O Livro Negro de Arda – Parte 2 Capí­tulo 7

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Escrito por moriel
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A Valinor/Lothlórien tem a honra de dar continuidade à publicação de O
Livro Negro de Arda, publicando o sétimo capítulo da segunda parte, chamado SOBRE OS CAVALOS ALADOS. Leia mais sobre esta obra aqui na Valinor e confira os demais capítulos já publicados, no índice da obra
 
 

PARTE SEGUNDA. MANDARAM ESQUECER
SOBRE OS CAVALOS ALADOS. ANO 15 DO ACORDAR DOS ELFOS

A noite de outono estava viva. Ouvindo cuidadosamente os passos do tempo – o som das gotas de orvalho caindo ritmicamente dos galhos, – ela estava imóvel na esperança de algo que só ela conhecia. A Noite ouvia o Tempo. E dois ouviam a noite. Lentamente, a eterna neblina do vale de Gellome escorria em tiras prateadas. Na primavera, no verão e no outono, as ervas aqui pareciam de prata, como se estivessem cobertas de geada; só na primavera aqui floresciam as florestrelas que cintilam como feitiço primaveril nas coroas do Dia da Prata… O Maia sorriu. Agora, as estrelas floresciam no céu, apesar do luar, era possível ver os traçados familiares das constelações, e, de tempos em tempos, relâmpagos brancos das estrelas cadentes riscavam o céu. “Provavelmente, elas também agora se transformarão em flores…” O Maia olhava para o céu, sentindo como o encanto mágico da noite toma conta dele. Parecia que a noite foi e será eterna, e ele continuará assim dentro dela – eternamente olhando para o céu estrelado. Lá em cima voava o vento, escorregavam as leves nuvens semitransparentes, de vez em quando ocultando com o véu escuro os fios preciosos das constelações.

Um vento repentino jogou para trás, num redemoinho, os cabelos do Maia – prateados no luar.

– Sobre o que você está pensando? – perguntou Melkor em voz baixa, tocando o ombro dele. Gorthaur estremeceu, como se acordasse de um sonho:

– Eu vi… Ou me pareceu? – ele falou quase num sussurro. – Essas nuvens… provavelmente elas me enganaram… Sabe, me pareceu de repente que ali, no céu, está um cavalo. Uma nuvem, coagulo da noite de lua cheia do outono – o corpo dele, as asas – o vento do céu, a crina de neblina e riscos das estrelas cadentes, olhos – o reflexo da lua numa lagoa noturna… Eu ouvi o vôo dele, a respiração dele é como o vento de outono… Mestre, como eu gostaria que isso não fosse somente uma visão…

– Isso não é mais uma visão. Veja!

Melkor apontou para algum lugar na neblina – e então, deslizando silenciosamente sobre a terra, surgiu o cavalo alado, aproximou-se, pisando inaudivelmente, e parou perto deles, olhando torto com o olho de estrela. O Maia sorriu:

– Foi você que fez isso? Novamente um presente?

– Não, – Melkor estava sério. – Foi você mesmo. Simplesmente – teve muita vontade…

Gorthaur já estava entrando, mas Neere o impediu.

– O Senhor pediu para não perturbar, – estrondeou Balrog.

– E o que houve?

– Disse – ele precisa pensar. Você me desculpe, Gor…

Maia acomodou-se num canto com um suspiro:

– Vou esperar. Preciso pedir uns conselhos ao Mestre…

Ficaram calados.

– Não entendo o que está acontecendo com ele, – reclamou Gorthaur. – Não duvido, estes pequenos são uma verdadeira maravilha… Mas mesmo assim: sempre estão o rodeando. E, parece, ele está feliz. Logo, vejo, não poderemos nos esconder deles nem no castelo!

– Pois é, – falou o Balrog com uma voz de baixo. – Ontem mesmo apareceu aqui uma pequenina. O que você, pergunto, quer? E ela me responde assim seriamente: tenho, tipo, um negócio importante com o Mestre. E – passa correndo por mim! Nem deu para abrir a boca… Vai, penso, se o negócio é importante, talvez precisem de mim também. Vou entrando direto para a oficina: ele fazia lá essa coisa esquisita de madeira… sabe, um deles ainda toca numa igual…

– Alaúde, – ajudou Gorthaur.

