Em defesa de uma 'ciência da Terra-média'

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Escrito por Reinaldo José Lopes
Existe alguma chance de usar as palavras "ciência" e "Terra-média" na mesma frase sem que o sentido seja o de contradição absoluta? Afinal, a Terra-média — e em sentido mais amplo Arda, a versão tolkieniana do nosso planeta, já que a Terra-média é só um continente de Arda — não é  uma Terra do Nunca mágica em que as regras chatas do nosso mundo real são subvertidas à vontade pelos poderes de elfos, magos e Valar? Se você tem essa impressão, gostaria de sugerir que não andou prestando muita atenção no que andou lendo. Venho por meio desta defender ao menos a possibilidade de uma "ciência da Terra-média" — trocando em miúdos, o fato de que Tolkien não estava totalmente alheio a fatos científicos quando criou seu mundo.
 

Como vocês devem imaginar, não é o tipo de argumento que se conclui assim de bate-pronto, de forma que eu pretendo transformar essas análises sobre a "ciência da Terra-média" numa série de artigos. O importante por enquanto é mostrar que Tolkien, bem como o mundo que ele criou, não são um vale-tudo mágico nem estão totalmente alheios às descobertas da ciência moderna. E, de qualquer maneira, parece-me ao menos divertido tentar compatibilizar as duas coisas.

Uma das pedras no caminho é o fato de que, por mais caprichoso e detalhista que Tolkien fosse, o fato é que os textos que chegaram até nós, desde "O Senhor dos Anéis" (em menor grau) até "O Silmarillion" e os livros da série "The History of Middle-earth", não são totalmente coerentes do ponto de vista da construção de um universo. É importante lembrar que Tolkien passou a vida inteira trabalhando na sua mitologia particular, e a visão que ele tinha sobre a estrutura dela foi se modificando ao longo do tempo, bem como seu nível de autoexigência.

Explicando melhor: em alguns pontos o Professor se permitiu manter elementos folclóricos "não-sérios" (como os gigantes das montanhas e os trolls de "O Hobbit"), enquanto em outros ele tentava buscar um nível de verossimilhança, credibilidade e até coerência em relação aos fatos científicos estabelecidos que provavelmente o deixariam doido.

Para dar só um exemplo: no fim da vida ele chegou muito perto de jogar fora toda a mitologia sobre a origem do Sol e da Lua que aparece em "O Silmarillion" (em que esses astros derivam das árvores Telperion e Laurelin) para abraçar um surgimento muito mais vagaroso de Arda, no qual o Sol e a Lua existem astronomicamente há muito mais tempo – e no qual o nosso planeta gira em torno deles. E a justificativa que ele próprio dá (e que pode ser conferida em "Morgoth’s Ring", livro número 10 da série "History of Middle-earth") é que com a ciência moderna um mundo mitológico geocêntrico  (ou seja, com a Terra no centro do Universo) deixa de ser crível. 

Outros comentários pessoais de Tolkien, espalhados pelas obras póstumas ou em suas Cartas (estas já disponíveis em português graças ao primoroso trabalho de Gabriel Brum e do pessoal da Arte&Letra), deixam claro que ele estava longe de ser um analfabeto científico.  Ele se mostra extremamente insatisfeito, por exemplo, com a maneira como os livros de ficção científica (uma das paixões dele e praticamente a única coisa que ele curtia da literatura moderna) lidam com a questão da viagem "mais rápida que a luz" e de "mecanismos gravitacionais". A gravidade, diz Tolkien, é uma declaração absoluta do local que você ocupa no Universo. Não dá para sair manipulando a dita cuja desse jeito — o que é uma enunciação elegante, em termos leigos, da relatividade geral de Einstein. 

Tolkien também aborda de forma inteligente asssuntos como paleontologia (falando de dinossauros e pterossauros, esses últimos "modelos" das montarias dos Nazgûl), genética de plantas e até o conceito biológico de espécie, que foi um dos grandes triunfos da Síntese Moderna da teoria evolutiva, que uniu a seleção natural com a genética de populações. Tolkien enuncia precisamente o conceito biológico de espécie ao afirmar que humanos e elfos, por serem capazes de produzir descendentes férteis, biologicamente pertencem à mesma espécie. 

É claro que Arda é um mundo "criacionista", diríamos nós, por ser resultado da intervenção direta do trabalho demiúrgico dos Valar, mas creio que o importante é a visão bastante naturalista (ou seja, ligada a "regras" do mundo natural) que Tolkien tem do funcionamento de seu universo ficcional. O que me vem à cabeça é a famosa frase de Gandalf no passo de Caradhras: "Eu não consigo queimar neve!". Isso deixa claríssimo que mesmo a "magia" tolkieniana não é um vale-tudo: está mais para uma habilidade natural de certos tipos de seres que precisa sempre caminhar de mãos dadas com as leis da natureza, sob pena de simplesmente falhar. Trata-se de uma visão plenamente concordante com o cerne do espírito científico, ainda que, nos detalhes, os personagens de Tolkien façam coisas "cientificamente impossíveis". 

À guisa de introdução, acho que os parágrafos acima são mais do que suficientes. A seguir: o que impede as nossas aranhas de virarem Laracnas?

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JohnVitor

Oque impede das nossas aranhas de virarem Laracnas é o espaço pois elas tiveram de se adaptar ao espaço que lhe foi concedido por nos humanos, hoje seus descendentes vivem acuados em cantos do teto de nossas moradias!!

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