Beowulf vs O Senhor dos Anéis

Escrito por Fábio Bettega
beowulf_salon_1.jpgO novo filme de Robert Zemeckis "Beowulf" dá um sentido inteiramente novo à frase "o sublime e o ridículo". Zemeckis pegou o mais antigo e mais importante texto da língua inglesa e o tornou em uma viagem 3-D à Disneylândia tão pipoca que poderia ser chamada de "Anglo-Saxões do Caribe". Claro, não há nada novo ou surpreendente sobre isso. Hollywood tem profanado a história e a literatura desde muito antes de Cecil D. DeMille ter colocado Charlton Heston como Moisés. Se a Bíblia não é sagrada, porque o mais antigo poema da ancestral língua inglesa seria?

 
Mas a vestimenta de "Beowulf" é especialmente brilhante, devido ao óbvio contraste com outro trabalho que minou no mesmo campo antigo: "O Senhor dos Anéis" de J.R.R. Tolkien. "Beowulf" não é apenas um filme ruim, embora visualmente espetacular, é também uma enorme oportunidade perdida. Com suficiente ousadia imaginativa, Zemeckis poderia ter criado um universo mítico, um que encontra as linhas misteriosas que conectam o passado distante ao nosso tempo. Ao invés disso, ele tornou nossa herança cultural em um desenho animado. (Isto não feriu “Beowulf” na renda de cinema: foi o filme que mais vendeu ingressos nos EUA após sua primeira semana).

Comparar “Beowulf” à obra-prima de Tolkien é colocar os parâmetros muito altos, mas a escolha de Zemeckis por “Beowulf” a tornou inevitável. Não há nenhuma razão para embarcar em “Beowulf” a menos que você queira ir até o fim. Isto é verdade não apenas porque é um texto canônico, mas porque não há uma maneira de fazer um filme dele. Quando encarando o impossível, é melhor você trazer alguma magia ao empreendimento. Você precisa mais do que efeitos especiais 3-D – você precisa de uma imaginação 3-D.

"Beowulf" é a peça mais antiga da literatura Européia vernicular, e permanece talvez como a mais profunda, uma visita sobrenatural a um canto escuro perdido de nossa história, uma era presa entre paganismo e Cristandade. A inescrutabilidade de "Beowulf" o tornou campo de disputa para estudiosos por mais de um século. Uma vez que mesmo os especialistas não conseguem concordar sobre o que ele significa, como um artista moderno poderia abordá-lo?

Claro que não há resposta correta ou errada a esta pergunta. Zemeckis tinha o direito de escolher qualquer material fonte que desejasse, e fazer o que quisesse com ele. E talvez sua extravagância high-tech desperte interesse não apenas no antigo poema, mas mesmo na herança germânica esquecida dos americanos e ingleses – talvez na própria história. Mas se o fizer, não será por causa de sua visão artística.

Para aqueles leitores que fizeram como diz Woody Allen em “Annie Hall” e tiraram uma soneca em todas as aulas que incluíam “Beowulf”, aqui vai um resumo. “Beowulf” é um poema de 3.183 linhas, escrito por um poeta desconhecido em Inglês Arcaico (também conhecido como Anglo-Saxão, a língua germânica falada na Inglaterra antes da Conquista Normanda), provavelmente no século 8, mas possivelmente alguns séculos depois. O poema existe em um único manuscrito, uma cópia feita por volta do ano 1.000 e que está no Museu Britânico. Os eventos que ele relata se passam no que agora é a Dinamarca por volta do ano 500, de forma que o autor já está olhando para um passado distante. Crucialmente, ele é um Cristão, que tem uma relação altamente ambígua com o herói pagão que celebra. Estudiosos continuam a debater a sua exata natureza, a de seu poema e a de sua audiência Cristã e atitude com relação ao paganismo – bem como praticamente tudo mais sobre o poema.