– Certinho – alaúde. Trabalho fino, é claro. Só o Senhor, mal viu essa pequenina, começou a sorrir, botou tudo de lado na mesma hora… Negocio importante! Ela lhe trouxe umas frutas!

O Balrog calou-se depois da fala descomunalmente longa.

– Vi, – respondeu Gorthaur, – os morangos. Eu entro – eles estão lá na oficina, sentados, e eu nem acreditei nos meus ouvidos – o Mestre está cantando algo para ela. Bem baixinho… – Maia sorriu involuntariamente para a lembrança: a voz de Melkor era muito bonita. – E ele que não recusa quase nada às crianças. Estou certo: se amanhã alguém quiser voar de dragão, o Mestre vai permitir.

– E o dragão? – o Balrog riu.

– Não, eu vou falar tudo para ele. Basta, – o Maia levantou-se resoluto, mas nesse momento Melkor finalmente apareceu na porta. O rosto absolutamente feliz, os olhos brilham:

– Sabe, Discípulo, eu entendi qual é o conto de fadas que eu contarei a eles.

– Oh, Mestre… – Gorthaur sorriu.

Encontrar um quadro semelhante era o que Gorthaur menos esperava. Ele sabia que Melkor é imprevisível; mas aquilo que ele viu agora não correspondia até tal ponto à figura do calmo e sábio Mestre, que Maia ficou perplexo. Eles… brincavam de batalha de neve! Parece que Melkor levou mais do que os outros: os cabelos dele estavam cobertos de neve, e havia neve grudada em toda a capa. “Uma maneira peculiar de expressar o amor pelo Mestre!” Se bem que aquilo que estava acontecendo parecia agradar ao próprio Vala. Ele ria – abertamente e com alegria, como somente crianças sabem rir; atirou uma bola de neve para o ar, e ela se desfez em estrelas cintilantes, iluminando com uma luz suave os rostos rosados pela brincadeira dos Elleri.

– Mestre! – o chamou Gorthaur.

Aquele se virou e foi em direção ao Discípulo, tirando, ao andar, a neve que grudou na roupa.

– O que você está fazendo? Para que?

Melkor, desviando –por um triz – de uma bola de neve certeira atirada pelo Artífice, respondeu:

– Para compreender os homens, é preciso dividir tudo com eles: e dor, e alegria, e trabalho, e diversão. Não é assim, Discípulo?

– Sim, Mestre, mas mesmo assim… eles são simplesmente crianças, e você…

Melkor riu com um riso jovem, feliz:

– E por que não? Fale honestamente: você mesmo não quer tentar?

Gorthaur se perturbou:

– Mas você é o Mestre… Como eles… Como eu…

A bola de neve que o acertou no ombro, impediu o Maia de terminar a frase.

Gorthaur abaixou-se, pegou um punhado de neve na mão; uma segunda bola acertou a testa dele.

– Se cuidem então! Vou mostrar!.. – urrou ele com uma raiva fingida. – Eu estou aqui a negócios, e é com isso aí que vocês me recebem!

O Artífice não conseguiu desviar.

– E isso é de mim! – gritou Melkor, e a bola de neve, ao tocar o peito do Contador de Histórias, virou um pássaro branco.

Gorthaur, virando o rosto coberto de neve para Melkor – o Artífice Geleon não ficou devendo – sugeriu, com um sorriso largo:

– E então, Mestre, vamos mostrar a eles de que nos somos capazes?

Melkor fez um sim com a cabeça, fazendo uma pirueta para desviar de mais uma porção de neve.

Nas mãos do Menestrel, a bola de neve de repente se transformou num pequeno arminho. O animalzinho parou como uma estatua na palma do elfo, brilhando com contas negras dos olhos, espirrou quando flocos de neve caíram em cima dele e se escondeu dentro casaco de pele do Menestrel.

– Está se divertindo, Mestre? – riu Gorthaur.

…À noite, todos se reuniram na casa do Mago – aquecer-se em frente ao fogo e secar as roupas molhadas. Ouviam o Menestrel, bebiam vinho quente com especiarias. Melkor, estudando o cálice de ônix chapeado com prata – presente do Artífice – falava com Gorthaur a meia voz:

– Claro, um simples feitiço é suficiente para expulsar o frio, secar a roupa; os Imortais podem simplesmente não sentir frio. Mas não é mais agradável aquecer-se perto do fogo na roda dos amigos, beber um bom vinho – mesmo que, em essência, você nem tenha necessidade disso – simplesmente ouvir as canções e puxar conversa?

