Análise do Filme O Senhor dos Anéis:O Retorno do Rei, Parte 1

Escrito por Fábio Bettega
A Valinor dá continuidade à publicação da Análise Psicológica dO Senhor dos Anéis, agora com a primeira parte da análise dO Retorno do Rei. As primeiras partes podem ser lidas neste endereço.
 
 
DENETHOR : IDENTIFICAÇÃO COM A PERSONA E COM O COMPLEXO DE PODER
 
"O orgulho seria tolice, se desdenhasse ajuda e aconselhamento na
necessidade, mas você distribui essas dádivas de com seus próprios
desígnios. Apesar disso, o Senhor de Gondor não deve ser transformado
na ferramenta dos propósitos de outros homens, não importa quanto sejam
valorosos.E para ele não há propósito mais alto no mundo, como ele se
apresenta agora, do que o bem de Gondor e a lei de Gondor, meu senhor,
é minha e de nenhum outro homem, a não ser que o rei retorne."
  (1)

 

Logo de início podemos observar que, Denethor é alguém  identificado com seu posto, o regente de Gondor. Denethor não se coloca como o administrador e responsável pelo cumprimento das leis em Gondor, ele diz ser a própria lei. O Senhor de Gondor é um sujeito identificado com a persona de regente. Esta é a definição do conceito de  persona :

"Persona :  Designa originalmente, no teatro antigo, a máscara usada pelos atores. A persona é o sistema de adaptação ou a maneira por que se dá a comunicação com o mundo.Cada estado ou cada profissão, por exemplo, possui sua persona característica.O perigo está, no entanto, na identificação com a persona; o professor com seu manual, o tenor com sua voz.Pode-se dizer, sem exagero,que a persona  é aquilo que não é verdadeiramente, mas o que nós mesmos e os outros pensam que somos." (2)

A identificação com a persona traz grandes prejuízos ao desenvolvimento da personalidade.O sujeito identificado com a persona tem um grande obstáculo pela frente caso venha desejar atingir a meta do processo de individuação, o obstáculo de interagir e de se relacionar com o mundo apenas através desta persona.No caso do Regente, ele se vê como o regente em todos os aspectos de sua vida, fator este que veio a ser o responsável por fazer com que o mesmo viesse a exercer um papel de pai questionável no relacionamento com seus dois filhos.

Denethor exerceu papel de Regente com os seus filhos Boromir e Faramir, não há uma relação fraternal e amorosa do pai com os filhos. Há uma relação de poder entre o Regente e seus filhos, que são vistos  como subordinados da Lei de Gondor, e não como filhos de Denethor.

"Por quê? Por que fogem os tolos?- Disse Denethor- É melhor ser queimado mais cedo que mais tarde, pois esse será nosso fim.Voltem para a sua fogueira! E eu?Irei agora para a minha pira.Para a minha pira.Nada de túmulo para Denethor e Faramir.Nada disso!Nada de longos sonos de morte embalsamada.Vamos arder como arderam os reis bárbaros antes que qualquer navio tivesse vindo do oeste para cá.O ocidente fracassou.Voltem e queimem!"
  (3)

Minas Tirith estava sendo arrasada  pelos exércitos de Sauron, a ajuda de Rohan  estava demorando a chegar e o poder de Denethor começava a desmoronar. Denethor estava perdendo o controle das coisas, estava perdendo seu poder e ainda que a guerra   pela Terra Média não existisse, ele teria de entregar a lei de Gondor ao rei, que estava por vir. Se desprender de seu cargo e entregar a autoridade de Gondor ao herdeiro de Isildur, era  algo contra Denethor  resistia. A forma como o regente compreendeu que poderia manter seu posto, sem ter de entregá-lo a Aragorn, foi morrendo ainda no posto com a lei de Gondor sob sua responsabilidade e autoridade.Aqui, fica clara a onipotência e arrogância de Denethor, para ele é preferível morrer a deixar de ter poder. É preferível morrer "no topo" vítima de seu apego ao poder, do que viver de maneira simples e equilibrada.

