Tolkien: o Arquétipo e a Palavra

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Escrito por pandatur

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

    O Senhor dos Anéis incorpora uma "moralidade inerente"[1], como Tolkien costuma chamar, que tem grande parte de sua origem nas tradições Cristãs e nas poesias épicas. Ainda assim, a trilogia não é explicitamente religiosa, assim como também não possui qualquer caráter alegórico ou doutrinador.

 
Tolkien bem sabia que a forma Dantesca¹  para épicos Cristãos, onde a história sem muito esforço assume o formato dogmático, não pode ser imitado com sucesso em tempos pós-Românticos. No Paraíso Perdido de Milton, o sacramentalismo – elemento fundamental para a visão de Dante – já foi transformado. O verdadeiro cerne do épico de Milton é o "paraíso interior", e a estrutura doutrinadora que dá apoio ao poema é idiossincrático, como descobriremos em A Doutrina Cristã. Para Milton, as experiências subjetivas, e não as fórmulas doutrinadoras construídas por palavras, são a chave para a fé, e o "realismo" Medieval – estilo que assume participação das palavras na realidade extramental onde possuem significado – não é parte da consciência que produziu o Paraíso Perdido.
    O que permanece em Milton, de forma geral, são os grandes temas dos épicos Cristãos: em primeiro lugar e como tema mais importante, que o verdadeiro heroismo é espiritual; também, que amor é obediência e envolve liberdade; que fé e esperança estão baseados na caridade; que a providência dirige os assuntos do mundo. O leitor é a todo momento desafiado a tomar uma atitude com relação a estes assuntos, e as várias mudanças de tempo e espaço – paradísicos, infernais, passados, futuros, pré-lapsariano, pós-lapsariano²  – são meios de chamar a atenção do leitor para o desafio. Em nenhum outro poema Cristão, o real significado (implícito) parodia tão energicamente as ortodoxias canônicas da forma exterior.
 
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¹ Foi utilizada letra maíuscula pois refere-se à famosa obra de Dante Allighieri, A Divina Comédia. Não confundir com "algo horroroso e medonho" (dantesco).
² Terminologia utilizada por filósofos na leitura de Paraíso Perdido, concernente ao instante onde foi cometido o pecado original (lapso).
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    Na época de Blake (que, significativamente, via Milton como um espírito nobre exceto por sua doutrina), o "paraíso interior" havia encontrado expressão na linguagem mesmo quando removida para além da ortodoxia canônica de Milton. Os Românticos herdaram primeiro a visão de Blake, assim como basicamente Tolkien o fez, sendo em essência um pós-Romântico assim como seus amigos C.S. Lewis, Owen Barfield e Charles Williams. Uma consequência disto é que os principios dos épicos Cristãos são experimentados em Tolkien não explicitamente, mas como temas incorporados, um mapa de valores como em Paraíso Perdido, e sem o dogmatismo teológico tradicional que o grande poema de Milton já estava em processo de rejeição. A trilogia situa-se, significativamente, no domínio essencialmente interior das Fadas, próximo ao mundo dos sonhos e mitos onde, Tolkien diz-nos, "os desejos humanos primordiais"[2] podem ser encontrados e interpretados.
 
    O sabor de arquétipo na descrição das Fadas, em conjunto com o seu cenário-de-sonhos na Terra Média, já evocaram prontamente nos críticos a linguagem e o pensamento de Jung [3] e, em um contexto histórico, Jung é certamente o primeiro exemplo no século XX da "interiorização" da experiência espiritual tão característica na religião pós-Romântica. Neste contexto, o psicanalista complementa o escritor dos contos de fadas e, porque ele enfrenta problemas semelhantes em linguagem semelhante, Jung também pode oferecer pontos de vistas interessantes sobre a estrutura do trabalho de Tolkien. O Senhor dos Anéis pode ser lido, com consistência surpreendente, como uma jornada interior através da psique – como Jung a descreveria – e as estruturas arquétipas na trilogia serão a preocupação central deste ensaio. Ainda assim eu gostaria de estabelecer desde o começo que uma aproximação puramente Jungiana têm suas limitações, pois Tolkien a todo momento avaliava os arquétipos, mesmo que implicitamente, sob a luz das convenções literárias dos épicos Cristãos. A Palavra, no sentido Cristão, é um arquétipo primário que para Tolkien tanto espiritualiza e revalida para o homem o mundo extramental histórico e sua estensão material. Somente em uma realidade física cuidadosamente observada pode a subcriação das Fadas alcançar, como alcançou para Tolkien, seu real encanto, e abrir-se para a verdade que ele descreve, em termos arcaicos, como Eucarística[4]. O enorme esforço dispendido com o pano de fundo histórico da Terra Média não foi feito sem necessidade. Ele salva o livro de se tornar uma alegoria, ou uma fantasia pobre sobre "espaço interior" e em sua visão "eucarística" da história e dA Palavra, Tolkien enfoca novamente os problemas-chave dos épicos Cristãos em tempos modernos: as possibilidades do sacramentalismo, e a relação dos arquétipos internos humanos com as or
denanções Cristãs e temas heróicos.
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I. Os Arquétipos

    O grupo de amigos para quem Tolkien leu pela primeira vez O Senhor dos Anéis, os assim chamados Inklings (Seres de Nanquim), acharam Jung temperamentalmente atraente, apesar deles também o observarem com grau de suspeita. C.S. Lewis declarou que ele estava "encantado" por Jung, e tinha – em várias ocasiões – "escorregado" para um modo Junguiano de criticar [5]. Ele admite que Maud Bodkin, o pioneiro crítico de literatura que trabalhou com padrões arquétipos Junguianos, exerceu considerável influência sobre ele [6]. Owen Barfield elogia Jung por compreender a natureza espiritual da consciência e de sua evolução: o "inconsciente coletivo" Junguiano e o fascínio que os mitos exercem, são antídotos extremamente necessários para o materialismo do século XX que ameaçava transformar até mesmo o homem em um objeto [7]. Do lado negativo, Lewis achava que a própria explicação de Jung das "imagens primordiais" despertava uma imagem primordial da mais alta qualidade: a limitação de Jung é que ele usava um mito para explicar outro mito [8]. Barfield sente que – o que aumenta a importância deste argumento – em Jung as "Hierarquias Espirituais" [9] retiraram-se do mundo, e existem dentro (interiorizados) da força de vontade e da determinação de cada indivíduo, e assim totalmente desconectados do mundo extramental. É importante não colocar as palavras de Lewis e Barfield na boca de Tolkien (ele era tão difícil de ser influenciado quanto um babassura¹ , de acordo com Lewis)[10], mas ainda assim Tolkien ao menos partilhava os interesses e a maneira de pensar de seus amigos [11]. Certamente, o leitor deste ensaio sobre contos de fadas não pode evitar facilmente o sabor Junguiano de várias teorias chave de Tolkien. Ele descreve o Reindo das Fadas relacionando-o com sonhos, declarando que em ambos "poderes estranhos da mente podem ser liberados" (13). Ele fala dos encontros em contos de Fadas como sendo "certos desejos humanos primordiais" (13), e afirma que as estórias "não estão primariamente preocupadas com a possibilidade, mas com desejo" (40). Ele fala de um "Caldeirão de Estórias" que aguarda "pelas grandes figuras do Mito e da História" (29). Estes são adicionados ao caldeirão como pedaços frescos de um estoque de ingredientes que vêm cozinhando em fogo brando desde os primórdios do hábito de contar estórias, ou seja, da própria mente humana. No ensaio sobre Beowulf, Tolkien aprecia especialmente o equilíbrio e "a oposição entre fins e começos, o progresso a partir da juventude até a velhice de um herói, e a satisfação que surge da percepção do 'surgimento e do estabelecimento'"[12] de uma vida.

