O Conto de Lustion – Primeiro Relato

Foto do autor
Escrito por wquert

Sinopse: Esse é o primeiro relato da vida de Lustion, de autoria anônima e encontrado nas páginas do Parma Vanwë Nyaron, O Livro dos Contos Perdidos.

Classificação: 12 anos

Disclaimer: Este é um trabalho de ficção, sem fins lucrativos, baseado na obra de Tolkien.


 

 

Capítulo I: Do nascimento e da resolução de Lustion

Grande foi a felicidade dos Noldor quando se deu o nascimento de Lustion. Naquela época as duas árvores ainda vingavam sobre Ezellohar, e a felicidade dos Eldar era impoluta. Recebeu esse nome, que significa “vazio”, pois a ele seus olhos assimilavam-se, profundos e escuros, parecendo absorver tudo ao seu redor, e ao mesmo tempo transparecendo a grandiosidade de seu espírito. E seu pai Meldan era querido por muitos, pois era um dos grandes senhores dos Noldor em seu tempo, e o nascimento de seu filho foi jubilado por muitos.

Porém, quando ainda era muito novo, Lustion presenciou o mais negro de todos os fatos daquele tempo. Viu Melkor e Ungoliant prostrarem Valinor sob um véu de sombras nunca antes visto, matando as Duas Árvores. Aquelas imagens jamais se apagariam de sua memória, pois amava muito as Duas Árvores, que exerciam nele enorme fascínio e admiração. Então, quando Fëanor filho de Finwë proferiu seu juramento, Meldan decidiu com ele seguir. Mas seu coração estava dúbio e pesaroso por ter que se separar daquele que ele mais estimava, seu filho. E apesar de tudo, não poderia deixar de ajudar àquele que agora era senhor de seu povo, e pelo qual sentia muita compaixão pelas desgraças sofridas. Assim, Lustion despediu-se de seu pai, sem saber se algum dia retornaria a vê-lo.

De fato, os anos passaram-se depressa, e agora já brilhavam tanto Anar quanto Isil sobre o firmamento, e as Árvores eram uma triste lembrança de um passado que não retornaria. Lustion desenvolvera de modo majestoso seus talentos inatos como artífice e navegador, e tornou-se admirado e querido por muitos. Revelava-se nele um espírito incansável e ardente, tal como o líder de seu povo, que perecera além Mar. E sua mente começava a inquietar-se mais do que o comum, pensando em seu pai, e ansiando conhecer novas terras, pois era ávido por novidades e o ócio nunca lhe seduzira.

De seu pai não tivera mais notícias, e sabendo do que ocorrera no episódio do Fratricídio de Alqualondë, julgou que seu pai estava ligado a um negro destino, que acompanhava todos àqueles que partiram com Fëanor no dia de seu nefasto juramento. E seu coração desejou ir em busca de seu pai, que ele amava mais que qualquer coisa. Mas ele não teria a permissão dos Valar para abandonar a Terra  Abençoada, tal como seus antepassados fizeram. Porém mesmo assim ele tentou conseguir tal permissão, indo falar com Manwë e Varda em Ilmarin. E Manwe lhe negou, conforme previsto, tal pedido:

– Ó Lustion filho de Meldan, sabemos que o destino de seu pai é negro, mas não permita que tal destino acometa-se sobre ti também. Pois foi decisão dele seguir esse caminho, e ele não permitiria que seu amado filho partilhasse de tal sina.
– E que espécie de filho poderei me considerar, sem nem ao menos tentar salvar àquele a quem mais estimo nesse mundo? Não serei feliz de qualquer modo vivendo aqui, sabendo que nesse instante meu pai pode estar passando por momentos difíceis, em alguma missão desesperada e derradeira. Infelizmente eu terei que partir, com ou sem vossa permissão.
– Se assim diz, assim será. Partilhará das dores e sofrimentos daqueles que outrora abandonaram este reino, e antes do final te arrependerás de ter contrariado minha decisão e meus conselhos. Pois, se decides partir atrás daqueles que se dispuseram a seguir Fëanor, como um deles será considerado, e sobre ti a mesma sina pesará. Meu coração se entristece ao saber de tua escolha, mas não posso impedi-lo à força.
– Como no passado foi dito: tentarei, através do sofrimento, conquistar a felicidade – disse por final Lustion.

