O Espelho de Mandos – Capí­tulo 1 – Ovelha Negra

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Escrito por super_tetsuo2008

Sou Galdweth, filho de Arameth, mas minha mãe me chamava Adaman, ‘filho da noite’ no idioma de seus pais. Essa é a história de Haleth e um amor incompreendido. É a história de um herói e seu sofrimento, e é a história da maldade de Sauron, o servo do Senhor do Escuro.

 

 
Era um verão azul em Ugür, uma pequena aldeia localizada no norte de Estolad, próxima ao rio Celon. Eu tinha oito anos e uma pele escura que me destacava entre os aldeães. Eu não gostava dela, pois a maioria das pessoas tinha e ainda tem superstições e preconceitos contra peles negras. Hoje isso já não me importa mais, tenho que admitir que a cor já me foi até útil em algumas ocasiões. As pessoas me chamavam Adaman, pelo fato de eu ser escuro como a noite, e com este nome eu não me importava, pois fora alcunhado pela minha própria mãe. Só me irritava quando usavam outros apelidos, como Abaman, ‘ovelha negra’, que meu vizinho Hardur criara para mim no dia anterior a essa bela tarde de sol. “Eu ainda farei você engolir isso!”, eu prometera, furioso, enquanto estava ocupado demais tosquiando as ovelhas de meu pai.

E agora eu estava prestes a cumprir a promessa.

Hardur era um garoto ruivo, talvez uns vinte centímetros mais alto que eu, uns quinze quilos mais forte e três anos mais velho. Mas eu era destemido e tinha amigos, que também desgostavam dele e ainda me deviam favores. E agora eles acabavam de chegar à margem da grande floresta que havia próxima ao vilarejo, à exceção de um.

– Onde está Mardoc? – perguntei num sussurro, enquanto os dois garotos se sentavam ao meu lado, sobre a relva. Estavam ofegantes, pois tiveram que vir correndo da aldeia até ali, para que nenhum adulto os visse. Crianças da nossa idade não tinham permissão para sair do vilarejo sozinhas, e meus amigos demonstravam uma mistura de medo e excitação com a transgressão da regra. Sentimentos que eu também compartilhava.

– Ele não pôde vir – respondeu, também num sussurro, Esdras, um menino loiro de feições delicadas e da minha idade e altura -, a mãe mandou-o olhar o irmão.

– Ora, por que ela mesma não faz isso, o filho não é dela? – perguntei, indignado por ter o grupo desfalcado por causa de uma tarefa tão ingrata que é vigiar um bebê. – E o que de errado pode acontecer com uma criança que sequer sabe andar?

– Ele está de castigo, Adam, você sabe – agora foi a vez de Camus, o segundo amigo, falar. Ele tinha nove anos, era um tanto mais alto que nós, mas tinha uma voz fina que o fazia parecer mais novo. Tinha o corpo bem magro e esguio. Tornar-se-ia, anos depois, um dos maiores atletas edain da Terra-média. – Desde que ele quebrou a tigela de barro da mãe.

– Oh não! Outra tigela? – Mardoc era um moreno gordo bastante desastrado. Também costumava se esquecer muito das coisas. Para piorar, seus pais eram muito rigorosos com ele, e só não podiam ser mais porque qualquer serviço que o dessem terminava em desastre.

– Não, é a mesma. Pela terceira vez – Camus não conseguiu evitar um risinho de escárnio.

– Tudo bem, ainda bem que eu não deixei nada pra ele trazer mesmo, eu imaginava que ele ia esquecer. Muito bem, o que vocês trouxeram?

– A tesoura, como você pediu – estendeu-ma Esdras -, cola e bastante barbante.

– Ótimo. E você, Camus?

– Meus punhos, claro – o garoto fechou a mão em volta do punho, com um sorriso malvado estampado no rosto.

– E o que mais? – perguntei, impaciente.

– Tinta.

– Tinta?! Pra quê?

– Ora, se a lã não cobrir o corpo todo, a gente pode jogar tinta preta que o resultado será o mesmo.

– Boa idéia – disse Esdras.

– A lã vai dar – disse eu, mal-humorado. O objetivo da missão era fantasiar Hardur de ovelha negra, não deixar sua pele simplesmente da cor da minha para que ele fosse zombado por isso.

– E onde está Amélia? – perguntou Esdras.

– Eu a amarrei a uma árvore lá no fundo – apontei para a floresta. – Não consegui fazê-la ficar abaixada, e acho que seria melhor se a gente o pegasse lá dentro, onde as árvores podem abafar os gritos.

– A gente o amordaça – observou Camus, a maldade brilhando nos olhos.