 
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¹ Bandersnatch, usando a tradução que Augusto de Campos fez de Alice no País das Maravilhas – Lewis Carroll

(http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=946)

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    Podemos facilmente perceber aqui a típica insistência Junguiana em sonhos e fantasias [13], a teoria de um inconsciente coletivo que (como o Caldeirão de Tolkien) contém arquétipos que são postos em atividade pelo artista, e a teoria da transformação na psique individual, por meio de começos e finais que são equilibrados em uma vida humana de sucesso. Mas mais imporante que isso, a teoria de Tolkien encontra corpo por completo nO Senhor Dos Anéis. A trilogia se passa no Reino das Fadas, neste caso, no mundo imaginário da Terra-Média, em uma época próxima do começo da ascensão do homem na história do mundo. A Terra-Média frequentemente possui um caráter onírico: um mundo de contornos mutantes e de magia, de terror como que saído de um pesadelo ou delicada beleza etérea. Animais prestativos e traiçoeiros trabalham pelos poderes do bem e do mal, e as paisagens tornam-se materializações conscientes dos medos e desejos humanos. É um passo muito curto para o surgimento de espíritos da natureza, como Tom Bombadil, ou a magia dos Elfos e, à medida que nos movemos para mais próximo daqueles que possuem poder e sabedoria sobrehumanos, os próprios contornos de tempo e espaço tornam-se indefinidos. Apesar de controlados por uma narrativa artísica e por oposições estruturais básicas, tais luz e trevas, bem e mal, a estória desenvolve-se basicamente em um mundo onde formas e imagens misturam-se, fluem e interpenetram-se, onde os olhos do observador determina o medo e o terror, a beleza e a glória. Tudo isto tem a exata qualidade daquele "espaço interior" [14] que Barfield nomeou como sendo a província especial de Jung. 
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    Para Jung, certamente os contos de fadas e sonhos est
ão caracteristicamente cheios de animais e monstros prestativos e traiçoeiros, e de paisagens, especialmente quando elas envolvem matas e montanhas, que são representações favoritas do inconsciente [15]. Jung também fala de uma figura comum, o "gênio da mata"[16], soberano das florestas, que está associado com matas e águas de uma maneira que nos lembra Tom Bombadil. Magia também é importante, e Jung explica como "a concentração e tensão de forças psíquicas possuem uma característica que dá a elas uma aparência mágica"[17]. Ele também enfatiza a "contaminação" de imagens, e com estas palavras ele quer falar sobre a tendência do conteúdo transbordar de seus contornos – em "uma fusão de imagens"[18]. Este tipo de coisa, diz Jung, pode parecer como uma distorção e ser aterrador, mas pode também ser um processo de assimilação e fonte de grande beleza e inspiração. Sua percepção aplica-se precisamente para o ponto de vista técnico dO Senhor dos Anéis: "O processo de fusão é portanto ou algo muito ruim, ou algo altamente desejável de acordo com o ponto de vista do observador" [19]. Jung também chama atenção para elementos formais característicos em sonhos e contos de fadas, tais como a "dualidade", a "oposição entre luz e trevas" e "rotação (círculo, esfera)"[20], mas insiste que eles não devem ser considerados aparte da energia fluida e complexa da psique. Escolhas morais não são uma simples questão de preto no branco. Jung enfatiza "o papel desconcertante das antinomias"[21] que contribuem para uma maior consciência. O Bem pode ser produzido pelo Mal, e possivelmente conduzir a este. Este processo, que Jung chama de "enantiodromia"¹ [22] é também de importância central na arte de Tolkien: uma ampla oposição da luz contra as trevas, e do bem contra o mal, que torna-se confusa na trilogia à medida em que entramos nas mentes dos indivíduos durante o processo onde lutam para encontrar seu caminho em suas missões. Apesar de Gollum fugir da luz e amar a escuridão, a relação de Frodo com Gollum é extremamente complexa, e através da trilogia as mentes destes dois homens em particular são continuamente ambivalentes.
 
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¹ Enantio refere-se a figuras separadas por uma linha mas que não podem ser sobrepostas. Ou seja, figuras eternamente separadas, como imagens separada do objeto pelo espelho.
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    Que Jung e Tolkien isolassem esses temas tão semelhantes entre si a partir de contos de fada, sonhos, fantasia e mito, dificilmente acharíamos surpreendente, mas em O Senhor dos Anéis o drama interior corresponde – também com especial fidelidade – aos detalhes do processo psiquíco que Jung chama de "individualização". Este processo é, basicamente, "a realização do homem completo"[23], façanha conseguida com um vida equilibrada e plena de realizações quando "consciente e inconsciente estão conectados em uma relação viva"[24]. O processo envoveu uma jornada para o Eu/Ego, que Jung descreve como "não sendo apenas o centro" da psique de uma pessoa, mas também "a circunferência que engloba tanto a consciência quanto a inconsciência"[25]. De forma característica, o Eu/Ego é representado nos sonho e na mitologia como uma mandala – um quadrado dentro de um círculo, ou um círculo dentro de um quadrado, ou em figuras que são esféricas ou contenham a idéia de quartenalidade[26], representando a completute.
 
