O Espelho de Mandos – Capí­tulo 2 – Lanval

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Escrito por super_tetsuo2008
No início havia Eru, o Único, e ele criou Arda e os Ainur. Destes, quinze desceram ao mundo, dentre eles o Senhor do Escuro, Morgoth, contra quem lutavam todas as criaturas de Ilúvatar. Diz-se que os Valar, aqueles Ainur que deram forma à essência de Arda em tempos imemoriais, habitam terras magníficas no Oeste distante, onde o mundo tem fim. Mas sabemos que eles ainda vagam pela Terra-média, às vezes sem suas roupagens corpóreas, apenas em suas formas espirituais, a fim de interceder por homens e elfos contra os males do Norte. E sabemos que, dentre eles, Ulmo, o Senhor das Águas, tem um carinho especial pelos homens, principalmente os habitantes de Estolad, abençoando a água que dá vida a nossos campos.

 
Gratos a ele, nossos avós erigiram em sua homenagem a capela que dera origem a todo o povoado de Ugür. E ainda nos meus tempos de infância, os habitantes da aldeia e suas redondezas se reuniam todo mês na capela para festejar por Ulmo, nosso querido padroeiro. Os adultos costumavam preparar grandes refeições com frutas, carne de javali, bolos e cerveja, e as crianças costumavámos usar nossas melhores roupas.

– Eu o vi voltando para casa à noite – comentou, empolgado, Silas, filho do prefeito de Ugür. Era Dia de Ulmo, e Silas sempre se unia ao nosso grupo em eventos assim, embora durante quase todo o restante do mês não lhe fosse permitido ficar com a gente. Ele tinha professores e era obrigado a estudar o dia todo, e quase não lhe sobrava tempo para brincar. Apesar de ter roupas e brinquedos melhores que os nossos, sentíamos pena da vida que ele levava. – Ele tropeçava no escuro como um rato manco, achando que não estava sendo visto sob a lua cheia.

– Vocês deixaram-no nu, seus irresponsáveis! – disse Elanor, tentando parecer séria, mas também incapaz de conter o riso. Elanor era alguns meses mais velha que eu, tinha cabelos negros curtos e cacheados, além de pequenas covinhas nos cantos da boca. Sua pele, de tão branca, era quase rosa, e a maioria de nós éramos encantados com ela, mas sabíamos que seus pais em breve arranjariam um pretendente de berço nobre para ela, coisa que ninguém em Ugür era. – Já imaginaram o que os pais dele podem fazer ao descobrirem quem fez isso com ele?

– Nós já assumimos o risco – fez Camus, cujo olho inchara e agora estava quase do tamanho de uma pêra. – Nada pode ser pior do que o que eu passei ontem quando voltei pra casa. Vou ficar uns bons dias sem poder cavalgar.

Todos rimos de seu comentário. Estávamos reunidos no estábulo do Sr. Pilgrim, o dono da hospedaria de Ugür, que ficava ao lado da capela, onde nossos pais preparavam o banquete que serviria de almoço para todos nós. Fazia mais um belo e quente dia de verão, embora o Sr. Nodewich, nosso vidente do tempo, tivesse previsto o início da temporada de chuvas para aquela noite.

– O mesmo digo eu – disse eu, em meio aos risos. – Mas é melhor que ficar uns bons dias sem poder sair de casa sem ser alvo de risada de toda a aldeia.

– Vocês tinham que ver o medo do primo dele – tornou Camus, apontando para o pequeno grupo de Bête, que estava reunido nos degraus de entrada da capela, todos cochichando entre si sérios, olhando de longe para nós –, principalmente enquanto eu corria atrás dele.

– Você foi muito corajoso, Camus – agora foi a vez de Mardoc, cujas roupas pareciam apertadas demais em seu corpo gordo -, mas Adam foi mais. Conte-nos como você enfrentou o Stripa sozinho, Adam.

Todos os olhos se voltaram para mim, e eu me senti meio desconfortável.
– Eu não o enfrentei, muito menos sozinho, lamento decepcioná-los – olhei para os lados antes de continuar, certificando-me de que não havia ninguém de fora que pudesse me ouvir. Além de nós, só havia no estábulo os cavalos e um sujeito que dormia encostado na outra parede, a metros de distância, com um chapéu sobre o rosto. – Havia um homem na floresta, um sujeito de armadura preta, que me ajudou – sussurrei.

– Um sujeito de armadura?! – repetiu Silas, impressionado.

– Fale baixo, Silas – sussurrou Elanor.

– Silas, se os adultos descobrirem que andamos perambulando pela floresta e que há uma pessoa estranha lá, jamais voltarão a nos deixar sair de casa – adverti, sério.

– Eu sei, eu sei – respondeu ele -, desculpem.

– Será que era Eöl? – perguntou Mardoc, traduzindo o pensamento de todos ali.

– Eu perguntei seu nome – respondi -, mas ele só riu, me ajudou a levantar e em seguida partiu.