– Ainda prefiro o meu plano – reclamou Esdras -, imaginem sua cara de espanto ao ver uma ovelha negra na floresta. Vai achar que está sonhando!

– Eu não posso deixar Amélia sozinha com ele, ele estará armado, lembre-se disso. Agora façam silêncio, nós precisamos ouvi-los chegando.

– Não seria melhor se eu subisse numa árvore para ter uma visão melhor? – Camus, que era um exímio escalador, teve essa excelente idéia.

– Não! Eles poderiam te ver. Agora fiquem quietos!

Abaixamos-nos atrás do capim e esperamos. Olhávamos para o topo da Colina Norte, um pequeno morro verde que separava Ugür de Nan Elmoth, a floresta de Eöl. Eöl era uma criatura bizarra, metade elfo e metade anão, e que, segundo as histórias contadas por nossos pais e avós, habitava o coração da floresta. Havia relatos sobre crianças e mulheres que desapareciam após embrenharem-se na escuridão de Elmoth e nunca mais voltavam, pois eram capturadas e escravizadas pelo terrível Eöl. Mas com oito anos eu já tinha idade para não me assustar com essas histórias, aliás, minha temeridade era tanta que as lendas só me faziam sentir mais vontade de adentrar a floresta, descobrir a morada de Eöl e libertar os escravos. O fato de algumas pessoas acreditarem que Eöl fosse não um híbrido elfo-anão, mas apenas um elfo negro, me dava ainda mais curiosidade de ver a tal criatura.

Mas as histórias de Eöl estavam longe da minha mente naquele momento. Tudo em que eu pensava era em Hardur e seu primo Bête, que deviam estar subindo a colina pelo outro lado e que em breve deveriam aparecer no horizonte, e aí seria questão de poucos minutos até eu impor minha vingança. Não era só pelo Abaman que nós fazíamos isso, mas por uma rivalidade de anos em que Hardur sempre nos maltratara. Além de roubar e quebrar nossos brinquedos, Hardur costumava nos bater sempre que nos pegava sozinhos, às vezes sem qualquer motivo aparente. E quando nos juntávamos para revidar, ele reunia um grupo ainda maior de garotos maiores e aí nós apanhávamos mais ainda. Mas desta vez seria diferente, seu grupo estava desfalcado pelos gêmeos Gleen, que haviam partido para Balan com seus pais havia dois dias, a fim de vender trigo e leite de cabra, as bases do sustento de quase todas as famílias de Ugür.

Na ansiedade em que estávamos, Hardur parecia demorar horas, embora hoje eu ache que não havia passado trinta minutos até ele aparecer. Nesse momento quase gritamos de satisfação, pois começáramos a acreditar que ele não viria mais, e que nosso sumiço do vilarejo (que deveria ser acompanhado de uma bela surra para nossos pais quando voltássemos) tinha sido em vão. Mas agora lá estavam eles, Hardur, Bête e… um cachorro?!

Meu êxtase de finalmente começar a pôr o plano em prática de repente deu lugar à apreensão. Entreolhando meus companheiros, pude ver que o mesmo se passava com eles.

– Não sabia que eles caçavam com cães – sibilou Esdras, visivelmente aflito.

– Com certeza não caçam, já os observei milhares de vezes e eles nunca trouxeram um cão. Com certeza ele está aqui hoje para repor a perda dos gêmeos – sussurrei.

– Eu conheço esse cachorro, pertence a Madame Pomfrey e ou ele é realmente bravo ou ele não gosta de mim – foi a vez de Camus, nos mostrando uma pequena cicatriz no braço direito. Ele parecia bem menos apreensivo que Esdras, menos até que eu, mas estava sério, o que era bastante incomum.

– Ele é ensinado – respondi, pois também conhecia o cachorro. Camus e eu costumávamos assaltar o pomar da tia de Bête quando ela saía de casa, e algumas vezes éramos recebidos ferozmente por Stripa. – É só chamarmos pelo nome que ele não avança… acho.

– Não seria uma boa idéia agora treparmos nas árvores? – insistiu Camus.

– É uma ótima idéia – concordei, e puxei a corrida para alguns metros no interior da floresta, onde havia árvores mais altas e de folhagem mais densa, onde poderíamos nos esconder. – Esdras, não caia dessa vez.

– Pode deixar – respondeu ele, com tanto medo que era incapaz de sentir o orgulho ferido por minha provocação.