A história é austera e estranha. Um monstro chamado Grendel, um descendente do bíblico Cain, tem aterrorizado o reino da Dinamarca por 12 anos. Um grande guerreiro chamado Beowulf jura matar Grendel. Ele e 14 homens navegam de seus lares em Geatland (sul da Suécia) para a Dinamarca, onde Beowulf mata o monstro e então a horrível mãe do monstro. Ele recebe presentes e honrarias do idoso rei Dinamarquês e volta para casa, onde reina por 50 anos. Quando um dragão assola seu reino, Beowulf procura o monstro e o mata, mas ele também é mortalmente ferido. Após sua morte ele é lembrado por seu povo como o mais gentil dos reis e o mais ávido pela fama.

Sejam quais forem suas virtudes históricas e literárias, não é sua história que vai colocá-lo no cinema local. Qualquer adaptação fiel de “Beowulf” quase certamente seria um fracasso comercial, devido à essência mítica do poema. Seus personagens são unidimensionais e só há uma linha de roteiro: o herói envelhece e morre. Sua grandeza está em sua linguagem, não sua história. “Beowulf” é um poema difícil e assombrado, que evoca o que o “Cambridge History of English Literature” chama de “desconhecido vago e palpável”. Inglês Arcaico é uma língua estranha, mas se você conhecer inglês e ler uma edição bilíngüe, como a bela tradução de Seamus Heaney, de quando em quando encontrará uma palavra familiar, como uma pequena pedra atirada em um mar turbulento. Para Tolkien, um filólogo que desde criança era naturalmente sensitivo ao som da língua como o jovem Mozart era para música, o próprio som do Inglês Arcaico é revelatório. Como professor de Anglo-Saxão em Oxford, Tolkien empolgava suas turmas com sua recitação dramática do início de “Beowulf”. (Em uma carta a Tolkiem, W.H. Auden escreve reverentemente, “Sua voz era a voz de Gandalf”.)

Existe uma versão cinematográfica de “Beowulf” que é literalmente verdadeira á original: o ator Benjamin Bagby recita o poema inteiro no original em Inglês Arcaico, tocando harpa Anglo-Saxônica. É uma atuação memorável, mas é improvável que o filme seja mostrado em locais que cobram entrada.

Visando uma audiência mais ampla, o filme de Zemeckis e as três versões anteriores de “Beowulf” alteraram radicalmente a história. Dois dos filmes mais antigos tomam uma abordagem não-mitológica tentando imaginar que eventos reais deram origem ao conto sobrenatural. “Beowulf e Grendel”, feito em 2005 e filmado na Islândia, faz de Grendel um simpático Pé-Grande, um ser solitário e vagamente Neanderthal que está se vingando dos Dinamarqueses após estes terem matado seu pai. “O Décimo-terceiro Guerreiro” (1999), baseado em um romance de Michael Chichton, também elimina o sobrenatural: os monstros são humanos vestidos em peles de urso. Em um toque divertido, ele é contado da perspectiva de um diplomata Árabe que inadvertidamente se encontra no bando de Beowulf. Ambos são esforços válidos e o excêntrico “Beowulf e Grendel” algumas vezes se eleva a uma intensidade hipnótica, embora seja dolorosamente irregular. O “Beowulf” de 1999, estrelado por Christopher Lambert, é comicamente terrível, um candidato perfeito para um episódio do “Mystery Science Theater”. Ele é ambientado em um futuro pós-apocalíptico, com Beowulf sendo um herói taciturno e obcecado. A grande inovação é a mãe de Grandel, que se tornou uma monstra horrível/gostosa, encenada por uma modelo loira da Playboy vestindo uma rede, que previamente seduzira o velho rei (de cuja união profana Grendel surgiu) e tenta usar seus poderes malignos em Beowulf acariciando sua espada. Quando isto falha, ela se torna em uma harpia meio-pterodáctila, cheia de asas.

