Saruman triunfante

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Escrito por Reinaldo José Lopes
midia.jpgPassei as duas últimas semanas cobrindo a COP-8, ou Oitava Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU em Curitiba, para a Folha de S.Paulo, onde trabalho. E acreditem: foi o espetáculo mais deprimente ao qual tive o desprazer de assistir na vida.

 
Ao ver tamanho egoísmo por parte dos países ricos, tamanha desonestidade calculada para evitar fazer alguma coisa séria a respeito da crise ambiental que o planeta vive, só pude chegar a uma conclusão: Saruman vive e vai muito bem, obrigado (conclusão, aliás, à qual o próprio Tolkien chegou nos anos 1960). Meu chefe me deu permissão para escrever o texto abaixo, desancando a palhaçada. Como um espertinho saiu na minha frente e postou um único parágrafo fora de contexto, aproveito para colocar o artigo todo, "versão do diretor", abaixo.

Uma explicação rápida: um dos principais debates da conferência era a criação de um regime internacional, com força de lei, capaz de regular o acesso aos recursos genéticos derivados da biodiversidade, como uma planta capaz de gerar um novo remédio, por exemplo. A idéia é permitir que países como o Brasil, ricos em biodiversidade, fossem recompensados de alguma maneira quando uma multinacional desenvolvesse um novo produto. Desnecessário dizer que a discussão ficou totalmente bloqueada e rolou apenas a promessa de chegar a uma decisão em 2010. Outras discussões vitais, como a proibição da pesca destrutiva em alto-mar – a qual levou para muito perto da extinção quase todos os grandes peixes – também não avançou. Enfim, ajudem-me a odiar os Sarumans da ONU:

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Convenção é um morto-vivo sem poder nem rumo

REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Aconteceu no segundo dia de COP-8, mas podia ter sido em qualquer um. Os delegados que integravam o Grupo de Trabalho 2 elogiavam o "sorriso auspicioso" no rosto do presidente do grupo, Sem Shikongo, da Namíbia. Um conterrâneo sugeriu que o bom humor se devia ao fato de que os namibianos comemoravam 16 anos de independência naquele dia. Shikongo, porém, emendou logo: "Eles estão lá se divertindo e tomando cerveja, e nós aqui trabalhando".

Foi assim, como quem estava ali só de corpo presente, que se comportaram muitos dos representantes dos governos do mundo ao longo da conferência. A situação seria menos vergonhosa se ficasse restrita a esse humor capenga, na linha "a ONU segundo Monty Python", mas quem acompanhou as batalhas intermináveis em torno de uma vírgula sabe que foi muito pior que isso.

A COP-8 marca o triunfo do sarumanismo dentro da CBD (Convenção sobre Diversidade Biológica). "Sarumanismo", claro, exige explicação, mas a metáfora vale a pena. Saruman é o nome do mago renegado do romance "O Senhor dos Anéis", que começou como proponente de uma utopia tecnológica e acabou como tirano fracassado. Não que os delegados da COP-8 tenham pessoalmente o desagradável hábito sarumânico de alimentar fornalhas com árvores inteiras, mas numa coisa muitos deles são iguais: o divórcio entre palavra e ação (neste caso, mais inação do que qualquer outra coisa) que dominou o evento.

O britânico Tom Shippey, estudioso da obra de Tolkien, disse certa vez que Saruman é o único personagem do livro que fala como um político – ou diplomata – do século 20 ou 21, e por isso ele é tão odioso. O mago ficaria orgulhoso com o espetáculo deprimente dado pela delegada Felicity Buchanan, da Nova Zelândia, que deteve as conversas sobre o regime de acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios durante 60 preciosos minutos porque não queria uma menção a "derivativos" desses recursos no texto.

Detalhe: o texto estava muito longe de ser uma decisão final. Tratava-se apenas de uma recomendação para o grupo de especialistas que deve se reunir nos próximos anos para discutir a viabilidade de um certificado internacional de origem de produtos derivados da biodiversidade. Incluir "derivativos" nesse certificado (ou seja, produtos alterados em relação ao recurso genético original) obviamente não interessa à indústria dos países desenvolvidos. Argumento neozelandês: permitir essa discussão equivaleria a transferir decisões políticas para um grupo técnico. Então tá.

Convenção sem poder
A situação é mero sintoma do problema maior que é a CBD, um amontoado de boas intenções sem coordenação interna, financiamento adequado ou, o que é mais importante, poder de fato para implementar suas decisões -isso, é claro, se elas fossem mais específicas que o pedido para reduzir de forma "significativa" a perda de biodiversidade até 2010.

Também é sintoma das dificuldades do sistema multilateral da ONU, incapaz de fazer as nações enxergarem um problema realmente global e fazer alguma coisa a respeito sem colocar seu interesse próprio de curto prazo na frente de todo o resto. Enquanto a ciência diz há pelo menos 15 anos que a Terra está entrando numa fase de extinções em massa causadas pela mão humana, os delegados acham que mais estudos são necessários. Atiram pela janela o princípio da precaução, segundo o qual ninguém precisa de todas as informações do mundo para agir contra uma catástrofe.

Dito desse jeito, parece que a culpa é só da CBD e da ONU. Não é. Também está sobre as cabeças de boa parte das ONGs que encheram o evento de Curitiba com protestos barulhentos, alimentando a velha paranóia em relação aos transgênicos (até onde se sabe, injustificada, pelo menos por enquanto) e desviando energia do essencial. Enquanto elas cerravam fileiras contra o tigre de papel das "sementes suicidas" Terminator, a farsa continuava.

Ahmed Djoghlaf, o recém-empossado secretário-geral da CBD, repetia o tempo todo que a convenção havia "voltado para casa [nasceu na Eco-92, no Rio] para ganhar vida nova". O que se viu ali, porém, foi um morto-vivo.

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