Aproximamos-nos de uma clareira que nos parecia apropriada para a execução do plano. Mesmo ali, no espaço entre as árvores onde entrava pouco sol, a grama não era tão baixa. Mas estava no caminho da trilha que adentrava a floresta e eu tive certeza que Hardur passaria por ali. Camus escolheu rapidamente sua árvore e subiu, rápido como um símio. Esdras não foi capaz de escalar segurando seu porrete, por isso levou somente sua funda. Cada um de nós carregava um pedaço de pau e uma funda, que eram meros cordões de elástico que usávamos para arremessar nossas preciosas pedras. Gastáramos dias recolhendo e selecionando as melhores pedras que podíamos encontrar ao redor da Estrada dos Anões e na beira do Celon. Agora essas pedras, com tamanho e pesos ideais para nossos cordões, enchiam nossos bolsos, e todo o tempo nós tomávamos o maior cuidado para não deixá-las cair. Quando eu ia tomar o impulso para alcançar o galho de uma árvore que eu escolhera, ouvi um balido vindo de dentro da floresta.

– Amélia! – exclamei, só então lembrara-me da ovelha do meu pai.

– O que foi? – Camus gritou de cima de sua árvore, ao me ver hesitando a escalar a minha.

– Amélia, esquecemos dela! Se Stripa fizer alguma coisa a ela, estou morto! Não saiam daí! – gritei, correndo em direção a onde eu amarrara a ovelha. Ouvi os latidos de Stripa ao longe e percebi que eu gritara alto demais. Mas eu precisava fazer algo para salvar a pobre Amélia, mesmo que fosse apenas desamarrá-la, talvez deixá-la fugir para longe fosse melhor que deixá-la servir de almoço a um cão feroz.

Se meus gritos não haviam sido suficientes para atrair a atenção de Stripa, o balido de Amélia com certeza foi. A ovelha gritou e pulou de susto ao me ver saindo do mato de repente, e me deu uma cabeçada quando me aproximei para desamarrá-la. O tremor nas mãos e os puxões que Amélia dava na corda não me permitiam ter qualquer agilidade em desatar o nó, e os latidos de Stripa estavam cada vez mais próximos, até que eu desisti de tentar, virei-me para o mato de onde o cachorro deveria sair e levantei meu porrete. Uma gota de suor escorregou até meu olho e eu tive que piscar com força, tenso, a respiração suspensa, esperando pelo momento em que o cachorro saltasse para fora do capim e em que eu precisaria ter o reflexo de acertá-lo com uma pancada antes que ele me derrubasse.

O capim se mexeu e minhas mãos impulsivamente se moveram alguns centímetros para a frente, mas eu as detive e imediatamente as retornei para trás. Stripa estava logo diante de mim, mas ao invés de sair do mato num pulo, saiu lentamente, com seu rosnado alto, os dentes à mostra e o focinho enrugado, o pêlo levemente eriçado e o corpo todo apoiado nas patas traseiras, pronto para dar o bote a qualquer momento. Tive o impulso de avançar contra ele, mas novamente me segurei, pois ele ainda estava a pelo menos dois passos de distância e minha investida daria tempo a ele para se esquivar. Após a decisão de me manter na defensiva, subitamente senti meu corpo rígido demais, e agora eu estava com medo de não conseguir mover os braços para golpear o cachorro quando ele avançasse. Encaramos-nos por alguns segundos, durante os quais eu me esquecera completamente de Hardur e seu primo, e de Camus e Esdras, que eu havia deixado pra trás. Era só Stripa e eu, e meu corpo estava paralisado, embora eu achasse que não estava com medo. Era só um cachorro, e eu já o enfrentara duas vezes antes, conseguindo fugir em ambas, embora dessa vez eu não pudesse simplesmente fugir. Havia Amélia, a ovelha de meu pai, e eu precisava protegê-la. Eu estava confiante, mas a rigidez do meu corpo me atrapalhava, e eu lutava para me livrar dela antes que o cachorro viesse, mas ela parecia não vir de mim, parecia vir de fora.

De repente Amélia baliu, Stripa olhou através de mim assustado e recuou, com um ganido. Não consegui olhar para trás, ainda não podia tirar os olhos do cachorro, até que ele disparou de uma vez por todas, ganindo como se tivesse apanhado. Com um suspiro de alívio, olhei para trás, e o susto me jogou com o traseiro no chão.

Um sujeito alto, forte, com uma armadura preta cobrindo todo o corpo, estivera parado a apenas alguns centímetros atrás de mim, e agora que eu estava sentado no chão, olhando para ele aterrorizado, ele se agachou e estendeu a mão para mim.

