O Livro Negro de Arda – Capí­tulo 6

Escrito por Fábio Bettega
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A Valinor/Lothlórien tem a honra de dar continuidade à publicação de O
Livro Negro de Arda, publicando o sexto capítulo da mesma, chamado A PRIMAVERA DE ARDA (leia mais sobre esta obra aqui na Valinor).
 
 
 
PARTE PRIMEIRA. O CORAÇÃO DO MUNDO
A PRIMAVERA DE ARDA. ERA DAS LÂMPADAS

Melkor ainda não recobrou as forças depois da luta com o Único e com os Valar. Ele agora permanecia além dos limites do mundo, e por um tempo os Valar obtiveram o poder sobre Arda.

E era noite, mas eles não viram nem a Lua nem as estrelas.

E era dia, mas eles não viram o Sol.

Parecia-lhes que o escuro os rodeia; pois pela vontade do Único seus olhos foram desviados até chegar a hora.

Foi então que Aulë, o Grande Ferreiro, criou aquilo que Valar chamaram de Colunas da Luz. Cálices de ouros foram colocados sobre elas, e Varda os encheu de não-Escuro, e Manwë os abençoou. E os Valar colocaram estas Lâmpadas: Illuin – no norte e Ormal – no sul. Criadas do Vazio e do não-Escuro, elas fecharam na casca do Vazio uma parte de Ea – Arda.

Naquele tempo, germinaram todas aquelas sementes que Valie Yavanna plantou na Terra-Média, e um sem número de plantas se ergueu, grandes e pequenas: musgos e liquens, e ervas, e samambaias imensas, e arvores – como montanhas vivas, cujos topos alcançavam as nuvens, cujas bases estavam envoltas em penumbra verde; e flores coloridas e suculentas, com pétalas carnudas saturadas de seiva doce e grossa.

E vieram os animais, e eles passeavam pelos vales cheios de ervas, e povoaram os rios e os lagos, e a penumbra das florestas.

E não havia em outro lugar uma quantidade tão grande de flores e um florescer tão impetuoso como ali onde se encontrava e se misturava a luz das Grandes Lâmpadas. E lá, na ilha de Almaren, a que está no Grande Lago, foi a primeira morada dos Valar – naqueles tempos em que o mundo era jovem, e o verde jovem ainda era uma alegria para os olhos dos criadores. E por muito tempo, eles estiveram bastante contentes.

Era alegria para os Valar ver os frutos dos trabalhos deles; e eles chamaram este tempo de Primavera de Arda; e para que nada perturbasse o sossego do mundo, sem poderes para controlar o fogo de Arda, eles tentaram o domar, e o encarceraram sob a terra.

Mas Valar abriram o caminho a Arda para as criaturas do Vazio; e aquelas se instalaram nas matas intransponíveis e nas cavernas profundas. De tempos em tempos, elas abandonavam os seus refúgios, e os animais apavorados fugiam delas, e as plantas murchavam nos lugares por onde elas passavam – como uma neblina cinzenta se arrastando. Assim o Vazio entrou no mundo.

…Ele não conseguia respirar; cada inspiração lhe causava dor – pequenas e afiadas agulhas quentes espetavam os pulmões por dentro. O suor formava gotinhas no rosto dele. Parecia-lhe que ele está respirando uma neblina ardente, abafada, úmida e adocicada…

O que é isso?

Não havia necessidade de perguntar. Ele sabia: Arda. A vida de Arda era a vida dele, a dor de Arda – a dor dele.

Ele novamente entrou em Arda. Isso não era fácil: como se uma flexível, elástica muralha invisível o impedisse de passar; como se uma mão enorme o empurrasse, repelindo-o, pesada e insistente. Ele venceu a resistência com dificuldade.

E o mundo que o recebeu era assustador, pois o mundo morria; mas mesmo na agonia cruel, ele era belo.

