Ciência da Terra-média: Os humanos e os outros 'povos que falam'

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Escrito por Reinaldo José Lopes
A mitologia criada por Tolkien tem, em comum com outras mitologias do passado remoto ou do presente, a ideia de que a humanidade não está sozinha na Terra. Não estou só falando de criaturas divinas ou semidivinas, como os Valar e Maiar: o ponto aqui é que, na Arda tolkieniana, nossa espécie convive com diversas outras criaturas humanoides inteligentes. Elfos, anões, hobbits e orcs estão aí para não me deixar mentir (assim como os gregos tinham sátiros e centauros e os escandinavos também tinham anões e elfos). Pura viagem, certo?
 

Pois, do ponto de vista científico, seria mais correto dizer que
Tolkien acertou na mosca ao povoar seu mundo com outros seres
inteligentes de aparência humana, em especial quando a gente considera
que Arda e a Terra-média são apenas o nosso planeta num passado remoto
e mítico. Digo isso porque, ao que tudo indica, a solidão da humanidade
na Terra é um fenômeno muito recente — e provavelmente uma exceção.

Vamos colocar isso na escala correta. Dados fósseis sugerem que os
primeiros seres humanos anatomicamente modernos — cuja constituição
física, portanto, não diferia significativamente da nossa — surgiram
em algum lugar da África Oriental, nas vizinhanças da moderna Etiópia,
há cerca de 200 mil anos. Acontece que ao menos três outras espécies de
hominino (é, eu sei, o nome é feio, mas é a nomenclatura mais correta a
ser usada no lugar do antigo "hominídeo", ou parente próximo da
humanidade) estavam presentes no planeta nesse momento — e todas elas
demorariam dezenas de milhares de anos para finalmente sumir.

Estou falando dos neandertais, senhores da Europa e do Oriente Médio,
que desapareceram há apenas 30 mil anos; do Homo erectus asiático,
presente na Indonésia ainda há uns 25 mil anos, talvez; e do mais
controverso e diminuto Homo floresiensis, ou "hobbit" — com apenas 1,1
m de altura e, aparentemente, desaparecido há apenas 13 mil anos,
também na Indonésia, mais precisamente na ilha de Flores. (Tem gente que aposta que ele não passa de um ser humano com deficiência física. Os debates são intermináveis.)

Em todos esses casos, há chances consideráveis de que humanos modernos
tenham convivido com tais criaturas, ou menos encontrado esses seres
vez por outra. Alguém se lembra da cena entre Finrod Felagund e o povo
humano de Bëor em "O Silmarillion"? Pois é: aconteceu no mundo real.

Pegando leve
Detalhe: estou me restringindo apenas ao passado mais recente (se é que
dá para chamá-lo de recente). Volte até uns 2 milhões de anos atrás, em
plena savana africana, e a coisa degringola de vez. Pode ser que até
seis ou sete espécies diferentes de homininos coexistissem — um ou
dois membros do nosso gênero, o Homo, mais alguns Australopithecus,
mais alguns membros do gênero Paranthropus (criaturas estranhas de
mandíbulas poderosas que são a resposta evolutiva à pergunta "o que
aconteceria se um hominino virasse um gorila").
 
É claro que nenhuma dessas criaturas desenvolveu uma cultura élfica ou
anã avançada — em qualquer momento antes de 10 mil anos atrás, todo
mundo no mundo vivia da caça e da coleta –, mas não temos porque
duvidar de que cada uma dessas espécies tinha suas próprias
características e capacidades mentais e físicas. Sabiam falar? Adoravam
deuses e pranteavam seus mortos? Não sabemos, embora a maioria dos
paleoantropólogos afirme que essas capacidades mais sofisticadas só
alcançaram seu pleno desenvolvimento com os seres humanos
anatomicamente modernos.

Imagine a estranheza de nossos ancestrais ao encontrar pela primeira
vez uma dessas criaturas, e estaremos muito perto da sensação de um
elfo ao ver um humano pela primeira vez, ou dos homens de Rohan ao dar
de cara com Merry e Pippin.

E como os outros "povos que falam" da Terra real sumiram? A verdade é
que ninguém sabe. As hipóteses falam em competição por recursos (na
qual nos demos melhor), confronto aberto (nada impossível, considerando
que até chimpanzés matam membros de bandos rivais) ou assimilação
genética (via cruzamento; também nem um pouco impossível, mas o DNA
humano moderno, muito homogêneo de acordo com a maioria dos
geneticistas, vai contra a ideia). Ou que tal uma combinação de tudo
isso?

Seja como for, a convivência entre muitas "humanidades" da Terra-média,
e a ideia de que, no fundo, elas têm uma origem comum, é bem menos
amalucada do que parece.

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