O “Beowulf” de Zemeckis usa a mesma narrativa, embora não tão comicamente. Mais uma vez a mãe de Grendel é uma gostosa demoníaca (elevada de uma mera Coelhinha para Angelina Jolie) que também dorme com o velho rei. O roteirista Roger Avary e o estimável Neil Gaiman (que deve estar lamentando o dia em que aceitou participar deste projeto) “avançam” esta narrativa também fazendo Beowulf sucumbir aos charmes malignos dela. A corrupção de Beowulf volta para caçá-lo 50 anos depois, quando ele se redime de seus pecados lutando contra o dragão maligno em uma batalha climática que resulta em sua morte.

beowulf_salon_2.jpgO problema com o “Beowulf” de Zemeckis não é que ele se distancia da história original, ou que seu roteiro é inerentemente intrabalhável. Para gerar qualquer tipo de tensão narrativa, Beowulf tem que mudar, ser algo mais além de um heróis virtuoso e bravo. A solução do filme, embora muito óbvia e de alguma forma anacrônica (a figura da bruxa corruptora e sexualmente poderosa é mais associada com a baixa Idade Média, em um personagem como Morgana le Fay, do que com a literatura Anglo-Saxã), teoricamente poderia ter funcionado. Mais ainda, ele poderia ser justificado nos termos de certas leituras críticas do poema: de acordo com uma forte interpretação Cristã, a morte de Beowulf é sua redenção pelo pecado do orgulho, no qual ele sucumbiu enquanto rei. Por exemplo, em seu livro de 1989 “The Condemnation of Heroism in the Tragedy of Beowulf” Fidel Fajardo-Acosta argumenta que a “batalha com a mãe de Grendel representa a iniciação de Beowulf em sociedade de gigantes Caínicos, e ao estado de ser demoníaco”.

“Beowulf’ não falha por ter alterado a história: falha porque está tão ocupado embelezando a história que não cria um universo mítico. Não tem visão transfigurante. Baseia-se em um conto antigo, cujas raízes invisíveis são profundas em nossas psiques, e o utiliza para construir um entretenimento brilhante e de plástico. Toma um conto selvagem e o transforma em uma besta domada. Mas “Beowulf” é o tipo de história que não tem sentido a menos que seja parte de uma cosmologia. Ele é, resumidamente, um mito.

J.R.R. Tolkien, o autor que criou o universo mítico mais poderoso de nosso tempo, também era um renomado estudioso de “Beowulf”. “O Senhor dos Anéis” foi profundamente influenciado por este poema e Tolkien escreveu aquele que continua sendo um dos textos seminais sobre o mesmo. A análise Tolkieniana de “Beowulf”, e mais genericamente da fantasia e mito, esclarecem porque ele foi capaz de criar uma obra-prima mitopoética moderna e porque “Beowulf” falha.

“Beowulf: The Monsters and the Critics”, publicado em 1936, marca um ponto de virada nos estudos críticos do poema. Antes do ensaio de Tolkien, a maioria dos estudiosos se referia ao uso, pelo poeta desconhecido, de elementos sobrenaturais – o monstro Grendel, sua igualmente monstruosa mãe e o dragão – como primitivo ou infantil. Argumentando que estes temas “triviais” falhavam em fazer justiça à bela linguagem do poema, eles viam “Beowulf” como sendo de interesse primariamente histórico, não artístico. Como o estudioso W.P. Ker escreveu em 1904, “A coisa em si é de pouco valor; a moral e o espírito dela só podem encontrar iguais entre os mais nobres autores”. Tolkien mudou estas concepções. Ele argumentou que o poema deveria ser lido como um poema e reconhecido como um grande poema. Os elementos fantásticos em “Beowulf”, longe de serem embaraçosos, são inseparáveis de sua majestade artística.

Em uma famosa alegoria, Tolkien compara o autor de “Beowulf” com um homem que, herdando um campo cheio de pedras antigas, as usa para construir uma torre. Seus amigos, reconhecendo que as pedras pertenceram a uma construção mais antiga, destruíram a torre “para olhar as gravações escondidas e inscrições”. O que ele não perceberam, termina Tolkien, era que “do topo daquela torre o homem foi capaz de olhar o mar”.