O eterno dia imutável acordou para a vida as sementes e os esporos de milhares e milhares de plantas. Enormes árvores estendiam-se na direção da cúpula em brasas do céu, e ervas nas colinas tinham a altura de um homem. Mas nas florestas, as heras e as trepadeiras arrastavam-se, com lentidão e persistência, para o alto, cravando-se na casca áspera e com saliências, e nenhum raio de luz penetrava através da folhagem pesada. E sob as árvores gigantescas, ervas e brotos asfixiavam uns aos outros, nasciam e morriam, mal tendo tempo de florescer. No ar quente e abafado, as ervas mortas, as flores murchas, as folhas caídas logo começavam a apodrecer, e o cheiro purulento misturava-se ao aroma das flores que desabrochavam. O pólen – neblina dourada – estava por toda parte; tudo estava coberto por uma camada macia e quente dele, e o gosto doce e enjoativo de mel não desaparecia da boca, e os lábios estavam sempre pegajosos e doces, e o aroma expresso e pesado das flores atordoava. O ar quente e úmido preenchia os pulmões. Plantas esmagavam e devoravam umas às outras, e agarravam-se à vida na agonia da morte; e trepadeiras de rapina sugavam a vida das arvores, e arvores estendiam-se insistentemente para o alto, tentando ultrapassar as outras…

Mundo simétrico, onde reina o eterno não-Escuro.

Mundo simétrico, onde não há montanhas nem depressões.

Aqui os rios não têm para onde correr, e as lagoas se transformam em pântanos, cobertos de lodo e lentilhas-d’água, e o florescer destas é exuberante, e estranhas criaturas escorregadias se remexem ali, e uma pesada neblina verde-dourada desliza a partir dos pântanos, colada ao chão: cheiro asfixiante da podridão e aroma expresso, sentido quase fisicamente, das ervas do pântano…

As plantas se entrelaçam, se movem, se arrastam, espremendo-se mutuamente num abraço mortal; e na penumbra florestas fechadas musgos escuros corroem os troncos das árvores como lepra; e manchas de muco amarelo-venenoso nas raízes delas são semelhantes a úlceras douradas, e as arvores apodrecem vivas, tornando-se alimento para outras, e os animais enlouquecem…

Assim foi a Primavera de Arda.

Assim Melkor viu Arda.

Ele apertou as têmporas com as mãos.

O mundo gritava: o primeiro grito do recém-nascido transformava-se num berro furioso – e no chiado de agonia. Arda gemia surdamente de dor, como uma mulher que não consegue dar à luz; o fogo, a vida dela, a queimava por dentro.

O grito pulsava no cérebro dele no ritmo dos batimentos do sangue nas têmporas, sem silenciar, sem silenciar, sem silenciar nem por um minuto.

A dor esmagava o coração dele como uma mão indiferente.

O não-Escuro é mais inimigo do Escuro do que a Luz.

O não-Escuro reinava no mundo.

Por um instante, pareceu ao Senhor do Escuro – tudo está acabado.

Pareceu-lhe – é a destruição.

Para Arda.

Para ele.

E então ele ergueu o braço.

E a terra tremeu sob os pés dos Valar.

E as Lâmpadas ruíram: o Escuro devorou o não-Escuro.

Nas rachaduras da terra surgiu o fogo – como o sangue ardente nas feridas abertas.

Lava corria pelas encostas dos vulcões, queimando as úlceras deixadas pelo não-Escuro no corpo de Arda e colunas de fogo com barulho ensurdecedor erguiam-se até o céu.

Novas terras erguiam-se das profundezas do mar, nascidas da água e do fogo, e vapor branco fluía sobre as suas superfícies ainda quentes.

E era noite.

… E sobre a terra noturna em chamas, ele voava, sustentado pelas asas de vento negro, e ria, livre e feliz.

Com um estrondo, as montanhas ruíram – e cresciam-se novamente, mais altas que antes. E alguém sussurrou a Melkor: deixe a sua marca…

Ele desceu e pisou no chão. Ele apertou a palma contra a lava ainda quente, e o fogo de Ata não queimou a mão dele; ele e o mundo eram uma coisa só.

E ele navegou pelo rio de fogo no barco negro de lava fria, e Arda ria com riso de fogo, libertando-se das correntes, e Melkor também ria com um riso feliz e jovem, a cabeça jogada para trás, alegrando-se com a própria liberdade e o finalmente descoberto poder.

… E era dia. E nas colunas de vapor, nas nuvens de fuligem negra que se precipitava lentamente sobre a terra, nasceu o sol, e a luz dele era vermelha, rubra, sangrenta.

E houve um eclipse do Sol.

O Sol transformou-se num semicírculo de fogo, de brilho insuportável, e depois virou um disco negro – escuridão ardente; e uma coroa de raios o rodeava, e nos batimentos deles, na dança dos lentos flocos de fuligem ouvia-se o eco da rebelde e ameaçadora música; nela enlaçava-se o triste sussurro de gelo e o leve tinir das estrelas, como uma sôfrega, dolorosamente carinhosa melodia de flauta; e o vento veloz, gélido e escaldante, soava como as vozes baixas dos instrumentos de cordas; e o coro abafado dos picos das montanhas – o canto do órgão negro…

…Agora ele estava no pico da montanha. Ele estendeu os braços para o disco negro em brasas, e uma espada escura com cabo negro de obsidiana deitou nas suas palmas, e entrelaçamento de sinais de fogo escorria pela lâmina num ornamento de serpentes: a Espada do Sol em Eclipse.

