Por Esta Espada, Eu Reino!

Escrito por Fábio Bettega
Os fãs de Robert E. Howard devem reconhecer o eco de uma aventura de Kull nesta sentença, "Por esta espada, eu reino". Howard gostava de escrever sobre guerreiros fortes e poderosos. Eles podiam ser homens do Velho Oeste Americano, boxeadores no ringue, ou bravos bárbaros que atravessam os salões de civilizações tão antigas que mesmo os cidadãos esqueceram sua origem distante.
 

Em alguns aspectos, Aragorn era um bárbaro, pelo menos de uma perspectiva gondoriana. Apesar de ser criado por Elrond em uma casa Eldarin, Aragorn não era um garoto mimado. E seu pai e avô foram mortos por monstros (respectivamente, Orcs e Trolls), dos quais a maioria do povo fugiria em terror absoluto.

Como os reis-guerreiros de Howard, Conan e Kull, Aragorn descendeu de um povo "atlante". Kull foi, na verdade, um atlante, forçado ao exílio. Ele e Conan deixaram seus povos bárbaros e se transformaram em reis. Aragorn também deixou sua terra natal (Eriador) e alcançou o trono real (de Gondor e Arnor).

Mas aí acabam as comparações, ou elas viram superficiais. Howard celebrava a força primitiva da pura "barbaridade", enquanto Tolkien celebrava a sofisticada sabedoria derivada do declínio e queda de muitas civilizações. Mas os dois escritores embutiram seus personagens de um senso de poder que invoca uma simetria de paixão.

Esta paixão aumenta o conflito entre os elogios e as críticas. Os personagens são tratados com grande respeito por alguns, e profunda irritação e chateação por outros. Conan já foi comparado a um velho gagá. Aragorn já foi comparado a um nobre cavalo.

É o aspecto bárbaro de cada personagem o que mais intriga o leitor, e Conan e Aragorn viram arquétipos ou estereótipos para heróis de ação/aventura. Eles são caracterizações primárias porque os dois, de algum modo, recebem uma sofisticação deixada de seus predecessores. (As histórias de Kull derivam das histórias de Conan por muitos anos, e Aragorn é comparável a Beren, que apareceu nas histórias de Tolkien pela primeira vez 20 anos antes de Howard escrever a história final de Conan).

Nenhum dos autores viveu o bastante pra ver o quanto seu legado literário seria direcionado para o mercado de massa e, na minha opinião, é ótimo para os dois. Imagine o quanto ficariam espantados em ver maus atores atravessando pedreiras a cada filme barato, destruindo monstros de borracha e escravizando mulheres que só sabem gritar?

Embora a magia de Kull/Conan estar focada na fúria bárbara, Aragorn é o primeiro Guardião/Ranger. Todos os Guardiões/Rangers são baseados nele, e os trilheiros também. Mesmo Norda, a trilheira da imperadora no recente filme de "Dungeons & Dragons", deve algo à compostura reservada de Aragorn, sua sabedoria perspicaz, e sua suprema competência nas habilidades de caçador. Quando Aragorn expressa dúvida sobre si, ele não está se importando se consegue perseguir algumas dúzias de orcs correndo no continente. Ele se pergunta se é capaz de fazer as escolhas certas, mesmo quando todas estão erradas. Norda, em cenas cortadas o filme, expressa dúvidas similares sobre suas próprias escolhas, mas continua confiante em suas habilidades.

Os guardiões/rangers de Aragorn às vezes me lembram os homens alegres de Robin Hood, misturados à uma fina nobreza. Não hà Little John no conto do exílio de Aragorn, mas Halbarad poderia fazer um interessante Will Stutley. Legolas poderia se juntar à brincadeira como Will Scarlet: um pouco afetado, mas forte e mortal. Gimli poderia ser Frei Tuck, perigoso com uma lâmina, rápido para o sarcasmo e grande adorador de vinho. Em público os Guardiões/Rangers de eriador parecem ser estóicos e quietos, mas tenho certeza que eles freqüentavam uma taverna ou duas. A Taverna Abandonada pode ter esse nome graças à festa do Bacharel de Arathorn II, que todos nós conhecemos.

Quando Robin toca sua corneta, os homens felizes vêm correndo com armas preparadas, e eles são uma força fatal a ser enfrentada quando sua raiva está acesa. Assim também são dos Dunedain que cavalgam ao auxílio de Aragorn em resposta à sua silenciosa necessidade. Kull tinha seus Assassinos Rubros e Conan tinha seus companheiros, mas Aragorn tinha 30 rangers.