    Jung insiste que a individualização, ou Identidade, não é meramente a consciência-do-eu[27]. Uma vez que que o ego de visão tacanha responde às exigências do crescimento interior, o caminho é indicado por representações de arquétipos, aquelas imagens primordiais e recorrentes na experiência humana que expressam as estruturas básicas da psique, que tornam-se cada vez mais sobrenaturais, impressionantes e perigosos à medida que eles emergem dos níveis mais profundos do inconsciente. Primeiro e mais próximo à superfície, de tal forma que nós podemos percebê-lo pelo seu reflexo, é a sombra. A sombra é o "inconsciente pessoal" e, entre os arquétipos, é o "mais fácil de se experimentar"[28]. Ele representa os elementos que uma pessoa reprime como sendo incompatíveis com o seu ideal escolhido – "por exemplo, defeitos de comportamento e outras tendências incompatíveis"[29]. A sombra é ambígua – ele contém tendências moralmente repreensíveis, mas pode também apresentar boas qualidades, como qualquer instintos normais que não tivesse sido reprimido e que "são necessários para a consciência"[30]. Nos sonhos, ele é representado como uma figura do mesmo sexo que o sonhador, e de acordo com seu status ambíguo, pode ser uma ameaça que o segue, ou um guia. Ele torna-se perigoso quando ignorado ou mal-compreendido[31].
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  Um pouco mais fundo na consciência, está o arquétipo do anima/animus. Estes são representações do lado feminino do inconsciente do homem, ou o lado masculino do de uma mulher, respectivamente. O anima (que é mais importante para Tolkien) é, como a sombra, ambivalente. Ela é tanto a mãe que alimenta e a que destrói[32]. Por um lado ela é a Beatriz de Dante, a Virgem Maria, as Musas que
inspiram os homens a criar, a garota dos sonhos dos romances populares e das canções. E por outro lado, ela é a bruxa, venenosa e malévola, ou a Sereia que apesar de bela, atrai o homem para sua morte e destruição[33]. Para Jung, "o animus e o anima devem funcionar como uma ponte, ou uma porta, que conduz para imagens do inconsciente coletivo"[34].
   
    Mais ao fundo, e frequentemente apresentado junto com o anima como sendo amigo ou protetor, está o arquétipo do herói. Ele é frequentemente representado em uma situação de perigo ou em uma difícil missão, que "anuncia a antecipação em potencial de um processo de individualização que aproxima-se de sua completitude"[35]. O herói tem frequentemente sobre ele uma aura de superherói, que se contrapõe à sua vulnerabilidade, outra característica essencial, pois ele é ao mesmo tempo semi-deus e criança. "Este paradoxo… percorre através de todo seu destino como uma linha vermelha. Ele consegue enfrentar os maiores perigos que possamos imaginar, e ainda assim, no fim, algo praticamente insignificante é sua ruína"[36]. O arquétipo do herói é frequentemente acompanhado por eventos estranhos e sobrenaturais: "dragões, animais prestativos e demônios – e também pelo Sábio Ancião… todas as coisas que de forma alguma poderiam tocar a fronteira da realidade e do dia-a-dia. A razão disto é que eles têm a ver com a realização daquela parte da personalidade que não veio ainda para a existência, mas ainda está em processo de crescimento"[37].
    O mais profundo arquétipo na jornada em direção ao Eu/Ego é a figura que Jung menciona acima que tem relação com o herói, a saber o Sábio Ancião, uma figura prestativa que, "quando o herói está numa situação desesperadora perigosa… pode tirá-lo de lá"[38]. Ele é o mago, o Guru, uma personificação da sabedoria. Ele não parece estar preso ao tempo, e é favorecido com algum enorme poder, como por exemplo magia. Também, "além de sua inteligência, sabedoria e visão, o velho ancião" é "notável por suas qualidades morais"[39]. Mas ele, como os outros arquétipos, também é uma figura ambivalente. Ele é como Merlin[40], e nele a enantiodromia do bem e do mal pode surgir de forma quase paradoxal.
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  Em O Senhor dos Anéis o tema é uma missão que envolve um anel, símbolo de comprometimento e de completitude que deve ser protegido dos poderes da escuridão e do mal, pelos poderes da luz e do bem, sugere o começo de uma típica jornada através da individualização: a promessa de uma "verdadeira conjuntio" que envolve a ameaça da dissolução, ou "falsa conjuntio"¹. Na jornada, Frodo no começo tem a aparência de uma criança, e deve enfrentar monstros terríveis, dragões e o submundo. Aragorn, seu companheiro, que igualmente enfrenta tais provações, é de origem estranha e real, protetor de uma nobre linhagem e uma figura semidivina com o poder mágico de cura. Frodo e Aragorn representam diferentes facetas do herói – Frodo com sua aparência infantil e Aragorn com sua nobreza e poder – e cada um deles deve apoiar e aprender um com o outro. O Hobbit, por uma boa razão como veremos, recebe maior atenção, e a estória em um sentido especial é dele. À medida que a estória progride, Frodo descarta cada vez mais e mais as maneiras do Condado, e assume as nobres roupagens do heroísmo, adquirindo no fim, um aspecto verdadeiramente poderoso. Mais ainda, à medida que sua compreensão se aprofunda, Frodo move-se através de um processo equivalente à individualização de Jung, que está esquematizada pelo roteiro principal do livro. Ele encontra a sombra (Gollum), anima (Galadriel), e o Sábio Ancião (Gandalf). Cada arquétipo possúi um lado bom e um ruim, o bom conduzindo à compreensão e ao companheirinho, e a ruim para a morte, ao isolamento e a perda de identidade ou do Eu/Ego. Assim Galadriel está em oposição a Laracna, os heróis se opõem aos Espectros do Anel, e Gandalf ao perverso mago Saruman. Gollum é, por natureza, ambivalente. Ele é a sombra, ou o insconciente, e nós lidaremos com ele primeiro.