Ele caminhava pela terra, ouvindo a respiração ofegante de Arda. Ele falava, e suas palavras eram música. E ele pronunciava as Palavras do Poder, que curam e expulsam a dor – então o coração de fogo de Arda passou a bater com ritmo e confiança, e a respiração dela tornou-se calma. E o mundo ficou em silêncio, e o Alado ouviu o baixo murmúrio das plantas que não nasceram, ocultas pelas camadas de fuligem. E ele pronunciava as Palavras do Poder, que transformam a morte no sono, para acordar, no mundo novo, na hora certa, as ervas e as árvores. As palavras eram Música, que dá vida, que cria o vivo do morto.

Mas enquanto ele falava, a chama do vulcão ergueu-se até o céu novamente, e abriu-se, e dela saíram novos seres desconhecidos, assustadoramente belos. O escuro ardente era a carne deles, e os olhos deles – como lagoas de fogo. Alado olhou para eles, surpreso; e ele compreendeu que, sem o desejar, ele mesmo os acordou para a vida, pois elas nasceram do fogo da terra graças às palavras dele. E ele viu que elas vivem com vida própria, e vieram ao mundo para permanecer nele. Então Alado pensou: “Não pela minha vontade, mas graças a mim eles surgiram, e eu devo responder por eles e não posso deixá-los”. E as novas criaturas transformaram-se em na corte e no exército dele. Ele deu-lhes o nome de Achere, Chamas do Escuro. Eles eram de natureza diferente dos Maiar; o fogo era a essência deles, e ninguém poderia nem subjugar, nem domá-los completamente. Crianças de Ilúvatar, os Primeiros Nascidos, chamaram-nos de Valaraukar, e de Balrogs – Demônios da Força. A sua vida poderia prolongar-se eternamente, mas se alguém conseguisse matá-los, eles se transformavam em chamas e retornavam ao fogo da terra, pois não possuíam um espírito imortal, mas eram a encarnação do elemento fogo, e fogo era sua essência.

E o nome do primeiro dos Achere era Neere, Fogo; os Mortais e os Elfos o conheceram sob um outro nome. Ele tornou-se o comandante do exército dos Demônios das Chamas Escuras quando chegou o tempo de guerra, e os Elfos o nomearam Gothmog. Os imortais, nas terras de Aman, não souberam como chegaram ao mundo esses espíritos do fogo, e os consideraram Maiar. Por isso, assim diz “Valaquenta”:

“Pois, dos Maiar, muitos foram atraídos por seu esplendor em seus dias de majestade, permanecendo fieis a ele em seu mergulho nas trevas. E outros ele corrompeu mais tarde, atraindo-os para si com mentiras e presentes traiçoeiros. Horrendos entre esses espíritos eram os valaraukar, os flagelos de fogo que na Terra-média eram chamados de balrogs, demônios do terror”.

Eles eram poderosos e belos. Mas eles não eram humanos.

…Quando a terra acalmou-se, e a fuligem a cobriu como uma capa negra, e a pesada penumbra dos nevoeiros dissipou-se, Melkor viu um novo mundo.

A simetria das águas e das terras foi destruída, e não havia mais semelhanças com uma máscara congelada na face de Arda. Cadeias de montanhas ergueram-se no lugar dos vales, o mar alagou as colinas, e enseadas agudas cortaram as terras emersas. Furiosos rios indomados espumavam, uivando nas corredeiras, e levavam as águas até o oceano; e sobre as cachoeiras, nas rendas de gotículas de água, da água e do Sol nasciam os arco-íris.

Assim o mundo conheceu a morte; e junto com a Arda, aquele que a amou esteve próximo da morte.

Assim o mundo renasceu; e junto com a Arda, aquele que a amou ganhou poderes.

Melkor respirou fundo, com todo o peito, o ar do mundo renovado. E ele sorria, mas a mão dele estava sobre o cabo da espada.

A luta ainda não acabou.

E, para combater as criaturas do Vazio, novos seres foram criados por Melkor. Dragões era o nome deles entre os Homens.