E Manwë nada mais disse. Ele sabia que nada agora impediria a partida de Lustion. E este construiu um barco para si, a fim de cruzar a longa distância que o separava das terras mortais. Branco ele era, com velas douradas, e tão logo Lustion partiu, percebeu que os Valar não lhe impediriam de fato, já que o vento soprava favoravelmente, e o mar não se agitava mais do que o suficiente. Ulmo e Ossë não teriam interesse em impedir aquela pequena embarcação de atingir as costas de Beleriand, seguindo seu destino, qual fosse ele.

{mospagebreak}

Capítulo II: De Raiva e Pesar

Quando por fim Lustion chegou às praias de Beleriand, adentrando-se até chegar por fim em Cirith Ninniach, ele percebeu que sua missão seria mais complicada do que lhe parecera de início. Não fazia idéia de onde poderia estar seu pai, ou como chegar a tal lugar, tampouco sabia onde poderia encontrar alguém que pudesse lhe informar qualquer coisa a respeito. E assim ele começou a andar por Hithlum, e por acaso, ou talvez destino, ou mesmo ambos, ele não demorou a encontrar alguém. Esta foi a primeira vez, mas certamente não última, que Lustion se deparou com representantes dos Atani, O Segundo Povo. Soube com eles que talvez pudesse encontrar quem procurava adentrando mais em Hithlum, até chegar ao Lago Mithrim, onde habitavam a maioria dos noldorim naquela época.

Percebeu que a terra estava devastada, como que castigada por algum mal poderoso e impiedoso. A desolação dessas terras em nada se comparava à beleza do reino que ele abandonara. E, ao chegar em Mithrim deparou-se finalmente com àqueles a quem procurava. Mas não reconheceu entre eles nenhum dos que ele vira partir de Valinor, e estranhou o escasso número de remanescentes Noldor ali. Assim soube que tanto Fëanor quanto Fingolfin já haviam perecido, e que eles agora abandonavam o Lago para juntar-se àqueles que se reuniam para combater Morgoth. Logo supôs que seu pai havia partido para a batalha, pois essa seria sem dúvida sua atitude. E seus novos companheiros, à simples menção do nome de Meldan, assentiram, sentindo-se honrados e felizes em conhecer o filho deste, de quem ele tanto falava e se orgulhava. Mas estavam pasmos agora, pois pareciam que viam um fantasma na pessoa de Lustion. Intrigado, ele lhes perguntou:

-Por que me olham dessa maneira? Por acaso eu lhes recordo alguma má lembrança?
-Ó filho de Meldan. Se não soubéssemos que você é filho dele, juraríamos que fostes a reencarnação de Fëanor. Pois tanto na aparência, quanto no ardor do espírito você é muito semelhante a ele. Praticamente igual eu poderia dizer, e vejo isso através de seus olhos. Mas não é possível que você seja ele, de qualquer maneira.
– De fato não s
ou ele – disse Lustion – mas não me incomodo com tal comparação. Pois, apesar de tudo, Fëanor ainda é digno de minha admiração. Assim como ele, o que eu mais amo nesse mundo é meu pai, e foi por ele que vim até aqui.

 Então deles recebeu o convite para acompanhá-los em marcha rumo às Thangorodrim. Recebeu uma espada, dado que nenhuma arma trouxera do Reino Abençoado, mas negou qualquer proteção, por mais leve cota ou escudo que fosse, pois não se sentia bem os usando, preferindo usar apenas as roupas de seu corpo, com as quais tinha maior liberdade de movimentos. Armaduras lhe sufocavam, e escudos lhe diminuíam a destreza. Partiram então, e eis que chegaram aos pés das Thangorodrim exatamente no ímpeto inicial da batalha, prontos para ajudar as demais hostes que ali estavam lutando contra os exércitos de Morgoth. E Lustion revelou-se um guerreiro incrivelmente hábil no uso da espada, como era de se prever. O desejo de rever seu pai fazia com que ele não deixasse vivo orc ou troll que cruzasse seu caminho, procurando por todos os lados por muito tempo, tanto quanto fosse possível. De fato, o poder e a vastidão dos exércitos de Morgoth agora faziam-se claros, e a batalha tomava um rumo decadente.