– Você está certo, Mestre, – respondeu o Maia, pensativo. – E eu não consigo compreender: por quê em Valimar o chamam de Inimigo? Por quê dizem que você desconhece o bem, que não é capaz de criar? Perdoe se as minhas palavras te ofenderam… Mas não é mais fácil viver se você compreende os outros, diferentes de você mesmo? Se não tem medo?

– Eu entendi o que você quis dizer. O mal está no fato deles não quererem entender. Claro que não lhe contaram que eu lhes ofereci uma aliança?

– Não…

– Não é de admirar, – Melkor riu tristemente. – O que o Inimigo pode fazer de bom? Valar temem desobedecer a vontade de Eru. E a aliança comigo significa exatamente isso. E, para que ninguém não possa nem mesmo conceber algo assim, me nomeiam inimigo e apóstata. Significa que não pode haver nada de bom nem nos meus pensamentos, nem nos meus feitos.

– Mas isso não é assim!

– E você, pode considerar um inimigo aquele que sabe amar, como você o sabe; que quer ver o mundo belo, como você o quer; que pode sentir e pensar, como você o faz; que se alegra igualmente com o dom de criar? Aquele que, em essência, deseja o mesmo que você?

– Que inimigo seria ele, então?

– Nisso é que está o problema, – Melkor tomou um gole de vinho.

– Sabe, – Gorthaur disse baixo depois de um breve silêncio, – eu estou tentando imaginar Aulë brincando de batalha de neve com os seus discípulos.

– E então? – interessou-se Vala.

– Não dá, – suspirou o Maia. – Ele não se rebaixaria. Provavelmente, nunca viria na cabeça dele transformar uma bola de neve num pássaro. Porque isso não tem nenhuma utilidade. É simplesmente bonito, interessante, divertido… E ele é o Grande Ferreiro, e por isso deve criar somente o grande e o útil. Para maior glória do Único. E disso – que glória? Somente… Aquece o coração, será? Não sei, como dizer…

Melkor suspirou:

– Um dia eu te contarei, o que fez Aulë ficar assim…

– Andarilho!

O jovem virou-se.

– Ouça, Andarilho, o que aconteceu com seus olhos?

Aquele ficou perplexo: aparentemente, nada de especial… O Pintor riu baixo:

– Os seus olhos estão dourados…

– O que? – não entendeu Andarilho.

– Dourados como mel, como o sol nascente. Veja você mesmo!

O Andarilho sorriu:

– E não há nada de engraçado. E não há nada para se surpreender. Olha os seus – são azuis, os do Mago – verdes, como folhas no sol…

– Verdade? – subitamente, o Pintor ficou sério. – Ouça, e por quê?

– Mas não era sempre assim?

– Não… Eram – cinzas, os meus, os seus, os dele… Não consigo entender. Talvez, o Mestre responderá?

– Antes não tínhamos tempo para reparar nisso…

– Nos só agora percebemos…

– Talvez, você sabe? Os estão se tornando diferentes, e os cabelos… Porque?

O Vala sorriu. Quão diferentes eles ficaram… Mechas desobedientes de cabelos ondulados dourados escuros caíam em desordem sobre os ombros do Andarilho, ele é todo assim claro, límpido e fino, como um raio de luz. O olhar do Pintor é tenaz e aguçado, mas os olhos – azuis, aveludados, como safira escura, e os cabelos negros estão presos por uma tira fina de couro. Ele aparenta ser mais velho: o Andarilho, comparado com ele, é quase um menino, mesmo que os dois sejam dos Primeiros. Mas todos sabem que faz tempo que o Artífice Orein de olhos azuis perde e a coragem, e a confiança, e a severidade, basta aparecer por perto a pequenina e delicada Halie – hábil bordadeira e tecelã.

– Por quê, Mestre?

– Simplesmente – vocês são Homens. E os homens são todos diferentes, não se parecem um com o outro, como folhas de uma arvore, como estrelas…

“Vocês são Homens. Assim como eu os via, quando ouvia o Canto de Ëa. Só que pela vontade de Eru eles serão tão pouco duradouros como faíscas, e serei eu capaz de devolver-lhes aquilo que ele tomou? Ou a dádiva da liberdade se tornará para eles um castigo e um mal? Será que nisso Eru será o mais forte?”