 
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¹ A palavra conjunctio foi retirada do vocabulário utilizado em Geomancia (adivinhação através de sinais na terra), e refere-se a uma combinação de forças, para o bem ou para o mal.
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    No início, Frodo não percebe a sua personalidade sombria, ou que ele está sendo perseguido por Gollum. Ele sabe só que tem uma sensação desconfortável que aumenta à medida que a estória progride. Quando a sociedade decide ir para Lothlórien, Frodo sente que "ouviu algo, ou pensou ter ouvido. Tão logo as sombras cairam sobre eles, e a estrada às costas escurecia, ele ouvia de novo o rápido ruído de passos"[41]. Os outros não notam. Logo em seguida, Frodo é surpreendido por "uma figura sombria" que "escorregou por um tronco de árvore e sumiu" (I,360). Novamente, somente ele vê Gollum que têm perseguido o anel, movendo-se na escuridão porque ele teme a luz.
  Significativamente, Gollum é da mesma raça e sexo que Frodo, o que para uma sombra é apropriado. Ele é um hobbit que caiu sob o poder do anel, e
degenerou para a forma de uma criatura anfíbia, esquálida e subterrânea de instintos e perspicácia animais. Ele é certamente uma ameaça, e uma ameaça que Frodo deve aprender a admitir, pois representa um certo potencial dele mesmo se tornar. Ignorar a sombra, como Jung disse, é um risco para inflamar o ego [42]. A relação entre Frodo e o repulsivo Gollum deve, portanto, tornar-se de mútuo reconhecimento, mesmo que os outros desaprovem. Sam, para seu próprio desgosto, percebe a ligação peculiar entre os dois: eles "pareciam de alguma maneira semelhantes e não estranhos: eles podiam alcançar a mente um do outro" (III,225). Assim Frodo insiste em soltar Gollum e em acreditar em sua promessa, e a sombra, sempre ambivalente, torna-se um guia, apesar de não deixar de ser perigoso. Gollum conduz Frodo primeiro para a toca de Laracna, mas também salva-o, no último minuto, do fatal ataque de arrogância que significaria o fracasso da missão: "Mas se não fosse ele, Sam, eu não conseguiria ter destruído o Anel… Então vamos perdoá-lo!" (III, 225).
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  Frodo já havia enfrentado Gollum antes do grupo chegar a Lothlórien, mas somente após o encontro com Galadriel ele pode prender e então libertar a sombra. O encontro com Galadriel foi uma experiência devastadora para toda a sociedade, não apenas para Frodo. Apesar dela se concentrar nele mais que nos outros, ela não está ligada a Frodo da forma especial que está Gollum. Sua importância é menor em termos de inconsciente pessoal do que em termos de inconsciente coletivo. Ele é uma impressionante representante do anima, uma figura que – Jung nos diz – frequentemente é "como uma fada" ou "Élfica" [43], e Galadriel é de fato uma Elfa. Ela é também uma ponte para elementos mais obscuros da psique, e pode revelar os recôndidos secretos das almas do membro da Sociedade do Anel. "Ninguém, exceto Legolas e Aragorn conseguia suportar por muito tempo o olhar dela" (I,372) à medida em que ela mostrou para cada um os perigos da missão e as fraquezas pessoais que cada um trazia para a missão. Em seu espelho, ela mostra a Frodo "partes de uma grande história na qual ele já está envolvido" (I,379), e ele responde com admiração e terror. O poder avassalador característico do anima quase o subjulga, de forma que ele até mesmo oferece a ela o anel. Galadriel responde em palavras que claramente indicam o perigo da fixação no anima, e avisa sobre os aspectos destrutivos do anima:
Você me oferece o Anel, de sua livre vontade! E no lugar de um Senhor da Escuridão, você teria coroado uma Rainha. E eu não seria então negra, mas bela e terrível como a Manhã e a Noite… e todos deveriam me amar e se desesperar! (I,381).
    Ao invés disso, Frodo deve usar o conhecimento e sabedoria de Galadriel para aprofundar-se na missão: ela é uma ponte para a escuridão de Mordor, para onde o herói ainda deve se aventurar. Assim Frodo carrega com ele a influência da beleza eterna, radiante como de uma fada, de Galadriel, e ela serve-lhe de proteção. Simbolicamente, ela dá a ele um frasco de luz para sustentá-lo na escuridão. A luz não apenas mostra o caminho para Frodo, mas auxilia-o contra os Espectros do Anel, e mais ainda, permite-lhe que ele enfrente Laracna.
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   Se Galadriel é o anima em sua forma benéfica, Laracna – a mulher-aranha – é a anima destrutiva que frequentemente envenena para matar. Quando Gollum fala de uma misteriosa "ela" que pode ajudá-lo a ganhar de volta o anel, ele fala de Laracna – "todas as coisas vivas são seu alimento, e seu vômito é escuridão" (II,332). Quando Frodo encontra-a, ele empunha a luz: "'Galadriel' – ele chama, e juntando sua coragem ele ergue o Frasco uma vez mais" (II, 330). A luz de Galadriel e a escuridão de Laracna, os princípios da vida e da morte, do lado que nutre e do lado que destrói, ambas lutam por Frodo que deve encontrar as duas – o anima em ambos os aspectos, benéfico e maléfico.
   

  Outras figuras do anima através dO Senhor dos Anéis, apresentam um apelo semelhante àquele de Galadriel. Nos lembramos principalmente de Arwen, outra Elfa, cuja "delicadeza jamais Frodo havia visto em criatura viva antes nem imaginara em sua mente" (I,239). Ela está destina a se casar com Aragorn, e sua união representa a "conjunção" [44], a combinação ideal de anima e animus no qual, diz Jung, "eles formam um par divino" [45]. O Eu/Ego é frequentemente representado pelo casamento de um "casal divino, real ou distinto de alguma forma" [46]. Menos afortunada que Arwen, porém, é Eowyn, cujo amor por Aragorn não pode ser correspondido, e como resultado ela se torna vítima de seu próprio animus. Quando Aragorn a deixa, como deve fazê-lo, através de um disfarce Eowyn transforma-se no guerreiro Dernhelm, que "nada deseja, a não ser uma brava morte em batalha" (IV, 242). Eowyn, em termos Jungianos, está possuída pelo animus negativo (freqüentemente representado como um demônio da morte) [47] que neste caso conduz a jovem na direção do suicídio. Tal possessão freqüentemente resulta, diz Jung, em "uma transformação de personalidade" que "dá destaque a traços de personalidade característicos do sexo oposto" [48]. Somente através do amor de Faramir, Eowyn muda – "ou ao menos no final ela compreende tudo. E subitamente seu inverno termina, e o sol brilhou para ela." (III,243)
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    As figuras heróicas dO Senhor dos Anéis são, como dissemos antes, Aragorn e Frodo. Um é um rei no exílio, protetor de uma nobre linhagem, que atravessa os caminhos da morte, luta em um momento crucial em uma batalha épica, e proclama uma nova ordem. O herói, como Jung diz, é um "grande homem… semi-deus por natureza", que enfrenta "perigosas aventuras e testes" [49] e encontra o Sábio Ancião. Significativamente, a característica superpoderosa do herói semidivino não é imediatamente óbvia em Aragorn, que surge no começo como o guardião Passolargo, sendo suspeito pelo grupo e por nós. Somente quando nos aprofundamos na missão que descobrimos sobre sua linhagem nobre, sobre seu destino e seu poder de cura. Ele cresce aos nossos olhos quando ele fita o palantir mágico, passa através das sendas dos mortos, e é finalmente recebido como um rei. Aragorn possui em si muito do herói tradicional, mas nós o observamos, primeiramente, de um ponto de vista externo.
    Frodo, apesar de seu nascimento ter sido peculiar entre os hobbits, não é um herói de nascença como Aragorn, e nós o observamos mais completamente por dentro, freqüentemente compartilhando com ele seus pontos de vista. Quando a estória começa, encontramos em Frodo a vulnerabilidade de uma criança que, de acordo com Jung, freqüentemente compensa os poderes de um herói. Mas Frodo gradualmente desenvolve-se e afasta-se de sua ingenuidade original, deixando de ser o hobbit hesitante que se pergunta por que ele foi escolhido e que pensava em destruir o anel com um martelo (I,70). O crescimento para uma consciência mais elevada é doloroso, e ainda assim, à medida que Frodo carrega o fardo, seu poder aumenta. E quando ele passa pelas negras experiências que o conduziram ao Conselho de Elrond, a aura de poder e magia do arquétipo do herói adere gradativamente nele. Ele percebe que pode ver mais claramente no escuro. No espelho de Galadriel ele enxerga as profundezas da história no qual ele está envolvido, e torna-se o portador da luz mágica em domínios perigosos. Lentamente, ele adquire sabedoria e nobreza comparáveis à de Aragorn, de tal maneira que, à medida que acompanhamos o desenvolvimento de Frodo e participamos dele, nós chegamos ao ponto de compreender o próprio Aragorn de forma mais completa. E quando o conto termina, Frodo atingiu uma santidade heróica que beira a de outro mundo (celestial).
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    Os heróis através dO Senhor dos Anéis são contrapostos com os Espectros do Anel. Cada arquétipo possui um aspecto negativo, e assim o herói, como diz Jung, é especialmente ameaçado pela dissolução "sob o impacto das forças coleticas da psique". O desafio característico surge "dos antigos e maléficos poderes da escuridão" [50] que ameaçam sobrepujar o herói e a identidade-própria que ele luta em trazer à tona. O poder de Sauron, o Senhor das Trevas, é exatamente como de uma força antiga e maléfica, e nO Senhor dos Anéis seus representantes, as contrapartes negativas dos heróis, são os Cavaleiros Negros. A ameaça que eles apresentam equilibra perfeitamente o poder que emana do heróico Aragorn, enquanto sua dissolução na escuridão antiga e maléfica de Sauron, que representa a perda do Eu/Ego/Identidade, é indicada pelo fato que os cavaleiros negros não possuem faces.