Mas, em meio a tudo, finalmente Lustion avistou a figura inconfundível de seu pai, alto e imponente, e este também o viu e reconheceu o filho que ele deixara do outro lado do Mar. Apesar da tristeza da batalha, a alegria não podia ser maior naquele momento, e Lustion, de súbito, avançou em direção a seu pai, que estava praticamente cercado de inimigos. E o pavor o dominou quando viu que uma criatura atroz aproximava-se repentinamente de seu pai, flanqueando-o. Era um Balrog, saído das profundezas das Thangorodrim. Sua carne ardia em chamas, e o pavor de sua aproximação fazia com que mesmo seus aliados se afastassem, e agora a enorme lâmina flamejante em sua mão descia contra Meldan. A potência do golpe foi tal que escudo e elmo partiram-se, na tentativa de aparar a lâmina descendente. Ainda assim a cabeça de Meldan fora seriamente ferida, e o sangue vertia em meio a seus longos cabelos castanhos, tingindo-os de escarlate E o Balrog pisou em seu pescoço, e quando ia desferir o golpe fatal, Lustion atirou-se com sua espada contra ele, jogando-o de lado. Novamente o valarauko usou de sua lâmina, e lançou um golpe usando toda sua força contra Lustion. Um estrondo ressoou. A espada de Lustion estava partida e seu peito ferido. Imagens seqüenciais lhe vinham à mente. Viu o rosto de seu pai ensangüentado, e a felicidade pela qual procurara esvair-se justamente quando a alcançara.

E a raiva tomou seu ser por completo. Reunindo toda sua força, pegou do chão a espada de seu pai, Amaurëa, a aurora, que mesmo após ceifar muitos inimigos, reluzia de modo assombroso, tal como a manhã de um novo dia que surge após a escuridão da vigília da noite. Empunhando-a, desferiu sucessivos golpes contra o Balrog que não conseguia reagir à tamanha fúria. Os orcs ao redor corriam, assustados ante a presença e a ira de Lustion. Por fim, ele acertou o Balrog com um golpe profundo, enterrando nele a espada de seu pai e derrotando-o. Voltou até seu pai que guardara suas últimas palavras, com o fôlego que lhe restara:

-“Vai Lustion, meu filho. O tempo urge, e a batalha te chama. És motivo de meu orgulho, e apesar de deixar-te agora, sinto que seus feitos trarão glória maior do que a desgraça dessa guerra toda. Teu fim não é aqui nem agora, mas o meu sim. Use o rancor que toma teu coração contra teus inimigos, e apenas contra eles. Seu espírito queima, mas tu irás ter o domínio de teus atos, e então, no final de tudo, nos veremos novamente”.

 Ali teria ficado Lustion, prostrado aos pés de seu pai derramando suas lágrimas, mas o curso da batalha não permitia. Com raiva e sede de vingança estava Lustion, e seus olhos agora brilhavam vermelhos como o fogo, transparecendo seu estado de espírito. Nenhum oponente conseguia fitá-lo nos olhos, e por muitas vezes cantou Amaurëa empunhada por Lustion, antes que o final da batalha se desse.

Mesmo dominado pela ira, um resquício de lucidez ainda sobrara, e então Lustion divisou em meio ao turbilhão da batalha, alguém que lutava com grande fervor, parecendo lutar por uma causa maior, assim como acontecia com ele próprio. De fato, em um momento em que ele acabara de abrir um grande rombo entre um grupo de orcs, ele conseguiu aproximar-se daquele que ele percebia agora também ser um eldar. E então, o guerreiro, que também parecia admirado pelo desempenho de Lustion, disse:

           – Quem és, guerreiro que põe a alma na espada e que tão grande ajuda veio prestar em batalha?
           – Chamo-me Lustion, noldo exilado que vem às pressas auxiliar contra o mal que acomete esta terra.  E quanto a você, com toda essa imponência, mantendo o destemor em hora tão sombria?
A batalha parecia estática para ambos, que agora pareciam não ligar para os perigos que os cercavam.
            – Sou Glaurion, e muito me alegro em encontrar alguém como você em um momento como esse. De grande valia será sua lâmina, e espero que possamos nos encontrar novamente, em um momento melhor, se pudermos sobreviver, para contarmos nossas histórias.
– Assim também espero, e assim creio que será. Pois mesmo que não possamos manter nossas vidas, haveremos de nos reencontrar em outro lugar, muito além daqui, por maior que possa ser a sombra que paira sobre nós.