– Q-quem é você? – consegui, a custo, perguntar. Aquele homem causava em mim um pânico muito maior que o que o cachorro feroz havia causado. Talvez porque ele parecia uma horrível armadura de batalha ambulante, talvez porque ele parecia grande demais, ou talvez porque ele não disse nada em resposta. Mas mesmo assim estendi a mão e ele me ergueu, quase sem nenhum esforço. – Você é… Eöl?

Ele respondeu com uma gargalhada sinistra que me fez me encolher. Senti vontade de seguir Stripa para longe daquele homem. Ainda rindo, ele se virou, dando-me as costas, e partiu. Observei-o desaparecer entre as árvores, sentindo-me um estúpido por temer alguém que possivelmente me salvara a vida.

– O-obrigado! – disse eu, para a escuridão.

Me apoiei na árvore em que Amélia estava amarrada, e até a pobre coitada parecia sentir tanto medo que não era capaz sequer de balir mais. Lembrei-me dos meus amigos, que haviam ficado para cuidar de Hardur e Bête, e que talvez estivessem precisando de ajuda.

– Não vou te deixar amarrada, querida, o cachorro pode voltar. Tente voltar para casa sozinha, sim? – já mais calmo, desatei os nós e observei Amélia correr para longe, com a vaga sensação de que apanharia muito em casa, quando minha mãe descobrisse que eu soltara uma ovelha na floresta. Mas de qualquer forma, Amélia era uma ovelha negra, e ovelhas negras não dão boa lã, portanto era melhor perder Amélia que perder qualquer outra do rebanho do meu pai.

Dirigi-me sorrateiro para a clareira em que deixara Camus e Esdras, torcendo para que estivesse tudo bem. Andando alguns segundos entre as árvores, pensei ter me perdido, mas de repente ouvi um gemido que inconfundivelmente era de Camus, seguido pela risada inconfundível de Hardur.

– E agora, pentelho, ainda tem a pretensão de me dar uma lição? Isso foi tudo idéia daquele seu amiguinho Abaman, não é? – ouvi novamente sua risada, ecoada pelo riso de Bête, que foi o primeiro que avistei. Coloquei-me atrás do tronco de um salgueiro e vi Bête e Hardur cercando Camus pelos lados, enquanto ele recuava lentamente, ainda com seu bastão na mão, mas com um hematoma no rosto, provavelmente causado por um dos paus que Hardur e Bête seguravam. Dois contra um não era uma luta nada justa, e senti uma raiva profunda quando armei minha funda e estiquei o elástico. – Onde está ele, hein? Onde está seu amigo? Certamente fugiu de medo do cachorro, não é? Se é que já não foi pego e feito em pedaços, Stripador quando sai de casa fica muito, muito feroz.

Hardur deu uma nova investida com seu bastão, e Camus como um espadachim de verdade bloqueou o ataque com o seu próprio, mas Bête veio com uma estocada do outro lado. Ágil como um gato, Camus rodou o corpo e golpeou Bête nas costas, enquanto Hardur atacava uma segunda vez tentando acertar meu amigo na cabeça. Camus se abaixou no momento exato e saltou para trás, e eu atirei.

Mirei na cabeça de Hardur, mas minha mira não era boa e acertei na mão que segurava o porrete, fazendo-o soltar a arma. Camus raciocinou rápido e com um golpe tão forte que me embrulhou o estômago na hora só de ver, acertou o lado do bastão na barriga de Hardur, fazendo-o cair curvado no chão. Imediatamente se virou para Bête e tentou atacá-lo, mas o filho da mãe desviou e começou a correr para longe. Camus já ia pegá-lo quando o maldito arremessou para trás seu próprio bastão, acertando meu amigo no caminho. Atirei minha segunda pedra e errei, e Bête agora já desaparecera no cerrado da floresta.

– Eu ia derrotá-los sozinho – disse Camus, ao me ver chegando. Estava com um grande sorriso no rosto, que se alargou ainda mais quando nos aproximamos de Hardur, que ainda estava contorcido no chão, respirando com dificuldade. – Veja que peixão nós pegamos. Sim, pentelho, eu ainda pretendo te dar uma lição – deu um chute na costela de Hardur, que o fez gemer de dor.

– Cadê o Esdras? – perguntei, preocupado.

– Ah, ele caiu da árvore. Dê uma olhada ali.

Dirigi-me à arvore em que ele subira e o vi desacordado sobre as folhagens. Mexi com ele, batendo de leve em seu rosto, o que o fez acordar, para meu alívio.

– Quê?! Onde estou? – disse ele, confuso.

– Em Nan Elmoth com Camus e eu. Acabamos de pegar o Hardur.

– Ah, que ótimo – ajudei-o a se levantar, e ele parecia meio tonto. – Acho que desmaiei…

– Sim, ao que parece você caiu da árvore e… ei, sua cabeça está sangrando!