   
    Os heróis devem resistir a tal perda de identidade e crescer em direção à sabedoria, qualidade espiritual representada pelo antigo arquétipo do Sábio Ancião. Ele surge na trilogia principalmente através de Gandalf. Mais misterioso que os heróis, a parte de Gandalf na missão freqëentemente está além do alcance da compreensão do narrador da estória, e seu conhecimento permanece insondável. A primeira vez que o encontramos, ele parece mais um velho palhaço do que um mago poderoso. Confundir a sabedoria com tolice é o erro tradicional dos tolos. Neste caso, ela reflete a ingenuidade dos acomodados e plácidos hobbits. A "fama" de Gandalf "no Condado devia-se principalmente à sua habilidade com fogos, fumaça e luzes… Para eles, Gandalf era apenas mais uma das 'atrações' da Festa" (I,33). Mas Gandalf, assim como Aragorn, cresce em nossa consideração à medida que nós, como Frodo, descobrimos mais sobre ele. Ele sempre está um passo à frente da missão, exercendo um estranho, quase providencial controle sobre a mesma. Ele repreende Frodo por vários erros, e parece saber de toda a estória em detalhe, mesmo quando ocorrido durante sua ausência. "Você parece já saber de uma boa parte" (I,231) diz Frodo. Não questionamos o conhecimento de Gandalf, mas acreditamos simplesmente que sua fonte está além do alcance de nossa visão.
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Gandalf também possui um talento de sempre aparecer quando é necessário. Na vau do rio, ele mandou uma inundação em um piscar de olhos enquanto Frodo desmaiava. Sua sabedoria conduziu os exércitos a Mordor, e frustra a armadilha preparada pelo inimigo que possui as roupas de Frodo. Suas águias resgatam Frodo e Sam no último momento, e no episódio final da estória ele garante (apesar de não sabermos como ele sabia) que Merry e Pippin acompanharão Sam na sua viagem para casa, depois que Frodo partisse dos Portos: "'Pois será muito melhor voltar para casa três juntos, do que um sozinho'" (III,310). Aqui Gandalf providencia uma ajuda, como ele fez antes durante toda a estória, para uma necessidade maior, e há um toque de magia em suas ações.
  Para Jung, o Sábio Ancião, como vimos antes, surge especialmente quando o herói está com problemas: "Numa situação onde discernimento, compreensão, bom conselho, determinação, planejamento, etc., são necessários mas não podem ser reunidos em uma só pessoa" [51]. Ele freqüentemente, além disso, adota o "disfarce de um mago" [52], e é essencialmente um arquétipo espiritual [53]. Assim o Sábio Ancião é algumas vezes representados por um "espírito 'de verdade', mais precisamente, o fantasma de algum morto" [54]. É interessante observar que Tolkien descreveu Gandalf como sendo "um anjo" [55], e somos levados a crer que ele realmente morreu no combate contra o Balrog, ressurgindo como Gandalf o Branco, como um espírito encarnado, e uma figura de grande poder sobrenatural. Além disso, o Sábio Ancião "fornece o talismã mágico necessário" [56], que no caso de Gandalf é o próprio anel.
    Porém, o Sábio Ancião possui também um aspecto deturpado. Como Galadriel têm sua Laracna, e os heróis os Espectros do Anel, também Gandalf tem seu contraponto, o mago Saruman. Eles encontram-se no mesmo nível, e eles lutam uma grande batalha por Identidade ou dissolução da mesma mais uma vez: "Parecidos e ao mesmo tempo diferentes" (II,183) Gimli comenta sutilmente, enquanto observa os dois em Isengard. Sua competição está baseada no simbolismo da luz: Saruman é primeiro o Branco, e Gandalf, o mago inferior é cinza. Mas então Gandalf torna-se branco enquanto Saruman cai nos poderes da escuridão e seus trajes tornam-se multicoloridos, "tecidos em todas as cores, e quando ele se movia as cores tremeluziam e mudavam de tom de tal forma que a visão ficava irritava" (1,272). O multicolorido Saruman, como os cavaleiros sem rosto, indicam uma dissolução da identidade. Branco é completo: ao ser fragmentado, ele também torna-se disperso.
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    O arquétipo final, e mais esquivo, é o do Ego/Eu. A trilogia de Tolkien como uma obra de arte que é mais que a soma de suas partes, é a mais satisfatória representação deste arquétipo, pois o significado completo é ativado dentro do leitor, que sozinho pode experimentar sua completitude. Mas o mediador mais efetivo entre o leitor comum e o mundo "completo" da Terra-Média, o personagem que no final está mais próximo de nós mesmos e que também deve retornar à vida normal, é Sam Gamgee. Sam se transformou, no processo da estória, no Sábio Sam¹ , mas ele é menos estranho anós mesmos do que Frodo ou os outros personagens. Quando ele parte, Frodo diz assim para Sam: "Você terá de se tornar um só e completo, por muitos anos. Você tem muito para apreciar e para ser, e para fazer" (III,309). A recomendação para a completude de Sam, e a ordem de voltar para o mundo normal, carregando a completude consigo, é também uma ordem para o leitor: amadurecimento é tudo o que mais importa na vida. Mas tal sabedoria que Sam alcança não é algo fácil de se conseguir, como o livro inteiro nos mostra, e não é o caso para uma condenação crítica de Tolkein baseado no fato de seus hobbits serem simplistas ou escapistas. O condado não é um refúgio , e o fardo do conto é que não há refúgios em um mundo onde o mal é uma realidade. Se você acha que vive em um, você provavelmente é ingênuo como Frodo no começo, e certamente está vulnerável.
 