"- O que é isso, meu senhor? – disse o mago – As casas dos mortos não são lugar para os vivos.E por que há homens lutando aqui no Recinto Sagrado, quando já existe guerra o suficiente diante do Portão? Ou será que nosso Inimigo conseguiu até mesmo chegar à Rath Dinen?- Desde quando o Senhor de Gondor te deve explicações? Disse Denethor.- Ou será que não posso comandar meus servidores? – Você pode- disse Gandalf –Mas outros podem contestar sua vontade, se ela voltar para a loucura e a maldade.Onde está Faramir, seu filho?
– Está deitado lá dentro – disse Denethor, queimando, já está queimando.Atearam fogo à sua carne.Mas em breve todos estarão queimando.O oeste fracassou.Tudo irá pelos ares numa grande fogueira, e tudo estará terminado.Cinzas! Cinzas e fumaça carregadas pelo vento!"
(4)

" – A autoridade não lhe foi dada, Regente de Gondor, para ordenar a hora de sua morte- respondeu Gandalf – E apenas os reis bárbaros, sob o domínio do Poder Escuro, fizeram isso, matando-se por orgulho e desespero, assassinando seus parentes para aliviar a própria morte." (5)

"Pois continua alimentando esperanças! – disse rindo Denethor – Então não te conheço Mithrandir? Tua esperança é governar em meu lugar, ficar atrás de todos os tronos, do norte, do sul ou do oeste. Li tua mente e suas políticas. Achas que não sei que tu ordenaste a este Pequeno que ficasse calado?Que tu o trouxeste aqui para ser um espião em meu próprio aposento? Apesar disso, em nossa conversa eu soube os nomes e os propósitos de todos os teus companheiros. Eu sei! Com a mão esquerda tu me usarias por um tempo como um escudo contra Mordor, enquanto com a mão direita trarias este Guardião do Norte para me suplantar.
– Mas eu te digo, Gandalf  Mithrandir, não serei teu brinquedo! Sou um Regente da Casa de Anárion. Não vou me rebaixar para ser o camareiro caduco de um arrivista. Mesmo que a reivindicação dele se mostrasse autêntica, ainda assim ele apenas pertence à linhagem de Isildur. Não me curvaria diante desse sujeito, o ultimo representante de uma casa destruída, há muito tempo desprovida de realeza e dignidade.
 – Então, o que escolheria você – disse Gandalf  -, se seu desejo pudesse ser realizado?
– Eu escolheria as coisas como elas sempre foram em todos os dias de minha vida – respondeu Denethor – e nos dias de meus antepassados que me precederam: ser o Senhor desta Cidade em paz, e deixar meu lugar para um filho depois de mim, um filho que fosse dono da própria vontade, e não o pupilo de um mago.Mas, se o destino me nega isso, então não quero nada: nem a vida diminuída, nem o amor pela metade, nem a honra abalada.
– A mim não pareceria que um Regente que com fidelidade entrega seu cargo fica diminuído em amor ou em honra – disse Gandalf – E pelo menos você não privaria seu filho do poder de escolha, enquanto ainda há dúvidas sobre sua morte."
(6)

Neste diálogo de Denethor com Gandalf , podemos notar que a maior motivação para o Regente de Gondor decidir pelo suicídio se deve ao fato de ter de entregar o poder a Aragorn, herdeiro por direito do trono. Outra característica de alguém identificado com o complexo de poder, é a paranóia e o constante sentimento de ameaça em que vive este sujeito.

Nota-se também a falsa idéia de ser o portador de uma onisciência divina, uma vez que Denethor diz ter lido a mente de Gandalf. Sendo o poder  o único fator  a ter espaço e importância na vida do Regente, acaba-se por perder o equilíbrio psicológico, o bom senso, o amor, a cordialidade e o respeito por si mesmo e pelas outras pessoas.Pois,  o contato com a totalidade da personalidade foi perdido e assim desta maneira, vive-se uma unilateralidade, arbitrária e centralizadora.