– Então não deve ser ele – disse Mardoc, que era o que mais se interessava por histórias sobre o estranho ser que habitava o coração de Nan Elmoth. – Se fosse ele, teria te amarrado e carregado para seu cativeiro.

– Mas dizem que de fato ele possui uma armadura negra – fez Esdras, que costumava falar pouco.

– Não parecia galvorn – disse eu, que conhecia o metal por causa de uma cota que meu pai possuía -, parecia algo mais pesado. Na verdade, cada peça parecia pesar uma tonelada.

– Crianças – tivemos um sobressalto ao ouvir uma voz, mas ao olharmos em sua direção vimos Nenar, a irmã mais velha de Mardoc, que nos acenava da porteira. – Os adultos vos chamam, é hora da bóia!

Camus e Silas urraram de alegria e correram à frente, loucos para serem os primeiros a atacar a mesa com o vasto banquete. Nenar virou-se em seguida e acompanhou-os, enquanto o restante do grupo andava um pouco atrás.

– Será que ela nos ouviu? – perguntou Elanor, preocupada.

– Aposto que não – respondeu Mardoc. – Se ela tivesse ouvido, já teria deixado isso bem claro, tentando nos chantagear para que não a deixemos contar aos nossos pais. Eu a conheço.

Dirigimos-nos, então, alegres à capela, para comer e cantar e orar ao Senhor das Águas.

Mas minha alegria iria durar pouco.

A noite daquele mesmo dia se aproximava, e com ela as primeiras nuvens de chuva vindas do leste.O vento já uivava alto, e os trovões chegavam a nós como rugidos de feras distantes. À luz das lamparinas, eu e minha mãe costurávamos, eu um pequeno ferimento na orelha de Borges, meu cachorro de estimação, e minha mãe as roupas rasgadas do meu pai e do meu irmão. Meu pai chamava-se Arameth, era um guerreiro que prestava serviços aos elfos no norte e voltava para casa uma vez por ano. Lembro-me que ele tinha cabelos compridos e ruivos, mas agora não mais me recordo de seu rosto, talvez porque em sua imagem mais nítida que há na minha mente, ele usa um elmo cobrindo-o todo, à exceção dos olhos azuis. Mas imagino que sua face tenha sido marcada por diversas cicatrizes, como é a maior parte dos guerreiros que passam a maior parte de suas vidas treinando e lutando.

Arameth era também o nome do meu irmão, que no último verão fizera dezessete anos e partira para o norte com meu pai, juntando-se ao exército de Maedhros, um dos príncipes élficos que enfrentavam todas as criaturas que desciam da nefasta fortaleza no extremo norte, uma montanha gigantesca chamada Angband. Enquanto eu parecia mais com minha mãe, herdando sua pele e seus cabelos negros, Arameth era mais parecido com meu pai. Lembro-me dele como sendo extremamente alto, mais até que meu pai, e sendo muito belo de rosto. Toda a população de Ugür (à exceção das famílias dos demais guerreiros, que eram poucos e não tinham qualquer contato com os elfos, mas serviam Haldad no leste) admirava meu pai e meu irmão por passarem seus dias com seres de raça tão elevada como os eldar. Além disso, era sabido que meu irmão era excepcionalmente hábil com a espada e poderia se tornar um grande herói a ser clamado por gerações e gerações, pois com apenas quinze anos ganhara vários torneios de habilidades marciais em Balan. Eu mesmo invejava sua capacidade, e sonhava em um dia me tornar alguém como ele, ou mesmo como meu pai, que era um homem dedicado e, segundo o que me contaram depois, com uma inteligência na guerra fora do comum.

Era novamente verão e com as chuvas se aproximava o tempo em que eles deveriam voltar, pois já estavam a quase um ano longe do lar. Como a chuva nos obrigava a ficar em casa, nessa época do ano minha mãe costumava se dedicar muito à preparação da casa para a volta de seu marido. Lustrava as armas e armaduras que serviriam a ele durante sua próxima ausência, engraxava suas botas, consertava suas roupas velhas e comprava novas, limpava toda a casa, deixando-a impecável, e agora eu sabia que durante os próximos dias ela ia se ocupar muito com isso, passando a maior parte de seu serviço caseiro para mim.

Mas eu estava enganado.

Ouvimos duas batidas na porta e nos entreolhamos. Estava escurecendo e não era comum os habitantes de Ugür fazerem visitas à noite, ainda mais uma que prometia um belo temporal. Mamãe fez um gesto mandando-me atender quem quer que fosse, e eu me levantei, incapaz de imaginar quem era. Não poderia ser meu pai, pois ele sempre batia três vezes quando chegava, e ele nunca chegava de noite.

Abri uma brecha e olhei um rapaz magro, segurando um cavalo pelo cabresto, com roupas surradas de viagem e um cabelo sujo que esvoaçava com o vento.

– Boa noite, a Sra. Urwen se encontra? – disse ele, com o sotaque mais estranho que eu já ouvira em toda minha vida. Urwen era o nome de minha mãe.

– Quem é? – perguntei, desconfiado.

– Meu nome é Lanval – ele fez uma leve mesura -, e sou um amigo de Arameth.