E, de fato, negro foi o desfecho, pois a traição dos homens decretou a vitória de Morgoth, nessa que seria chamada de Nirnaeth Arnoediad, a Batalha das Lágrimas Incontáveis, nome apropriado aos acontecimentos nela decorridos. E ao final Lustion acabou sendo feito escravo de Morgoth, levado a trabalhar em suas minas em eterna servidão. Antes disso, porém, entregou Amaurëa a um elfo que debandava da batalha, antes que fosse capturado, e no qual ele acreditou haver capacidade suficiente para sobreviver e lhe dar esperanças de um dia reaver a espada que fora de seu pai.

Tornando-se escravo, labutou ao lado de muitos que partilharam o mesmo destino. Conseguiu certa fama ali, destacando-se por sua perseverança e altivez de espírito. E novamente eram feitas comparações com Fëanor. Aparentemente talvez não houvesse nenhum problema quanto a isso, mas à simples menção desse nome o sangue de Melkor gelava, já que ele não podia sequer lembrar daquele elfo pelo qual ele devotou seu maior ódio, e pelo qual possuía tanta inveja e temor. Assim, Lustion acabou sendo torturado e humilhado pelo próprio Morgoth, mas ele não pronunciou nem sequer uma palavra, permanecendo calado, pois seu ódio por Melkor era tanto, que ele guardaria todas as suas forças para vingar seu pai, não sendo necessário desperdiçar palavras em tal situação. Ofensas e torturas jamais poderiam fazê-lo
sofrer como o fez a morte de seu pai.

E durante anos permaneceu na condição de escravo, e ali nos calabouços ele conheceu Fëaruin Amanon, um dos poucos dos quais ele se lembrava de ter visto partindo de Valinor com seu pai, e que viu em Lustion alguém muito valoroso. Certo dia, uma oportunidade de fuga surgiu, e ele, junto de Fëaruin, Glaurion, e alguns outros elfos, conseguiram escapar, atacando um grupo de orcs que os vigiavam desatentos. E, alguns dias após a fuga, acabaram por encontrar um grupo de eldar. Entre eles, ao que parecia, haviam muitos que já conheciam Fëaruin, e então Lustion pôde perceber a importância daquele que ele agora sabia ser um dos príncipes dos Noldor. E, por enorme coincidência e alegria, ele viu entre esse grupo o elfo ao qual ele confiara Amaurëa. E este prontamente veio lhe entregar a espada:

– Por todo este tempo guardei tua espada, pois sabia que um dia nos reencontraríamos, e que eu iria poder devolvê-la em mãos. Pois percebi em você uma força que não pode ser mantida em cativeiro por muito tempo, nem segurada de qualquer maneira.
– Eu lhe agradeço imensamente! Esta espada pertencia a meu pai, que pereceu na batalha. Não imaginas o quão feliz me sinto por poder reavê-la. Tenho uma enorme dívida para contigo agora.
– A tua gratidão já me é mais do que suficiente.

{mospagebreak}

Capítulo III: De uma nova vida

Então Lustion decidiu partir com eles para o Oeste, além das terras de Beleriand, já que agora ele não tinha mais nada nem ninguém nessa terra, e não tinha para onde ir. Mas ele não se arrependia de ter contrariado o conselho de Manwë, apesar de sentir grande pesar. Agora seria um novo tempo para ele, onde ele poderia descansar e construir uma nova vida. Mas, de qualquer maneira, ele jamais iria se esquecer de que ainda iria descarregar todo o ódio pela morte de seu pai, obtendo sua vingança. 

Eis que após muita caminhada, o grupo chegou às Orocarni. E ali decidiram se instalar, fundando a cidade de Alcarost, a Cidadela de Glória, e seu rei seria Fëaruin. E com isso muito feliz ficou Lustion, pois poderia realmente descansar e pensar em fazer coisas novas. Ali ele tornou-se conselheiro do Rei, pois todos o reconheciam como sendo alguém muito poderoso, sábio e ponderado.