Um dos momentos mais memoráveis para mim na história de Kull é o fragmento onde Kull leva seus guarda-costas (400 homens) ao rio Styx. Lá o velho homem da balsa os avisa que, quem quer que seja que atravesse o rio, não retornará. Ele fala de um poderoso exército, milhares de soldados, que cruzaram o rio. A batalha que confrontaram contra seus inimigos desconhecidos pôde ser ouvido por milhas e durou dias. E então só se pôde ouvir o silêncio. Kull fez a coisa certa. Ofereceu a liberdade à qualquer um que estivesse com medo, mas nenhum de seus guardas queriam desertá-lo. Ele só pôde elogiá-los, dizendo "vocês são homens".

Aragorn, ao estilo de Kull, liderou seus trinta homens através das Sendas dos Mortos. Eles também, se recusaram a abandonar seu líder. É difícil imaginar um cara citadino, mesmo Boromir, comandando esse tipo de amor e respeito de seus soldados. E Boromir também não era nenhum mauricinho. Quando apareceu em Valfenda, ele tinha ficado em terras selvagens por um bom tempo. Ele deveria estar muito feio, mesmo se as donzelas élficas fizessem barba e cabelo antes do grande conselho. Então Boromir conseguiu pelo menos um título de Bárbaro Honorário.

Mas ainda há um problema em desenhar uma analogia aos Dunedain de Tolkien. Eles podem não ter vivido em cidades por muito tempo, mas eles não abandonaram a civilização. Ela pode ter se esvaído em sua volta, mas eles preservaram suas melhores qualidades. Os primitivos Rohirrim pareceriam garotos rústicos perto da pequena companhia de Rangers Eriadorianos.

Os verdadeiros bárbaros das histórias de Tolkien são geralmente chamados sumariamente, ou ficam fora de cena. Esses são os Orientais, membros de tribos sem nome sem costumes estipulados. Agora, algumas pessoas podem ser rápidas e apontar os Homens do Norte como bárbaros também. Bem, sim e não. O que é um bárbaro? No senso clássico, o bárbaro é um forasteiro. Kull e Conan eram estranhos às culturas que vieram a governar. O fato de eles vestirem roupas engraçadas, falarem estranho, e poderem matar cinco vezes mais homens do que qualquer soldado eram o que revelavam a sua barbaridade. No fundo de cada um, eles eram estranhos à maneira que as pessoas civilizadas eram.

Os homens do Norte de Tolkien não apenas eram amigos dos Dunedain, como se casavam livremente com eles, e ajudaram a criar laços estreitos em Gondor (mais de uma vez). E eles tinham suas próprias cidades, como Lake-town, Dale, Edoras, e Aldb
urg. Alguns de vocês podem dizer que Framsburg pode ter sido uma cidade, já que eram grande o bastante para conseguir um nome e uma marca no mapa.

Mas os Orientais representaram a barbaridade como os escritores bíblicos o perceberam. Eles usaram a palavra grega "bárbaro" para denotar pessoas que não falavam grego. Os Orientais não falavam Sindarin, a língua das culturas sofisticadas, nem Westron, a língua do prestígio imperial dos Dunedain. Pode haver Orientais que conhecem Westron o suficiente pra conseguir se comunicar, mas eles são orientais, e é Westron, a língua do oeste. Orientais são tão diferentes, que parece que apenas duas palavras foram preservadas em suas histórias: variag e khand.

No mundo antigo, a língua era uma poderosa ferramenta do estado. Cidadãos poderiam ser separados de estrangeiros rapidamente baseado em quem falava tal língua. E a língua também foi usada para estabelecer o poder sagrado, e recordar as tradições das culturas locais. Uma pessoa que não sabia escrever não era sofisticada, e uma pessoa que falava ou mesmo escrevia uma língua estrangeira eram estrangeiros, não tão importantes como aqueles que falavam a verdadeira língua-mãe. Quando Roma impôs suas leis através do mundo Mediterrâneo, latim virou uma grande língua, enquanto o grego ainda prevaleceu no leste.

Tolkien também usa a língua pra separar os locais dos estrangeiros. Os Noldor, que cairam em decadência, viraram estrangeiros em seu exílio. Para poderem viver entre os Sindar, eles foram forçados à adotar a língua dos Sindar. A perda de sua língua-mãe é uma marca de sua vergonha, e com certeza uma marca da supremacia dos Sindar em Beleriand. Os Noldor construíram muitas cidades de pedra, e todas as grandes fortalezas fora de Doriath, mas ainda eram estrangeiros, e nem todos os Sindar gostavam deles.