Do fogo e do gelo, pelo poder da Música da Criação, pelo poder dos feitiços do Escuro e da Luz, eles foram criados. Arda deu poder e força aos corpos deles, Noite os dotou de inteligência e de fala. Grande era a sabedoria deles e, desde aquele tempo, os homens diziam que aquele que abater um dragão e experimentar o coração dele, tornar-se-á o sábio dos sábios, e os conhecimentos antigos serão mostrados a ele, e ele compreenderá a fala de todos os outros seres, mesmo que seja a dos animais ou dos pássaros, e as palavras dos deuses serão compreensíveis para ele.

E a Lua emprestou os feitiços dela às criações do Senhor do Escuro, por isso o olhar deles encantava.

Os primeiros a chegar ao Mundo foram os Dragões da Terra. Pesado era o passo deles, e a respiração deles era fogo, e os olhos luziam com ouro furioso, e a ira do Mestre que os criou ardia nos corações deles. O Sol nascente os vestiu de cobre vermelho, tal que quando eles andavam parecia que chamas saem de baixo das placas das escamas. E na criação deles, os Demônios do Fogo, Balrogs, auxiliaram o Senhor. Glaurung, que é também chamado de Pai dos Dragões, era da casa dos Dragões da Terra.

E era meio dia, e o Mestre criou os Dragões do Fogo. O sol vestiu os corpos deles com a armadura dourada de escamas flexíveis, e douradas eram as asas imensas deles, e olhos eram da cor de safira pálida, cor do céu do deserto. O vento gerado pelas batidas das suas asas é ardente, e até mesmo o metal derrete com o calor da respiração deles. Flexíveis, graciosos, velozes como flechas aladas, eles são belos – e a beleza deles é mortal. Na criação deles, o Mestre foi auxiliado pelo seu discípulo Gorthaur, cujo nome significa – “Aquele que possui o Poder das Chamas”. Da casa dos Dragões do Fogo, se conhece somente o nome de um dos últimos – Smaug, o Dragão Dourado.

No fim da tarde da última lua do outono, quando o sussurro gélido das estrelas só começa a enlaçar-se na lenta melodia da neblina, quando o frágil vidro do primeiro gelo reveste a água e os flocos de neve faiscantes cobrem os galhos finos, vieram ao mundo os Dragões do Ar. A cintilação misteriosa dos fogos fátuos vivia nos olhos deles; estavam cobertos de aço e prata negra, e as asas deles eram de ardósia, e garras mais resistentes do que diamante. Silencioso e veloz, mais rápido que o vento, é o vôo deles; e eles receberam a fria, impiedosa sabedoria dos guerreiros. Poucos receberam a dádiva de ver a lenta dança encantadora deles no céu noturno, quando as estrelas refletiam nos inúmeros espelhos das escamas se, e a luz da lua os lavava. E assim dizem os homens: aquele que viu esta dança torna-se o servo da Noite, e a luz do dia não lhe traz mais alegria. E dizem ainda que na hora da dança do céu dos Dragões do Ar, estranhas ervas e flores germinam das sementes que dormiram no solo por dezenas de anos, e estendem-se para a Lua pálida. Aquele que as recolher na Noite da Dança dos Dragões, conhecerá a grande sabedoria e ganhará imensos poderes; ele tornar-se-á algo maior do que um homem, mas nunca mais retornará à própria casa. Mas se a raiva e a sede de poder estiverem no coração dele, ele morrerá, e o espírito dele se transformará num fogo fátuo; e somente na Noite dos Dragões ele irá adquirir uma forma espectral, semelhante à humana. Estes eram os Dragões do Ar, e Melkor criou-os sozinho. Da casa deles, originou-se Ancalagon, o Negro, o maior dos dragões.

Os Dragões da Águas eram filhos da Noite. Havia uma lenta beleza nos movimentos deles, e eram vestidos de bronze negro, e a luz da Lua, de um pálido dourado, vivia nos olhos deles. A sabedoria antiga do Escuro os atraia mais do que os combates; escura e bela era a música que os criou. Eles valorizavam acima de tudo o silêncio, companheiro das reflexões; e descobrir os segredos ocultos do mundo era o prazer supremo para eles. Por isso, eles elegeram como morada as profundezas das lagoas escuras que refletem as estrelas, e os abismos sem fundo dos mares orientais, desconhecidos e inalcançáveis a Ulmo. Poucos os viram, por isso nada se diz sobre eles nas lendas dos Elfos; mas as lendas dos homens do Oriente freqüentemente falam sobre Dragões sábios, Senhores das Águas…

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