT: Achei esse aqui baratinho, vou levar:
 
Última edição:
Eu te indicaria, para começar, justamente o Júbilo, memória, noviciado da paixão, porque além de ter para kindle, é bem gostosinho de ler.
 

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