A consciência e o discernimento de Denethor se encontram de tal forma prejudicados, que faz com o mesmo chegue a se achar no direito de decidir sobre a vida ou morte de Faramir. Pois uma vez que Denethor vive sua vida para ser o regente, nada mais passa a ter sentido ou significado o bastante, que o motive a viver. O triste fim do Senhor de Gondor, nos remete ao mito de Ícaro, mito este que nos conta sobre o perigo que existe quando o excesso, o desejo pelo poder e a unilateralidade se tornam mais importante do que outras coisas na vida de alguém, podendo levar o portador deste desejo a trágicas conseqüências .

Os textos abaixo nos conta sobre o mito:

"Filho de Dédalo e de uma escava, Ícaro morreu vítima das invenções do pai, que ele utilizou sem fazer caso das advertências paternas.Eu te previno, Ícaro, tens de fixar teu curso numa altura média.Aprisionado no labirinto, com seu pai que ajudara Ariana e Teseu a matar Minotauro, ele consegue evadir-se com o auxílio de Parsífae e graças ás asas que Dédalo lhe fez e que ele fixou com cera sobre os ombros.Ícaro voou por cima do mar.E desprezando todos os conselhos de prudência, elevou-se cada vez mais alto,cada vez mais perto do Sol. A cera derrete e ele se precipita no mar.Imagem das ambições desmesuradas do espírito, Ícaro é o símbolo do intelecto que se tornou insensato… da imaginação pervertida. É uma personificação mítica da deformação do psiquismo caracterizada pela exaltação sentimental e vaidosa. Ícaro representa o emotivo e a sorte que o espera. A tentativa insana de Ícaro é proverbial pela emotividade no mais alto grau, por uma forma de aberração do espírito: a mania das grandezas, a megalomania (DIES, 50).Ícaro é o símbolo do excesso e da temeridade, a dupla perversão do juízo e da coragem." (7)

 
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´´A Queda de Ícaro“, quadro de Jacob Peter Gowy, feito entre 1636-1637
 
"… tendo engenhosamente fabricado para si e para o filho dois pares de asas de penas, presas aos ombros com cera, voou pelo vasto céu, em companhia de Ícaro, a quem recomendara que não voasse muito alto, porque o sol derreteria a cera, nem muito baixo, porque a umidade tornaria as penas assaz pesadas. O menino, no entanto, não resistindo ao impulso de se aproximar do céu, subiu demasiadamente. Ao chegar perto do sol, a cera fundiu-se, destacaram-se as penas e ele caiu no mar Egeu, que daí por diante, passou a chamar de Ícaro…" (8)

"Apesar da admoestação paterna, para que guardasse um meio termo, "o centro", entre as ondas do mar e os raios do sol, o menino insensato ultrapassou o métron, foi além de si mesmo e se destruiu. Ícaro é o símbolo da temeridade, da volúpia ´das alturas`; em síntese: a personificação da megalomania." (9)

Como se pode observar nestes textos, o mito de Ícaro traz algumas semelhanças com a relação de Denethor com o poder e com Gandalf. Denethor se porta da mesma forma como o menino alado, não dando atenção aos conselhos  que viriam a se tornar apelos posteriormente vindos da parte de Gandalf .

No mito de Ícaro, Dédalo é um pai preocupado com a segurança e o futuro do filho, da mesma forma Gandalf pensa a respeito de Denethor. Porém a obsessão em manter o posto, cega o entendimento do Senhor de Gondor, que confunde seu mandato com a própria vida, pois a conclusão de Denethor é  de que com o fim do mandato de regente, chega-se o fim da própria vida. Tanto Dédalo, como Gandalf aconselham para que Ícaro e Denethor não se postem  nem no  mais alto e nem na mais baixa profundidade, e sim que busque o caminho do meio, ou seja o equilíbrio psicológico.Retomamos o seguinte trecho:

"Mas, se o destino me nega isso, então não quero nada: nem a vida diminuída, nem o amor pela metade, nem a honra abalada.
– A mim não pareceria que um Regente que com fidelidade entrega seu cargo fica diminuído em amor ou em honra – disse Gandalf – E pelo menos você não privaria seu filho do poder de escolha, enquanto ainda há dúvidas sobre sua morte."
(10)

O equilíbrio psicológico diz respeito a você conciliar pólos opostos em sua vida, adotar posturas diferentes em contextos diferentes.
Como foi dito anteriormente, no momento em que se exigiu de Denethor para que este assumisse a postura de pai diante de Boromir e Faramir, seus filhos o mesmo não conseguiu se desvencilhar de seu posto de regente para assumir o papel paterno. A relação de Denethor e seus filhos é baseada no poder, e não no amor, pois o poder é inerente ao cargo de regente.E, o amor é inerente ao papel de pai. A questão não é optar pelo amor ou pelo poder, a solução é conciliar ambos e saber se utilizar destes recursos nos momentos apropriados durante a vida.

A filosofia chinesa, já há séculos atrás falava sobre o homem saber conciliar os opostos dentro de si. É o Tao, que significa "um modo, um caminho." O Tao reúne os opostos yin e yang, e da mesma forma a psicologia nos dias de hoje propõe a todos aqueles que desejem alcançar o equilíbrio interno.

Denethor não venceu o conflito, se apegou ao seu posto , não seguiu o conselho de Gandalf quis o poder, ou seja quis se manter no alto e não no meio assim como Ícaro voou próximo ao sol, ocasionando assim sua morte trágica. Embora a morte trágica esteja longe de muitos de nós por conta de uma conduta não saudável psicologicamente, as conseqüências prejudiciais por conta de uma postura similar a de Denethor não estão distantes de quem a praticar. Denethor era alguém apegado à sua persona de regente, fato este que fez com que  o mesmo tivesse conseqüências trágicas por conta desta atitude. Muitos de nós podemos ter a atitude semelhante a de Denethor sem percebermos.

Como exemplos podemos citar a boa filha ou bom filho que deseja agradar a todo mundo a todo o momento, o pai e a mãe que são workaholics, são exemplos de como podemos nos distanciar de quem nós somos em nossa totalidade, doutores e deputados que acreditam terem seus títulos e cargos impressos na  cédula de identidade. Que o caminho do meio, a meta da individuação, seja a escolha a ser feita.

GOLLUM E OS HOBBITS : CONDENAÇÃO E SALVAÇÃO, UNIÃO DOS OPOSTOS

"- Gollum – disse Pippin – Como é que eles poderiam estar andando com ele, até mesmo seguindo-o ?E pude perceber que Faramir não gostou mais do que você no lugar para o qual ele os estava levando. Qual é o problema?
– Não posso responder isso agora – disse  Gandalf – mesmo assim, meu coração de alguma forma sabia que Frodo e Gollum iriam se encontrar antes do fim. Para o bem ou para o mal.
Mas sobre Cirith Ungol não falarei esta noite. Traição, é a traição que receio; traição daquela criatura miserável. Mas precisava ser assim vamos nos lembrar de que um traidor pode trair-se a si mesmo e fazer o bem que não pretende. Pode ser assim algumas vezes.Boa noite!"
(11)

"A piedade de Bilbo pode governar o destino de muitos.
Bilbo foi destinado a encontrar o anel , e você destinado a carregar o anel.
Gollum ainda tem um papel a cumprir."
(12)

Foram distribuídos: 3 anéis aos elfos,7 anéis aos anões mineradores e 9 anéis aos homens. A raça dos hobbits foi a raça excluída e desprezada, na distribuição maligna e destruidora de Sauron. Este fator, contribui de maneira significativa para que através dos hobbits, o Anel fosse resgatado e destruído.

Desta forma ao observarmos o tema do "4 – 1" , isto nos remete a um tema bastante comum dentro do processo de análise, o tema do conteúdo oculto, reprimido ou desprezado pela consciência. A raça dos hobbits é relatada algumas vezes durante a obra como sendo desconhecida por boa parte dos habitantes da Terra Média. Desprezados, desconhecidos e tidos até como uma raça inferior os hobbits, simbolizam os conteúdos do inconsciente, mediante o contexto das outras três raças, que reunidas simbolizam a consciência.