Foi uma conversa inesperada.

– Conte, Gorthaur, e os outros Criadores do Mundo, aqueles que vivem em Valinor, eles são bonitos?

Ele ficou pensando por muito tempo, pela primeira vez descobrindo, surpreso, que agora os rostos perfeitos dos Valar não lhe parecem nada belos. Nenhum traço errado, como se alguém tivesse como meta a criação de uma beleza perfeita, e conseguiu-o, mas na corrida atrás da clareza e exatidão das linhas desapareceu algo principal, tão importante como impossível de capturar, e nestes rostos não havia vida. Todos os Valar eram diferentes e – semelhantes, mesmo se distinguindo pelos traços dos rostos e alturas, cor dos olhos e dos cabelos. Alias, quase todos…

Não, aqueles que ele via ao redor de si agora eram infinitamente mais belos. E o sonhador moreno de olhos dourados, o Andarilho, e o Armeiro, zombeteiro, de ombros largos, Gellor-Mago, sempre pensativo e concentrado, e a impetuosa Allua, e quase majestosa Onnele Cyolla…

– E as Valier?

Pensando bem, era possível chamar de belas somente duas: Nienna e Este. Justamente porque os rostos delas foram marcados por algum sentimento. Mas a obra prima de acabamento, a perfeita Rainha do Mundo – qual dos Homens a chamará de bela?

– E o Rei… o irmão mais novo do Mestre?

Manwë. Estranho: enormes olhos brilhantes e pestanas compridas não estragam em nada o irmão mais velho, e os traços do mais novo são quase efeminados – por quê? Novamente algo impossível de capturar…

– Ouça, Gorthaur… eu pensei só agora… – O Andarilho parecia envergonhado. – Qual é a cor dos olhos do Mestre?

E verdade – qual? Cinza-claros? Verdes? Azuis? Seria possível definir a cor das estrelas?.. Vinham-lhe na cabeça somente comparações: céu, mar, estrelas… Mas o céu também não é sempre azul, as águas do mar nem sempre parecem verdes… Relâmpago?.. Gelo?.. Aço?..

– Não sei. Eu não sei.

Eles eram diferentes, os Discípulos de Melkor, Elleri Ache. Havia aqueles em cujas mãos o metal começava a cantar e as gemas ganhavam vida. Havia aqueles que compreendiam a língua dos animais e dos pássaros, das arvores e das ervas, e aqueles que sabiam ler o Livro da Noite… E aquele que sabia compor canções melhor que todos, chamava-se – Menestrel Escuro. O sinal dele era a estrela alada de nove pontas: aperfeiçoamento da alma, o caminho do coração alado. As baladas dele pareciam e não pareciam aquelas que o Maia dos olhos dourados cantava; talvez porque nelas vivia uma tristeza desconhecida. E os olhos daqueles que o ouviam se enevoavam. E aquele que via os sinais do Escuro encontrou um meio de anotar os pensamentos. Ele criou os sinais tay-an, que poderiam ser escritos no pergaminho com pena e com pincel, e aqueles que poderiam ser gravados nas pedras e talhadas na madeira. E entre os Elfos do Escuro, ele levava o nome de Amigo dos Livros.

E aquele que ouvia os cantos da terra, as contava em forma de contos de fadas – estranhos e sábios, alegres e tristes. Assim dizia ele: “Nossos filhos amarão estes contos; quando se começa a descobrir o mundo, ele parece cheio de maravilhas e enigmas – que seja assim naquelas histórias que lhes serão contadas…” Melkor sorria, ouvindo-o; e o chamaram de Contador de Histórias.

Eles eram diferentes, mas semelhantes em uma coisa: todos eles consideravam-se Homens, pois, mesmo que fossem inicialmente Elfos, escolheram o caminho dos Mortais; mas a vida deles era tão longa quanto a dos Primeiros Nascidos, e o cansaço não os tocava – quem teria tempo para se cansar quando há, ao redor, tanto desconhecido, novo e belo? E o mundo espera o toque das suas mãos, e alegra-se com você, e o seu coração está aberto a ele…

E o Mestre alegrava-se vendo como aumenta a sabedoria e o entendimento dos discípulos dele.

E a paz reinava em Arta. Mas ela durou pouco.

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