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¹ Trocadilho com o nome de Sam: Samwise. 
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II. A Palavra

    Os padrões arquétipos que examinamos até agora, indicam a estensão na qual a trilogia pode ser lida como uma exploração contemporânea do "espaço interior" analisado em termos dos romances deste século por Jung. Como Barfield e Lewis, no entanto, Tolkien assume uma posição mais firme ante os arquétipos, em comparação a Jung. A crítica de Lewis, de que Jung oferece um mito para explicar outro mito, pode ser aceita somente com esta afirmação: há um mito que é original e fundamental. Seguindo tal linha de raciocínio, Tolkien insiste que um conto de fadas de sucesso fornece um vislumbre da verdade que ele descreve como eucarístico. A "Eucatastroplia" típica, a "reviravolta" no final de um bom conto de fadas, têm o súbito efeito de uma dádiva miraculosa e fornece um "vislumbre passageiro da  Júbilo"¹  [57], uma participação momentânea do estado que os homens mais desejam. Esta felicidade, diz Tolkien, é "um súbito vislumbre da subliminar realidade da verdade" (71). Neste sentido, a estória Cristã "conquistou espaço na História e no mundo primordial" e nele o "desejo e aspiração da subcriação nutriu a concretização da Criação. O nascimento de Cristo é
a eucatástrofe da história do Homem. A Ressurreição é a eucatástrofe da estória da Encarnação" (71-72). Na cultura Ocidental, a estória Cristã assim contribuiu, e também transformou, o Caldeirão de Estórias que Tolkien já discutiu anteriormente em seu ensaio. O ingrediente Cristão básico altera substancialmente o sabor do cozido todo.
 
    Há duas implicações significativas na teoria de Tolkien. A primeira, que a influência Cristã nas grandes poesias é profunda, e particularmente maior nos épicos, que se destinam especialmente aos valores pelos quais os homens devem viver. O ensaio de Tolkien, em Beowulf indica sua avaliação deste fato. A segunda, que a insistência em uma participação eucarística ideal da fantasia no mundo real conduz a uma visão de arte análoga ao da Encarnação Cristã da Palavra. Na maior estória de todos os tempos, história e arquétipos se interpenetram. Assim no conto de fadas, que tipicamente ativa os arquétipos, a verossimilhança histórica é da mais alta importância. Devemos aceitar que o reino das Fadas é "verdadeiro" antes que ele possa realmente nos afetar.
 
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¹ No sentido cristão de regozijo, alegrar-se por estar na presença do Senhor.
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    Tolkien levanta pela primeira vez a questão do heroísmo Cristão no ensaio sobre Beowulf e no apêndice "ofermod"¹  para The Homecoming of Beorhtnoth Beorhthelm' Son. Ecoando uma tradição do pensamento Cristão tão antigo quanto o De Doctrina de Santo Augustinho, Tolkien salienta que a reputação para Beowulf é "o nobre desejo pagão por elogios por mérito dos nobres" [59]. Conseqüentemente, sua "verdadeira confiança estava em seu próprio poder" [60] e Beowulf não compreende o Paraíso ou o verdadeiro "renome" aos olhos de Deus. Esta atitude conduz somente ao exagero e à violência, e leva Beowulf em direção ao cavalheirismo através do qual, quando morrer ele espera ser lembrado. As possíveis consequências ruins de tal cavalheirismo estão também evidentes em Beorhtnorth, "herói" da Batalha de Maldon. Ao permitir que os invasores Nortistas cruzassem a vau do rio para uma luta justa, quando eles estavam na verdade encurralados, Beorhtnoth "foi cavalheiro mais que realmente heróico" [61]. O mais doloroso resultado de sua ação foi que ele sacrificou "todos os homens mais caros a ele" [62] por causa de seu desejo pessoal por glória. A atitude realmente heróica, diz Tolkien, foi o comportamento dos soldados de Beorhtnoth. "Estando naquela situação, seu heroismo foi soberbo. Seu dever não pode ser comparado com o erro de seu mestre". Consequentemente, é o heroísmo da obediência e amor e não ou do orgulho ou da perseverança (teimosia) que é mais heróico e mais comovente" [63].
 
    A distinção Cristã entre o falso heroísmo e o verdadeiro está já em funcionamento em Beowulf e A Batalha de Moldon, e certamente no Paraíso Perdido de Milton o verdadeiro heroísmo Cristão baseado na obediência está em divergência com mera glória ganha em feitos de armas. Os feitos de guerra em Paraíso Perdido, especialmente na Guerra no Céu, são melhor interpretados como uma paródia da futilidade das batalhas épicas. O verdadeiro heroísmo não depende dos aplausos dos homens, mas do amor de Deus, como Adão deve descobrir. O tema é central também em O Senhor dos Anéis, e ele ajuda a explicar porque estamos mais próximos a Frodo e Sam do que de Aragorn. Os hobbits são mais puramente heróicos, no sentido que não há nada de cavalheiresco neles, e seu heroísmo através da obediência possui um brilho mais radiante porque frequentemente ocorrem e quando não há qualquer esperança de terem reconhecimento ou de prestígio entre os homens. É verdade que Aragorn é heróico, mas ele é cavalheiresco também, e sua fama é significativamente reforçada pelo clamor dos homens. Em total contraste está Sam Gamgee, cuja parte é a menos aclamada de todos, mas que, no sentido que estamos agora usando a palavra, é heróico de forma especial. Sua devoção incondicional a Frodo é exemplar, e aqui novamente, Sam é uma peça chave para trazer o significado do livro para o leitor, o homem comum que admira grandes feitos, mas se pergunta qual seria sua própria parte em importantes eventos que parecem andar muito bem sem ele.
 