Além de tornar-se conselheiro, ele tornou-se mestre arcano de Alcarost, pois entre suas muitas habilidades, estava a de saber lidar com a sutileza da magia, além de iniciar os mais jovens nessa arte. Pois, quando Lustion demonstrava sua capacidade de manipular a magia, todos viam que ele de fato possuía uma grande capacidade. Suas obras possuíam uma aura especial, e ele podia fazer os frutos dos pomares ficarem mais saborosos, as folhas das árvores resplandecerem douradas, e as crianças se alegravam quando ele chegava. Além disso, ele conseguia dar um ar de magnitude à Cidadela, fazendo com que aos olhos de todos, ela ficasse envolta num manto de beleza e imponência.

 A paz de Alcarost por diversas vezes foi perturbada, e em todas as batalhas que ocorreram, Lustion participou, brandindo Amaurëa contra os inimigos de seu novo lar. E numa dessas batalhas, ele acabou por fazer um inimigo terrível. Naquelas regiões, precisamente mais ao norte, haviam se desenvolvido os antros dos dragões remanescentes da guerra da Ira. Esses eram os últimos dos urulóki, mas seu poder ainda era suficiente para despertar o temor no coração de muitos, e ninguém se atreveria a se aproximar daquelas terras, sabendo da existência de tal perigo.

E numa das batalhas que foi travada diante dos portões de Alcarost, os orcs vieram acompanhados de um desses dragões. Telepso era seu nome, chamado também de O Prateado. Suas escamas eram prateadas de fato, e sua imponência fazia a maioria de seus inimigos correrem de medo assim que o avistassem. Mas quando Lustion encontrou-se com ele em batalha, não sentiu temor, nem fez nenhuma menção de fugir. Assim também eram poucos os que podiam fitar os olhos de Lustion cara a cara em batalha, e Telepso o fez, apesar de sentir-se incomodado por tal fato, pois o olhar de Lustion penetrava na alma de quem o fitasse, podendo despertar ali grandes temores. Porém a corrupção que Melkor fez com esses seres era tamanha, que não permitia que eles sentissem medo ou receio.

Mas Lustion não pôde ficar ali por mais tempo, pois ao mesmo tempo em que o Dragão investia contra ele, vinham agora os reforços dos orcs, que sentiam-se motivados e fortalecidos pela presença do grande lagarto, e assim, por estar sozinho ali, teve que retirar-se para as hostes de seu lado novamente. Tão logo puderam se recompor do avanço da divisão inimiga, as tropas de Alcarost agora empurravam os orcs cada vez mais para longe dos portões, e Telepso não podia fazer muito contra tamanho ímpeto desse enorme grupo que agora o atacava.

Assim ele começou a fugir. E Lustion foi atrás dele, e não percebeu de início que era isso que o dragão queria. Pois assim que Lustion se distanciara de seus companheiros, Telepso virou-se e investiu contra ele, que percebeu seu erro, tendo que enfrentar o grande monstro de frente. Sabia que teria poucas chances, ainda mais sem nenhuma proteção que pudesse defendê-lo da baforada desse ser poderoso. Assim, ele decidiu que era melhor correr até achar uma posição mais favorável para ele, e onde não tivesse de encarar o Dragão abertamente, sem defesa alguma.

Porém Telepso, apesar de grande, era rápido, e quando estava quase alcançando Lustion, baforou seu mortal sopro ígneo, que atingiu Lustion pelas costas, arremessando-o contra o chão. Sentindo a terrível dor que calcinava sua carne, ele virou-se rapidamente com as costas para o chão, e conseguiu desviar da primeira patada que o dragão desferiu. Em seguida, ele posicionou sua espada na frente do dorso, aparando as enormes mandíbulas que tentavam devorá-lo inteiro.