Olhei para mamãe, que ouvira a breve conversa. Em resposta, ela me olhou de volta com uma sobrancelha levantada, mas se levantou e andou em direção à porta.

– Posso ajudar? – fez ela, abrindo mais a porta para poder ver o homem.

– Sinto muito incomodá-los, senhora, mas eu gostaria de conversar. Venho em nome de seu marido – ele fez novamente a mesura, o que era um gesto considerado demasiadamente educado em Ugür.

– Eu não te conheço – respondeu minha mãe, que era pouco dada a acreditar em estranhos. – O que você quer dizer? Está tudo bem por lá, não está?

– Sinto muito, senhora, mas não – Lanval pareceu meio sem jeito para continuar. – sinto informá-la que seu marido faleceu há três dias, no dia quinze de maio no calendário dos noldor.

Minha mãe empalideceu na hora, e eu senti algo apertar minha garganta.

– Desculpe, eu não compreendi – disse ela, quase incapaz de respirar.

– Seu marido, o Sr. Arameth, faleceu em batalha há três dias, e seu filho desapareceu nos vales das Ered Gorgoroth.

Precisei de rapidez e força para segurar minha mãe, que caíra para trás e quase perdera a consciência.

– Mamãe, mamãe? – tentei reanimá-la, mas ela estava mole e pesada como uma grande carpa que eu pescara outro dia. Lanval tentava ajudar, mas ao se abaixar para tocá-la ela se ergueu num pulo, se apoiando na porta para não cair novamente.

– Senhora, está tudo bem? Sinto muito pelo que houve, mas eu tive ordens de trazer-lhe a notícia.

Minha mãe tentava se recompor, articulando as palavras devagar:

– Garoto, espero que isso não seja uma brincadeira de mau gosto. Você pode provar o que diz?

– Este é o cavalo de Arameth – respondeu ele rapidamente, e olhamos a montaria que ele trazia pelo cabresto. De fato era Aracar, o alazão de meu pai, e ao olhar para ele veio-me uma dor súbita no coração e uma imensa vontade de chorar. Minha mãe também reconheceu o animal, e com os olhos cheios de lágrimas e uma exclamação agoniada correu para dentro de casa, deixando-me sozinho com o rapaz. Um trovão mais próximo ressoou e as primeiras gotas começaram a cair do céu, como se o mundo começasse a chorar a morte de meu pai. Mas eu seria mais forte e não faria o mesmo.

– Você pode entrar, se quiser – disse eu, enquanto o homem me encarava em silêncio -, enquanto eu guardo Aracar.

– Eu vou com você – respondeu ele. – Mas depois eu gostaria de entrar, sim. Apesar de sua mãe provavelmente me odiar.

Não respondi, pois sabia que se respondesse algo naquele momento, o choro iria chegar. Apenas peguei o cabresto de sua mão e guiei Aracar para a parte de trás da casa, onde havia um pequeno celeiro onde o cavalo ficava em dias de chuva. Nesse momento começou a chover mais forte, e as gotas estavam frias, por isso me apressei para abrir a porta da pequena e alta construção.

Entramos, e eu guiei Aracar até o pequeno monte de feno que sobrara do ano anterior e que estava com um aspecto desagradavelmente ruim. O capim mais novo estava reunido no armazém maior do Sr. Elfrar, um mercador amigo dos meus pais, e não seria possível ir até lá para recolhê-lo. Aracar deveria contentar-se com o que havia, pelo menos até o próximo dia.

A água caía do céu como uma torrente, e ao bater no telhado de madeira do celeiro produzia um som monótono e alto. Lanval olhava para mim sem ter o que dizer, sabendo da minha dor. Eu parei para acariciar o pêlo de Aracar, enquanto ainda tentava digerir a morte de meu pai, forçando-me a segurar as lágrimas, quando de repente lembrei-me de algo.

– O senhor disse que era amigo de meu pai? – perguntei.

– Lutamos várias vezes juntos, e seu pai era um grande homem. Seu irmão também.

– Quer dizer então que você é um elfo? – perguntei, impressionado.

– Oh, me desculpe – disse ele, surpreso -, sim, sou um elfo. Falhei ao me apresentar.

– Um elfo! Alguém mais sabe que o senhor está aqui?

– Bom, meu senhor Maedhros sabe, e mais alguns amigos que moram comigo em Himring. Da tua aldeia, ninguém – ele respondeu com um singelo sorriso, adivinhando meus pensamentos. De repente eu notei nele uma certa luz própria, e ele pareceu-me incrivelmente belo, mesmo naquela penumbra que beirava a escuridão.

– Então eu tenho que te mostrar aos meus amigos! Eles não vão acreditar! – eu estava tão empolgado que não parecia que acabara de perder um pai.

A chuva afinou por alguns segundos, e nós aproveitamos para correr de volta pra casa, onde minha mãe chorou toda a noite e Lanval me contou as maravilhas de seu mundo ao norte, as famosas guerras do passado, e os grandes feitos de meu pai nas montanhas geladas de Maedhros.

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