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¹ A palavra ofermod que aparece em "Maldon" (descrevendo o estado de espírito de Beortnoth  quando permitiu aos Vikings passagem livre) está, desde Tolkien, aberta a interpretação. O nome em Inglês Antigo "mod" normalmente é traduzico como 'espírito' e, quando não qualificado, é normalmente lido como uma característica pessoal positiva. A interpretação de Tolkien do qualificativo "ofer" é fundamental, no entanto. Ele argumenta que a palavra de fato sugere excesso, e ssim apresenta um séria acusação contra o personagem Beortnoth. Aparentemente, Tolkien estava preocupado também com as limitações da definição de heroísmo. Sua tradução de ofermod claramente implica em uma diferenciação entre o destemido e o temerário, e perseverante e teimoso (retirado de Ofermod as Tragic Motiff em
http://valarguild.org/varda/Tolkien/encyc/papers/dreamlord/stages/ofermod.htm) 
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    A interpretação espiritual de heroísmo é a mais significativa modificação Cristã dos épicos tradicionais, e contém em essência outros temas que já discutimos. Sua presença em O Senhor dos Anéis portanto será indicada rapidamente. Primeiro se Tolkien é cuidadoso para mostrar os momentos mais comoventes de heroísmo no contexto de obediência a princípios transcedentais, ele é também cuida
doso em salientar que o amor que mais une deriva diretamente de tal obediência. Os casamentos no final da trilogia são claramente possíveis porque a missão foi fielmente completada. Também, entre a sociedade, a mais forte amizade desenvolve-se a partir de uma dedicação partilhada na missão, e da obediência à ordens que vieram de fontes mais elevadas de conhecimento. A sociedade resultante da missão é forte o suficiente para quebrar até mesmo a velha inimizade entre Anões e Elfos, como mostrado por exemplo pela intensa lealdade que o Anão Gimli nutre pela Elfa Galadriel. A sociedade rompe-se somente quando a ligação de obediência é também rompida, como aconteceu com Boromir, cujo orgulho e cobiça por poder são a epítome do falso heroísmo.
 
    O amor de Sam por Frodo é o mais consistente, e o mais heróico de todas as relações na trilogia, e nele o tema ancilar de que amor inclui fé e esperança, torna-se claro. Apesar de Frodo não vacilar em sua fé até o último momento na Montanha da Perdição, à medida que ele e Sam fitam a planície de Gorgoroth, Frodo perde esperança: "Estou cansado e esgotado, e em mim nenhuma esperança restou" (III,195). Logo depois ele declara, ainda mais derrotado "Nunca tive esperanças que pudessemos atravessar. E não vejo qualquer esperança agora" (III,201). Finalmente, as esperanças de Frodo dissolvem-se completamente, e ele diz a Sam: "Conduza-me! Enquanto você tiver alguma esperança, conduza-me. A minha se foi" (III,206). Gradualmente, até a força física de Frodo é afetada e Sam o carrega nas costas. A estória é neste ponto quase alegórica, já que a caridade de Sam sustenta a fé e esperança de seu mestre. E não há dúvidas sobre a contribuição do amor heróico de Sam para o sucesso da missão.
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    Como último recurso, a obediência heróica baseada no amor de Deus e dos companheiros também deve envolver fé na Providência de Deus, de tal forma que eventos que pareceriam injustos ou sem sentido possam ser aceitos como parte de um grande desígnio divino. Quanto mais sábio o homem é, mais profundamente ele pode enxergar tais desígnios. Assim, Gandalf por exemplo, sabe que Frodo e Gollum irão encontrar-se. Ele também adivinha que Aragorn usou o palantír, e seu conhecimento mais que coincidência, depende de sua percepção do desígnio divino nos acontecimentos. Por outro lado, aqueles personagens que são menos sábios estão mais à merce de eventos inexplicáveis. Merry e Pippin por exemplo, não sabem nada que seu encontro "de sorte" com os Ents desencadeará a ofensiva que subjulgará Isengard. Lá no começo da estória, temos uma pista da importância de relaçãos complexas de acaso e providência com pergunta de Frodo para Tom Bombadil: "Foi sorte que trouxe você naquele momento?" Tom responde enigmático: "Se você fica mais confortável, pense que foi sorte então. Não estava em meus planos esperar encontrar vocês, mas mesmo assim eu estava esperando vocês" (I,137). Podemos citar numerosos exemplos, mas Tolkien claramente fornece pistas o suficiente através dO Senhor dos Anéis de que em algum nível profundo, uma providência tradicional está em funcionamento no desenrolar dos eventos. E em um mundo onde homens devem morrer, onde não há refúgios, onde a tragédia do exílio é uma realidade permanente, a sensação – nunca completa e sempre intermitente – de um desígnio providencial superior, é também um vislumbre de júbilo.
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III Conclusão

    Este ensaio enfocou certamente a analogia entre Tolkien e Jung, mas não é simplesmente uma estimativa "arquétipa" dO Senhor dos Anéis. Que a trilogia pareça corresponder tão perfeitamente à classificação Jungiana certamente contribui para o crédito mútuo de Tolkien, o contador de estórias que conseguiu intuir a estrutura da psique de forma tão soberba, quanto para Jung o analista que conseguiu classificar tão acuradamente as fugídias imagens dos poetas. Para ambos, o homem participa nas tradições espirituais de sua cultura, e em um período da história como o presente momento, a expressão Cristã de tal participação deve ser essencialmente uma participação íntima e "interior". Tolkien, em sua teoria, está ciente disto, e uma explicação da trilogia em termos de Jung fornece algum vislumbre sobre a estrutura e dinâmica do "espaço interior" do épico de Tolkien. Ainda assim, Tolkien acredita que seu mundo "interior" participa da verdade espiritual que encontrou especial materialização na história: A Palavra, como Arquétipo, foi feita carne. Consequentemente, Tolkien insiste na "verdade" da realidade do reino das Fadas, e sua compreensão eucarística da literatura motiva-o, em O Senhor dos Anéis, a dispender enorme esforço no pano de fundo histórico e linguístico da Terra-Média. Temos de acreditar que tudo aconteceu de verdade, sua veracidade envolve história assim como os grandes temas derivados, na literatura, a partir da fundamental e importante história Cristã, que é pedra angular tanto como arquétipo como história. Encontramos a moralidade da estória não em formulações doutrinárias que são pedaços de alegorias, mas nos motivos tradicionais e implícitos do heroísmo Cristão: obediência, caridade e providência. Assim como, historicamente falando, os ingredientes do cozido do caldeirão de estórias teve uma contribuição substancial de sabor pela inclusão do ingrediente Cristão, assim o são os arquétipos nO Senhor dos Anéis.
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BIBLIOGRAFIA
 
[1] J, R. R. Tolkien, "On Fairy Stories," The Tolkien Reader (New York: Ballantine, 1966), p. 16.