Na alquimia a lapis philosophorum, a pedra ou o ouro filosófico, embora seja a meta a ser alcançada por todo alquimista , também  é rejeitada e desprezada pelos homens que buscam apenas os valores materiais, pois a lapis representa os valores elevados e ou espirituais, distantes da sociedade na Idade Média e distante de nós nos dias de hoje.
Os alquimistas traçavam um paralelo da lapis com Cristo:

1 Pedro 2; 6-8 a.
"6- Pois na Escritura se diz:
Vede, ponho em Sião uma pedra angular eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido.

7- Ora, para vós, os que credes, essa pedra é preciosa. Mas para os descrentes, a pedra que os edificadores rejeitaram, essa foi posta como principal de esquina,

8- e: Uma pedra de tropeço e rocha de escândalo."(13)

A pedra filosofal simboliza a união da psique consciente com a psique inconsciente, a totalidade, o Self, a meta da individuação
E assim como a lapis a raça dos hobbits também simboliza o Self, a totalidade da psique. Então, podemos pensar na raça dos hobbits como sendo um conteúdo que antes era desprezado pelo ego que agora vem à tona e passa a ser assimilado, enriquecendo a personalidade do indivíduo.

Ao acompanharmos a Trilogia do Anel, ficamos sabendo do papel de suma importância que a raça do hobbits teve ao longo da jornada.
Tendo como representantes Bilbo, Frodo, Sam, Merry, Pippin e Gollum.Gollum? Sim, Gollum.Não fosse Gollum, a jornada não poderia estar completa.

O papel de Frodo competia em carregar o Anel e o papel de Gollum competia em destruir o Anel. Frodo tinha o desprendimento e desapego pelas questões envolvendo o poder e a ganância.Gollum reunia em si o apego ao poder e a ganância, características complementares e  opostas as de Frodo. Gollum e o Um  Anel eram um só, há uma relação fusionada, simbiôntica entre ambos, a vida de Gollum, estava ligada ao Um Anel, da mesma forma como a vida de Denethor estava ligada ao cargo de Regente, e caso este não pudesse  mais ser o Senhor de Gondor, era preferível a morte.E esta acabou por ser a escolha do Regente. Esta fala de Gollum deixa claro que ele e O Um Anel, estavam ligados simbioticamente, eram um só :

" – Não mate nós – chorava ele – Não machuque nóss com aço cruel e mau! Deixe nós viver, é sim, viver um pouco mais. Perdidos, perdidos! Estamos perdidos. E quando o Precioso se for vamos morrer, é sim,  morrer na poeira ssuja . – Levantou um pouco das cinzas da trilha com os dedos descarnados – Ssuja ! – chiou ele." (14)

Porém, a destruição de Gollum juntamente com o Um Anel, vai além de uma morte egoísta , pois com este fato veio a salvação da Terra Média.
Na alquimia durante o opus, a obra alquímica, o processo que visava a obtenção da pedra filosofal, eram sempre utilizadas duas espécies de matérias-primas; o enxofre e o mercúrio. Numa correlação com estes dois símbolos alquímicos, podemos traçar o paralelo da seguinte forma:

 Frodo/ Ego              +         Gollum/ Inconsciente            = Self (pedra filosofal)
  (mercúrio, princípio passivo)         (enxofre, princípio ativo)  
 
"MERCÚRIO
O mercúrio é um símbolo alquímico universal e geralmente aquele do princípio passivo, úmido, yin. O retorno ao mercúrio é, em termos de alquimia, a solução, a regressão ao estado indiferenciado.Do mesmo modo que a mulher está sujeita ao homem, o mercúrio é o servidor do enxofre. Segundo certas tradições ocidentais, o mercúrio é a semente feminina e o enxofre, a masculina: sua união subterrânea produz os metais. O mercúrio tem o poder de purificar e fixar o ouro. É um  alimento de imortalidade, mas também um símbolo de libertação."
(15)

A descrição  acima a respeito do mercúrio, traz algumas características relacionadas a Frodo. Assim como o mercúrio no processo alquímico de obtenção da lapis, Frodo é o elemento passivo, ele é o portador do Anel. Frodo escolheu ser o portador voluntariamente, sem coação, sem ameaças violentas, sem apelos. Frodo compreendeu qual era seu papel, qual era sua parte na jornada, ele é o servidor que se desprende, se abstém e se sacrifica em prol do sucesso da empreitada da Sociedade do Anel.