 E a força era tamanha que o Dragão acabou por conseguir cravar suas presas no tórax e nas costas de Lustion. Mas, no mesmo instante em que seus dentes afiados penetraram na carne do elfo, ele sentiu uma dor lancinante, e deu um salto para trás. Pois Lustion ainda estava com braço e espada na boca de Telepso, e quanto mais ele forçava a mandíbula, mais Amaurëa entrava na carne de sua boca. Se ele tivesse insistido em afundar ainda mais seus dentes, ambos teriam perecido, e o relato acabaria aqui. Mas não foi o que aconteceu, e agora o sangue negro saía-lha da boca aos borbotões, e ele acabou por fugir, pois ele não tinha mais condições de batalha.

E talvez tenha sido um grande erro, já que Lustion também não podia mais lutar, em virtude de que o calor e o sangue da boca do Dragão haviam inutilizado sua mão direita, e as perfurações feitas pelos dentes do Dragão somadas às queimaduras nas costas o deixaram seriamente ferido, e mais incapacitado ainda do que a criatura. Permaneceu, porém, consciente, e levantou-se, indo em direção de Alcarost. Assim ele
acabou sendo encontrado, cambaleando, parecendo mais morto do que vivo, pelos remanescentes da batalha, que o estavam procurando.

Ao voltar, soube que Seron, que era um grande amigo seu e naqueles tempos era dos mais honrados dos soldados de Alcarost, havia morrido para o mesmo dragão que quase o matara. E Seron tinha um filho, Vórima, que era um dos discípulos arcanos de Lustion, que acabou-se apegando ao jovem, tomando-o como seu próprio filho. E ele acabou recuperando-se rápido, mostrando que era muito resistente às feridas que os eventos do destino podiam lhe causar.

 Tão logo recuperou-se, começou a bolar uma estratégia para poder derrotar o Dragão. Mas ele não queria ter de esperar até que uma nova batalha houvesse, e mais vidas fossem sacrificadas em virtude disso. Assim, ele decidiu que iria até as proximidades do lar do dragão, e o chamaria para um duelo de um contra um. Ele sabia que apenas um deles sairia vivo, mas não se importava com isso. “Para qualquer bem maior, riscos são necessários, e mesmo que seja a sua vida que esteja em jogo, você deve encará-los.” – dizia ele a todos que tentavam dissuadi-lo de idéia tão desvairada.

Mas Lustion permanecia austero, e mais ponderado do que nunca. Então ele decidiu usar sua capacidade criativa e o poder de sua magia para criar uma roupa que o protegeria do fogo da garganta do dragão, pois ele sentira na pele o poder letal daquela terrível arma. E numa manhã ensolarada de Alcarost, ele partiu, trajado com sua veste, armado de Amaurëa na mão direita, e de uma longa lança na mão esquerda, além de estar acompanhado de Vórima que insistiu para acompanhar seu mestre, pois, se Lustion vencesse o dragão, ele haveria de ver com seus próprios olhos o triunfo daquela batalha, e se Lustion perecesse, ele pereceria junto, pois seu mestre era tudo que ele tinha de mais precioso agora.

Eles seguiam agora, até a morada de Telepso, onde também habitavam outros dragões muito possivelmente, numa região cercada de diversos perigos, e não muitas léguas distante de Alcarost.
 Por fim, chegaram ao topo de uma colina da região. Ali Lustion parou, e começou a analisar o território. Assim, disse à Vórima:
 – Vai até lá embaixo e anuncie, como meu arauto, que eu cheguei até aqui para desafiar Telepso para um duelo no final da tarde de hoje, aqui mesmo nessa Colina. Pois lá embaixo eu percebo que há um grupo de orcs, ou outros seres igualmente repugnantes, que poderão dar esse recado àquele maldito lagarto. Leve minha espada junto, e deixe-a desembainhada. Assim eles não terão coragem para atacá-lo, pois a fama desta espada a precede. Depois volte aqui e traga-me o que conseguiu.

 Vórima desceu, e após alguns minutos retornou. A batalha estava marcada, e Telepso seria avisado pelos orcs que estavam lá embaixo acampados. Lustion então decidiu sentar atrás da Colina, de modo que ficasse oculto aos olhos daquele acampamento.