O ponto de Tolkien é que os elementos fantásticos em “Beowulf” são arquétipos antigos que têm raízes profundas nas crenças, medos e desejos humanos – mitos, em outras palavras. E em “Beowulf”, ele argumenta, estes mitos são partes essenciais do conto trágico cujo tema é “homem em guerra contra um mundo hostil, e sua inevitável derrocada no Tempo”. A grandeza de Beowulf deriva do fato de que é um poema criado em “um momento carregado de equilíbrio”: é balanceado entre uma visão de mundo Cristã, na qual morte e derrota são ambas derrotadas definitivamente por Cristo, e uma Germânica, pagã, na qual o destino governa tudo e apenas a coragem de um homem confere nobreza. Ele é, Tolkien escreve, não um poema primitivo, mas um tardio. O mundo pagão já é passado, mas o poeta continua a celebrar ser poder já inexistente. O fato do um poema escrito há mais de mil anos atrás estar ele próprio olhando para trás, para um mundo perdido, dá ao poema uma ressonância sobrenatural duplicada ao leitor moderno: “se o funeral de Beowulf era como um eco de um antigo hino funerário, distante e sem esperança, é pra nós uma memória trazida por sobre as colinas, um eco de um eco”.

O brilhante artigo de Tolkien pode ser visto como uma sonora defesa não apenas de “Beowulf”, mas do trabalho que ele estava prestes a empreender, outra grande torre composta de pedras antigas. E os temas de tardiedade, de perda heróica, sendo pegos entre uma era e outra (seu mundo não é chamado de “Terra-média” à toa), são as partes mais profundas e sublimes de seu épico: eles são a atmosfera metafísica assombrada através da qual seus personagens – homens, elfos e hobbits – devem cruzar. O desaparecimento dos elfos, o duro amanhecer da idade dos homens, representam um desencantamento do mundo idêntico ao desencantamento que Tolkien achou insuportavelmente comovente em “Beowulf”. Introduzindo este tema soturno, Tolkien deu expressão artística às dúvidas que ele próprio pode ter sentido sobre o mito que criara – e assim os transcendeu.

beowulf_salon_3.jpg Tolkien foi capaz de utilizar as pedras antigas de “Beowulf” para construir uma obra-prima moderna porque ele reconheceu que o poder duradouro dos mitos deriva de suas verdades profundas. Isto não significa que ele acreditava que orcs e goblins e elfos realmente existiram; isto deriva de sua crença de que o mundo era encantado, iluminado por uma luz sagrada e que as sub-criações humanas que chamamos mitos – “formas vivas que se movem de mente para mente”, como as chamou em um poema que escreveu para C.S. Lewis – são faíscas daquela luz primordial. Para Tolkien, a origem última de encantamento era o Deus Cristão, mas não é necessário compartilhar esta fé para sentir o poder de sua criação.

Os criadores do filme “Beowulf”, contudo, falharam em reconhecer até mesmo que o épico é composto de pedras antigas ou que aquelas pedras poderiam ter algo a nos dizer hoje em dia. Eles gastaram milhões de dólares replicando o visual do passado, mas eles esqueceram de algo que nenhuma tecnologia de captura de movimentos é capaz de capturar: poesia. A essência de “Beowulf”, ou qualquer poema, não pode ser invocada apenas por imagens. Ela deve ser imaginada. E a tradução daquela visão em imagens cinematográficas é uma forma de arte: não pode ser feita por computador.

Neste sentido, a magnífica versão cinematográfica de “O Senhor dos Anéis” feita por Peter Jackson pode levar os diretores a pensar que tudo que devem fazer para contar um conto mitológico é filmar as ações e deixar que o poder do filme preencha as lacunas poéticas. Mas não é assim tão fácil. O filme de Jackson tem sucesso não porque captura o visual do mundo de Tolkien, mas porque ele captura seu coração.

É injusto e pode parecer até mesmo cômico, discriminar um entretenimento trivial como “Beowulf” por falhar em ter a profundidade de uma obra-prima antiga. Há muitas mansões no mundo da arte, e há uma sala para os óculos 3-D e batalhas digitalizadas, bem como para Mahler e Edith Wharton. Mas nós temos muitos contos de fada ruins e coisas high-tech de mau gosto e poucos “Beowulf”. Pelo menos podemos pedir àqueles que se aventuram naqueles reinos distantes e obscuros que não vistam roupas de palhaço. Eles estragam nossa visão do mar.

 
Fonte: Salon 
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