Frodo representa simbolicamente o ego em processo de individuação, que se vê obrigado a se desvencilhar e recusar a satisfazer apenas as vontades e objetivos  egoístas, que são de natureza unilaterais e parciais.  E de maneira voluntária  o ego se torna o servidor do Self, objetivando atingir os objetivos da totalidade da personalidade que englobam também o inconsciente, e não apenas os do ego.

Outras características relacionadas ao mercúrio e Frodo, são as de terem o papel de purificador e libertador. Frodo tinha como objetivo salvar o Condado da malignidade dominadora de Sauron, tomando sobre si o peso de ser o Portador do Um Anel. Assim como o ego no processo de individuação que resolve tomar sobre si o peso, o desconforto e constrangimento de sua confrontação com a sombra.

O ego ao se confrontar com a sombra, se purifica e se liberta de seus hábitos nocivos e velhos vícios de comportamento que dominam o indivíduo muitas vezes por uma vida toda. O papel de Frodo consistia em ser o portador do Anel. Porém, destruí-lo não cabia ao portador.

"ENXOFRE
O enxofre é o princípio ativo da alquimia, aquele que fecunda, ou o mata. O enxofre corresponde ao fogo, como o mercúrio à água. É o princípio gerador masculino, cuja ação sobre o mercúrio produz os metais subterraneamente. A ação do enxofre sobre o mercúrio o mata e , ao transmutá-lo, produz o cinabre*, que é uma droga da imortalidade. A constante relação do enxofre com o fogo por vezes também o associa ao simbolismo infernal (ELIF, GUET). Em Jó, 18, 15, o enxofre aparece como um símbolo de esterilidade, à maneira de um desinfetante. Espalha-se na morada do Rei dos terrores. É o aspecto infernal  e destruidor do símbolo, o seu sentido positivo invertido em sentido contrário.

Segundo outra tradição esotérica, que se associa à primeira, o enxofre simboliza o sopro ígneo e designa o esperma mineral.  É,  portanto, igualmente associado ao princípio ativo. Produz a luz ou a cor (ALLA, 245). Para os alquimistas, o enxofre estava para o corpo como o sol está para o universo (MONA, 60). O ouro, a luz, a cor amarela, interpretadas no sentido infernal de seu símbolo, denotam o egoísmo orgulhoso que só busca a sabedoria em si mesmo, que se torna a sua própria divindade, seu princípio e seu fim (PORS, 84).

A chama amarela esfumaçada com enxofre é,  para a Bíblia, essa antiluz atribuída ao orgulho de Lúcifer; a luz transformada em trevas … vê bem se a luz que há em ti não é treva (Lucas, 11, 36).

É um símbolo de culpa e punição, razão pela qual era empregado no paganismo para a purificação dos culpados, segundo G. Portal (PORS, 86)." (16)

O texto acima traz uma descrição a respeito das características do enxofre e sua representatividade simbólica. Podemos notar que as características descritas a respeito do enxofre, também são características pertencentes a Gollum. Assim como o enxofre é o princípio ativo no processo da obtenção da pedra filosofal, Gollum também é o princípio da ação na destruição do Um Anel.

Pois Gollum foi o responsável pela ação direta na destruição do Precioso. O Um Anel  e Gollum tinham se tornado um só tal como uma relação fusionada e simbiôntica entre ambos, desta forma se o Um tinha de ser destruído, Gollum também deveria ser destruído, pois eram um só.
Outras características, dizem respeito ao egoísmo orgulhoso que busca a sabedoria em si mesmo, se tornando sua própria divindade, seu princípio e seu fim.