 E no final da tarde, eles ouviram os passos de Telepso se aproximando, fazendo com que o chão trepidasse, anunciando a chegada do temível lagarto. Lustion colocou-se então de pé no topo da colina, e sua silhueta ao vento era como uma lembrança dos tempos antigos, sua aura transparecia uma imponência majestosa, e as últimas fagulhas do brilho de Anar que descia no poente batiam em suas costas.  Então Telepso, avistando Lustion, escarneceu:

 – Então veio para entregar-me sua vida facilmente, seu tolo? Pois eu não precisarei fazer nenhum esforço para terminar com sua permanência aqui, mas isso me dará muito prazer. Hoje você irá perecer devido à sua ignorância, e não terá a mesma sorte de antes.
 – Ignorante são suas palavras, lagarto maldito. Só saberemos o resultado dessa batalha após um de nós cair. Mas digo-te, que por subestimar-me, não serei eu a cair. E tua língua haverá de se dobrar após perceber que foi derrotado.

 Telepso já ia retrucar as palavras do noldo, quando uma lança cruzou o ar, com sua ponta prateada buscando o olho do Dragão. Telepso desviou, mas foi atingido no lado de sua boca. E ao mesmo tempo em que Lustion arremessara a lança, ele saltou na direção de Telepso, que após sentir a lança cravar-lhe a carne, teve a visão ofuscada pelo Sol, que não estava mais oculto pela presença de Lustion. Isso fora fruto de sua estratégia, fazendo o dragão enfrentá-lo de frente para a luz do grande astro, e o dragão distinguiu apenas uma sombra voando em sua direção. E Telepso não teve tempo para esboçar reação alguma a não ser usar sua arma mais mortal, a baforada. Mas Lustion, usando seu traje mágico, entrou na profusão de chamas, e saiu do outro lado ileso, com a cabeça do Dragão livre para receber o golpe final. Assim, ele caiu diretamente na cabeça de Telepso, cravando a espada até o cabo entre os olhos do Lagarto.

  Sangue negro jorrou da cabeça de Telepso, e ele se debateu bruscamente, arremessando Lustion para longe. Por fim, ele acabou caindo, e não pode sequer dizer mais nenhuma palavra. Estava morto o Prateado, e aquela colina tornou-se famosa posteriormente, devido a essa batalha, sendo chamada de Amon Celeb. Lustion, recompondo-se da queda que levara, dirigiu-se até onde estava o corpo do dragão, e cuidadosamente retirou sua espada da carne do lagarto.

Mesmo após desferir golpe tão poderoso e penetrar no couro do Dragão, a espada permanecia limpa e intacta. Então Vórima veio saudar seu mestre, espantado pelo mesmo ter derrotado o dragão sem sofrer nenhum ferimento. Mas Lustion permaneceu sério, não parecendo totalmente feliz por ter derrotado o dragão. E Vórima não compreendeu a atitude de seu mestre e (praticamente) pai, e preferiu não comentar mais a respeito.

 Em seu íntimo Lustion sabia que aquela criatura não era senão mais uma vítima da perversão e malícia de Melkor que haveria de perdurar para todo o sempre, e sentiu pena, por não ter outra alternativa senão combater qualquer mal que fosse com todas as suas forças. O mal nunca haveria de ser derrotado totalmente, mas não se podia deixar de lutar para que esse mal não sobrepujasse o bem que ainda existia no mundo. Lustion sentia isso passar por sua cabeça, e muito mais, e não trocou palavra com seu discípulo enquanto voltavam à Alcarost, perdendo-se em seus pensamentos.

 Em Alcarost ele retomou o curso de suas atividades, ensinando seu discípulo e filho, e demais iniciados arcanos, postergando seu conhecimento e sabedoria para as gerações vindouras.

Não são esses todos os fatos que são conhecidos de Lustion, e seus outros feitos e o fim de sua vida em Alcarost serão relatados conforme minha memória me auxiliar, e conforme eu possa criar coragem para lembrar de feitos e fatos ainda mais grandiosos e dolorosos, pois meu coração ainda carrega esses sentimentos, e meus relatos
podem vacilar.

Pois Lustion era um noldo, e como tal estava sujeito aos predizeres que Mandos pronunciara outrora em Aman.

Acompanhar
Avisar sobre
guest

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários
0
Gostaríamos de saber o que pensa, por favor comentex