"O Anticristo" (Friedrich Nietzsche)
XXI
No cristianismo os instintos dos subjugados e dos oprimidos vêm em primeiro lugar: apenas os mais
rebaixados buscam a salvação através dele. Nele o passatempo prevalecente, a cura favorita para o
enfado, é a discussão sobre pecados, a autocrítica, a inquisição da consciência; nele a emoção produzida
pelo poder (chamada de “Deus”) é insuflada (pela reza); nele o bem mais elevado é considerado algo
inatingível, uma dádiva, uma “graça”. Também falta transparência: o encobrimento e os lugares
obscurecidos são cristãos. Nele o corpo é desprezado e a higiene é acusada de lascívia; a Igreja
distancia−se até da limpeza (– a primeira providência cristã após a expulsão dos mouros foi fechar os
banhos públicos, dos quais havia 270 apenas em Córdoba). Também é cristã uma certa crueldade para
consigo e para com os outros; o ódio aos incrédulos; o desejo de perseguir. Idéias sombrias e
inquietantes ocupam o primeiro plano; os estados mentais mais estimados, portando os nomes mais
respeitáveis, são epileptiformes; a dieta é determinada com o fim de engendrar sintomas mórbidos e
supra−estimulação nervosa. Também é cristã toda a inimizade mortal aos senhores da terra, aos
“aristocratas” – juntamente com uma rivalidade secreta contra eles (– resignam−se do “corpo” –
querem apenas a “alma”...). É cristão todo o ódio contra o intelecto, o orgulho, a coragem, a liberdade,
a libertinagem intelectual; o ódio aos sentidos, à alegria dos sentidos, à alegria em geral, é cristão...