Na luta pela obtenção do Precioso, Sméagol assassinou Déagol, com  medo, com culpa e desesperado,  Sméagol passa a viver uma vida de isolamento e solidão, por conta de seu sentimento de culpa e por egoísmo orgulho, ele se torna auto-suficiente pois todo aquele que é culpado merece ser punido, a punição é o isolamento e distanciamento de tudo e de todos.

Gollum simboliza o ego orgulhoso que se recusa a admitir suas falhas e insuficiências , que ao mesmo tempo vive se culpando e se punindo ao persistir nos mesmos erros, a conseqüência por muitas vezes são os relacionamentos superficiais com as pessoas, podendo chegar até mesmo ao isolamento social. Mas, como Gandalf disse:
 

"Gollum ainda tem um papel a cumprir." (17)

Ao guiar Frodo até a toca de Laracna, Gollum tinha por objetivo se apossar de seu Precioso,após a aranha gigante atacar e devorar Frodo. Porém,  este poderia não ser o objetivo de Sméagol.Sméagol e Gollum, representam duas personalidades opostas, pertencentes a um mesmo indivíduo. Sméagol representa a personalidade de um pacato e humilde hobbit, sociável, simples e sem ambições egoísticas.

Gollum representa um padrão de personalidade que não é  aceito dentro da sociedade do Condado, logo as características referentes a Gollum, devem ser reprimidas pela consciência de todo hobbit, pois caso contrário, seria rejeitado e considerado não apto para o convívio em sociedade. Gollum simboliza a sombra coletiva de todo o povo hobbit, uma vez que ele expressa um padrão de comportamento oposto ao da consciência da sociedade do Condado.

Porém, todo conteúdo reprimido pela consciência, não é eliminado, tal conteúdo que é rejeitado, considerado hostil e não aceitável pela consciência, continua vivo e atuante na sombra do indivíduo. Estamos falando de um povo, que considera como sendo referentes ao seu padrão de comportamento as características de serem simples, humildes, pacatos, sociáveis e sem ambições egoísticas. Em contrapartida, o povo hobbit rejeita e reprime os conteúdos referentes a serem agressivos, individualistas, orgulhosos, e de ambições egoísticas.

Uma vez que, todo o conteúdo reprimido retorna a consciência, logo os conteúdos reprimidos iriam tomar a forma de uma personalidade autônoma e tomariam o controle da consciência de um hobbit que expressaria todo o drama de um povo.Este hobbit é Sméagol . Sméagol simboliza a neurose e cisão do povo hobbit. Como resultado desta cisão a personalidade autônoma de conteúdos considerados hostis pela consciência dos Pequenos, tomou todo o espaço e controle na consciência de Sméagol. Esta personalidade autônoma, recebeu o nome de Gollum. Agora, desta vez a personalidade de Sméagol é a que fora reprimida, passando a ocupar o lugar na sombra, lugar que antes  era de Gollum.

E assim como Gollum pretendia tomar seu lugar na consciência, desta vez, Sméagol passa a ser a personalidade reprimida na sombra, que buscará novamente seu espaço na consciência do hobbit atormentado. Vamos retomar a seguinte fala de Gandalf :

"…– mesmo assim, meu coração de alguma forma sabia que Frodo e Gollum iriam se encontrar antes do fim. Para o bem ou para o mal.
Mas sobre Cirith Ungol não falarei esta noite. Traição, é a traição que receio; traição daquela criatura miserável. Mas precisava ser assim vamos nos lembrar de que um traidor pode trair-se a si mesmo e fazer o bem que não pretende. Pode ser assim algumas vezes."
(18)

Enquanto Gollum deseja o Um Anel e tem sua vida ligada a ele, Sméagol vive com sua culpa por ter assassinado Déagol . Sméagol é a sombra de Gollum, e como já foi dito, todo conteúdo na sombra deseja retornar a consciência. Afim de que o ego se conscientize a respeito dos conteúdos reprimidos, a sombra, passa verdadeiras "rasteiras" no ego. Um grande exemplo, do que pode ser uma "rasteira" ou atuação da sombra, é este aqui :