[2] Idem., p. 13.

[3] Muitos críticos perceberam o ponto, apesar de não haver análise sistemátic. Ver também J. S. Ryan, Tolkien: Cult or Culture (Annidale, New South Wales: Univ. of New England, 1969), ch. X, "Middle-Earth and the Archetypes," pgs. 153-61

[4] "Fairy Stories," pgs. 14, 68.

[5] "Psycho-Analysis and Literary Criticism," ed. Walter Hooper, Selected Literary Essays (Cambridge: Cambridge University Press, 1969), pgs. 296, 297.

[6] Idem. Conferir também, "Hamlet: The Prince or the Poem," Selected Literary Essays, p. 104.

[7] Saving the Appearances: A Study in Idolatry (London: Faber, 1957), pgs. 133-34.

[8] "Psycho-Analysis," p. 299.

[9] Romanticism Comes of Age (Connecticut: Wesleyan University Press, 1944), pgs. 193, 202.

[10] Carta para Charles Moorman, 15 May, 1959, ed. W, H. Lewis, Letters of C. S. Lewis (London: Geoffrey Bles, 1966), p. 287.

[11] Há um bom tanto de Barfield em "Fairy Stories,"  por exemplo, na passagem sobre a emergência dos adjetivos, com a crítica de Max Muller (p. 21), e a insistência em "Participation" (p. 23).

[12] "Beowulf: The Monsters and the Critics," ed. Donald K. Fry, The Beowulf Poet: A Collection of Critical Essays (New Jersey: Prentice Hall, 1968), p. 34.

[13] Tolkien enfatisa com mais firmeza que Jung a diferença entre conto de fadas e sonho: eles estão ligados, mas o contador de estórias tem controle consciente de sua narrativa. Ver See "Fairy Stories," pgs. 13-14.

[14] Romanticism Comes of Age, p. 193.

[15] "The Phenomenology of the Spirit in Fairy Tales," ed. Sir Herbert Read, Michael Fordham, Gerhard Adier, trans. R. F. C. Hull, The Collected Works of C. G. Jung. Vol. 9, pt. I, pgs. 231, 233, 235.

[16] Idem, p. 226.

[17] Idem, p. 219.

[18] Mysterium Conjunctionis, Works, vol. 14, p. 325.

[19] Idem

[20] "On the Nature of the Psyche," Works, Vol. 8, p. 203.

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[21] "The Spirit in Fairy Tales," Works, Vol. 9, pt. I, p. 239.

[22] Idem, p. 215.

[23] "On the Nature of Dreams," Works, Vol 8, p. 292. 24,

[24] Jolande Jacobi, The Psychology of C. G. Jung (London: Routledge, 1962), p. 102.

[25] Psychology and Alchemy, Works, Vol. 12, p. 41.

[26] Two Essays on Analytical Psychology, Works, Vol. 7, p. 175.

[27] "On the Nature of the Psyche," Works, vol. 8, p. 266.

[28] Aion, ed. Violet S. de Laszlo, Psyche and Symbol (New York: Anchor 1958), p. 6.

[29] "Conscious, Unconscious, and Individuation," Works, vol. 9, pt. I, p. 285.

[30] Man and His Symbols, ed. C. G. Jung (New York: Dell, 1968), p. 178.

[31] Idem, p. 182.

[32] Aion.p. II.

[33] Idem, p. 14. Ver também Man and His Symbols, pp. 188-89.

[34] Memories, Dreams, and Reflections, tradução por. Richard e Clara Winston (New York: Vintage, 1965), p. 392.

[35] "The Psychology of the Child Archetype," Works, Vol. 9, pt. I, p. 166.

[36] Idem, p. 167.

[37] "On the Nature of Dreams," Works, vol. 8, p. 293.

[38] Works, vol. 9, pt. I, pp. 217-18.

[39] Idem, p. 225.

[40] Idem, p. 227.
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[41] The Lord of the Rings (London: George Alien and Unwin, 1966), 1, 351. Todas as referências além estão citadas no texto.

[42] Psychology and Religion: West and East, Works, vol. II, p. 341.

[43] Ver Man and His Symbols, p. 191; Jacobi, The Psychology of C. G. Jung, p. 117.

[44] Aioil, p. 9.

[45] Idem, p. 20.

[46] Man and His Symbols, p. 216 .

[47] Idem, p. 202.

[48] "Concerning Rebirth," Works, vol. 9, pt. I, p. 124.

[49] "On the Nature of Dreams," Works, vol. 8, p. 293.

[50] "Concerning Rebirth," Works, vol. 9, pt. I, pp. 146-47.

[51] "The Spirit in Fairy Tales," Works, vol. 9, pt. I, p. 216.

[52] Idem

[53] Idem, p. 217.

[54] Idem, p. 215.

[55] Edmund Fuller, "The Lord of the Hobbits," ed. Neil D. Isaacs and Rose A. Zimbardo, Tolkien and the Critics (Notre Dame: Univ. of Notre Dame Press, 1968), p. 35.

[56] "The Spirit in Fairy Tales," Works, vol. 9, pt. I, p. 220.

[57] "Fairy Stories," p. 68.

[58] "The Spirit in Fairy Tales," Works, vol. 9, pt. I, p. 251.

[59] "Beowulf: The Monsters and the Critics," p. 44.

[60] Idem, p. 52.

[61] The Homecoming of Beorhtnoth Beorhthelm's Son, in The Tolkien Reader, p. 21

[62] Idem

[63] Idem, p. 22.

Copyright. Cross Currents é propriedade da Association for Religion & Intellectual Life e seu conteúdo não pode ser copiado sem autorização escrita expressa do mantenedor, exceto para impressão ou capacidades de download para restauração do software utilizado para acesso. Este conteúdo só pode ser usado com intuito puramente individual. Fonte: Cross Currents, Winter 1973, pgs 365-380. 

 
Patrick Grant é especialista em literatura Renascentista, e ensina Inglês em University of Victoria, British Columbia 
 
Texto original em: http://www.crosscurrents.org/tolkien.htm 
 

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Paulo Victor Pendragão

QUE ARTIGO FANTÁSTICO! GENIAL!
Aproveito para “linkar” o “trailer” do Filme “A Dangerous Method”, com Michael Fassbender interpretando o Dr. Jung e nosso querido Viggo Mortensen vivendo ninguém menos do que o Professor Freud!

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