– Está?! – ele levou a mão à lateral esquerda da cabeça, onde havia um bolo de cabelo misturado com sangue seco. – Acho que tomei uma pedrada.

– Mas está tudo bem? Tá enxergando normal?

– Só dói um bocado, ai. Vou ficar bem. Agora me contem como foi isso – disse ele, apontando Hardur, chorando deitado no chão, ainda curvado sobre a barriga.

– Foi uma bela luta. Nós fizemos isso com o Hardur e botamos o Bête pra correr!

– Mas os maiores méritos são meus. Eu os enfrentei sozinho enquanto Adam não chegava – disse Camus, orgulhoso.

– Você estava apanhando pra eles! Foi só eu desarmar o Hardur pra você que aí ficou fácil.

– Ótimo, ótimo. Acho que agora nós temos que terminar logo o plano, antes que anoiteça. Minha cabeça dói – interrompeu Esdras, ainda segurando o ferimento, com uma careta de dor.

– Calma, amigo – respondi, olhando para Hardur no chão. – É agora que a diversão começa!

– Por falar nisso, onde está Amélia, Adam? E como você se livrou de Stripa? – perguntou Camus.

– Ah, isso… apareceu um homem estranho de armadura, e expulsou o cachorro. Amélia eu soltei.

– Um homem?! – perguntaram os dois, ao mesmo tempo. Hardur se mexeu no chão e agarrou o pé de Camus, que deu-lhe em troca um chute no queixo.

– Acho que ele está com pressa também – disse eu, dando um chute no traseiro de Hardur, que gritou de dor. – Vejam como ele chora.

– Podemos usar a tinta então? – perguntou Camus, animado. – Já que não há mais ovelha…

– Pode ser – respondi, ainda um pouco contrariado –, se não há outro jeito…

Tiramos à força as roupas de Hardur. Ele se debatia e tentava nos conter, mas ganhava mais chutes e sopapos nas pernas e no rosto. Quando estava totalmente despido e Camus e eu o segurávamos deitado para que Esdras amarrasse seus pulsos, me acertou de repente um cuspe no olho. Eu o soltei por um segundo para esfregar o local atingido, e ele aproveitou a deixa para me acertar uma joelhada no peito. Camus não conseguiu segurá-lo e ele se levantou, olhando para os lados preparando-se para correr.

Mas fomos mais rápidos e já o cercávamos novamente com nossos porretes na mão. Ele nos olhou assustado, e correu na direção de Esdras, tentando atropelá-lo no caminho. Mas Esdras não era bobo e pulou para o lado, deixando-o passar e em seguida acertando-lhe uma paulada nas costas. Hardur cambaleou mas não caiu, e por um momento eu cheguei a admirar a força do garoto. Tornou a correr para o mato, e Esdras e Camus já ia segui-lo quando eu os interrompi:

– Deixem-no comigo! – ele estava na minha mira, estiquei a funda ao máximo e atirei. Acertei em cheio no meio na cabeça, e Hardur caiu. Camus e Esdras olharam para mim assustados, e até eu temi ter acabado de matar meu vizinho. Corremos até ele, mas ele estava vivíssimo, embora não conseguisse mais sequer se mexer de tanta dor. Viramos-lhe e o arrastamos de volta até a clareira, onde a tinta preta o aguardava. Ele olhou para mim mais uma vez e encheu a boca de cuspe mais uma vez.

– Não ouse – ergui o bastão em ameaça, e ele cuspiu para o lado, tornando a me encarar.

– Você me paga, preto de uma figa – sibilou ele.

Sem pensar, chutei-lhe com força entre as pernas. Ele deu um grito tão alto que deve ter chegado até os gêmeos Gleen em Balan. Contorceu-se todo e tornou a chorar, e nós três começamos a rir sem parar.

– Isso é pra você aprender a não cuspir e a ficar calado – disse eu, em meio aos risos. – E preto de uma figa é você.

Dizendo isso, joguei minha cota de tinta sobre o corpo nu de Hardur. Sabíamos que aquilo ia demorar semanas pra sair, e não queríamos estar em sua pele.

Naquela noite cada um de nós apanhou muito ao chegar em casa, mas estávamos satisfeitos com a vingança e a tarde nos proporcionara uma bela diversão.

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Pegibin Bolger

Cola, na antiguidade? Bem, talvez uma mistura pegajosa de ervas. Acho “válido”. HE!

Mas se esse homem era realmente Eöl, só queria avisar que ele não é mau (e não há chances de ser ele mesmo, pois ele já morreu. LOL)

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