"Mas Gollum, dançando como um louco erguia o anel, com um dedo ainda enfiado no circulo, que agora brilhava como se realmente fosse feito de fogo vivo.
– Precioso, precioso, precioso!  – gritava Gollum – Meu Precioso! Ó, meu Precioso! – E assim, no momento em que erguia os olhos para se regozijar com sua presa, deu um passo grande demais, tropeçou, vacilou por um momento na beirada, e então com um grito agudo caiu. Das profundezas chegou seu último gemido, Precioso, e então ele se foi."
(19)

No texto acima, temos um belo exemplo de como a sombra se manifesta, atuando de maneira autônoma, decisiva e às vezes, até de  forma trágica, como no caso de Gollum. Podemos entender este passo grande demais, o tropeço e o vacilo, como a atuação da personalidade de Sméagol, querendo ocupar seu lugar na consciência novamente.

E, além de retomar seu espaço, Sméagol também tinha sua culpa, sua autocondenação de séculos, que poderia ser compensada por um ato de bravura,  como interferindo de forma decisiva na destruição do Um Anel, frustrando para sempre os planos de Gollum e de Sauron, consecutivamente, livrando a Terra Média para sempre do poder maligno do agora ex- Senhor de Mordor. O hobbit Gollum / Sméagol trouxe a paz e a salvação não pretendidas por ele, através da resolução de seu conflito interno. Embora , tenha sido de forma trágica, ainda assim foi uma resolução de conflito psíquico.

Outra representatividade simbólica que encontramos em Sméagol / Gollum, é referente a um símbolo encontrado na alquimia, o símbolo da serpente ou dragão Uroboros (também conhecida como Ouroboros). Este símbolo é a imagem de uma serpente ou dragão, que devora o próprio rabo ou cauda, formando a figura de um circulo, uma mandala, símbolo do Self, a totalidade psíquica. Esta é a definição de mandala :

" Mandala : Círculo mágico. Na obra de C.G.Jung, símbolo do centro da meta, e do si-mesmo, enquanto totalidade psíquica; auto-representação de um processo psíquico de centralização da personalidade, produção de um centro novo desta última. A mandala exprime-se, simbolicamente por um círculo, um quadrado ou um quatérnio, num dispositivo simétrico do número quatro e de seus múltiplos." (20)

De acordo com a definição acima , a respeito do símbolo da mandala, podemos traçar um paralelo com Sméagol Gollum e o Uroboros. O Uroboros ao devorar sua própria cauda, representa o início e o fim de um ciclo de evolução em si mesmo, um símbolo de morte e renascimento, de desenvolvimento e renovação da personalidade.

 
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 Dragão Uroboros devorando a própria cauda, símbolo da totalidade psíquica, o Self.
 
 
Basta lembramos que Sméagol / Gollum é responsável direto pela ressurreição e  destruição do Um Anel. Ou seja a jornada do Um Anel tem o seu começo e o seu final em Sméagol / Gollum.
 
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Serpente Uroboros devorando a própria cauda, símbolo do Self.
 
 
O começo, quando ele se apossa do seu Precioso na beira do lago após assassinar Déagol, o final quando o Anel é destruído  na Montanha da Perdição. Sméagol / Gollum representa também o início e o fim de uma era da Terra Média. O fim da terceira era, a era dos elfos, e o início da quarta era, a era dos homens, vemos aqui o símbolo do quatérnio, outro símbolo representante da totalidade psíquica, já explorado na análise de "As Duas Torres". E, como não poderia deixar de ser, o próprio Um Anel por ser um circulo e por estar fusionado com Gollum, também simboliza uma mandala, símbolo do Self.
 
 
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Um Anel, símbolo da mandala, outro símbolo representante da totalidade psíquica.
 
 
(Fim da parte 1. Continua)
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