Como os Noldor em Beleriand, o povo de Aragorn eram exilados que retornaram à Terra-Média. Eles se estabeleceram junto de seus primos menos sofisticados, mas os Dunedain exilados se beneficiaram de um revés na sorte. Númenor havia se tornado um poder dominante na Terra-Média, e a civilização foi conduzida aos homens da Terra-Média pelos Numenoreanos. Portanto, foi a língua adunaica numenoreana que se espalhou por toda a terra e virou o símbolo da civilização.

Aragorn com certeza falava westron bem, mas ele também conhecia o Sindarin, e falava fluentemente. Na verdade, os Sindar viraram estrangeiros para a maioria do pessoal. Gondor, mesmo sozinha entre as nações da Terceira Era da Terra-Média, ainda retinha grande conhecimento de Sindarin. Como o Quenya foi antes, Sindarin virou um pouquinho mais que uma língua dos sábios para os Dunedain. Eles o preservaram ao invés de enriquecê-lo. Eles preferiram não o expandir.

No mundo de Tolkien, palavras são acompanhadas por ações. No mundo de Howard, ações são acompanhadas por palavras. Quando o bárbaro Kull quebra as tábuas de pedra com as leis de Valusia, ele levanta seu machado acima da cabeça e grita "Por este machado, eu reino!". Quando Aragorn revela sua verdadeira herança a Éomer e os Rohirrim, dizendo sua lista de nomes e títulos, ele levanta sua espada e grita, "Aqui está a espada que foi quebrada e foi forjada novamente!"

Como Kull e Conan, Aragorn chega à sociedade gondoriana de fora, rompendo políticos e destronando líderes locais. Denethor fica ofendido com a idéia de deixar seu cargo para "alguém como ele, o último de uma casa destruída, por muito tempo privado de dignidade e nobreza". Mesmo quando ele é presenteado com a oportunidade de entrar na cidade como o vitorioso capitão da guerra, Aragorn prefere ficar de fora como "o Capitão dos Rangers, que não precisam de cidades e casas de pedra". E com isso ele ordena que sua bandeira seja dobrada e que a Estrela do Norte.

Só resta a Aragorn assumir o comando dos exércitos de Gondor antes que ele possa clamar sua coroa formalmente. Apesar de ganhar a confiança do povo rapidamente, eles precisam de um rei-guerreiro, e não de rum rei-filósofo-de-fala-empolada. Aragorn prova que ele possui grande conhecimento e habilidade com línguas, mas suas palavras são ofuscadas por seus atos. Ele é bravo e forte, mas também deve ser decisivo.

É uma parte da magia do bárbaro que, onde um homem civilizado vai ponderar o significado de palavras e profecias, um bárbaro vai seguir em frente destruir o nó que perplexou o mundo civilizado por séculos. É preciso de um rei Macedônio para espalhar a civilização grega por metade do mundo conhecido. É preciso um rei Dunadan para levar Gondor à vitória em suas guerras com o leste. Onde Denethor e seus capitães sentam em suas torres e imaginam o quanto eles conseguirão resistir aos ataques de Mordor, Aragorn corre através das Sendas dos Mortos, recruta um exército fantasma, e usa isso para acabar com as forças dos inimigos de Gondor.

Então Tolkien nos presenteia com duas faces da barbaridade: o bárbaro puro, incorrupto ou justificado pelo longo exílio, e o bárbaro corrupto, perdido no mal e na escuridão. É o puro bárbaro que representa o melhor das idéias românticas uma vez visadas pela civilização. Sua barbaridade é a do estrangeiro. Ele não é um selvagem ou um oponente virulento que visa unicamente saquear e pilhar as cidades costeiras. Ele é um salvador vindo para completar as antigas profecias. Sua força é pura e seu coração é nobre.

Bárbaros às vezes são creditados com a revigoração de civilizações decadentes. E Aragorn é o Renovador. Ele inicia um período de crescimento e vigor renovados nas sociedades Gondorianas e Arnorianas. Ele infunde os Dunedain com sangue novo, quando se casa com Arwen, a princesa Meio-Elfa cujo povo foi renegado ao status de bárbaros.

Os bárbaros de Tolkien, então, serviram ao mesmo propósito dos bárbaros de Howard. E sem dúvida os escritores reconheceram os fins das civilizações, e apreciaram o quanto a barbaridade representa mais que somente um contraste pra a civilização. Barbaridade é a nova e constante origem de crescimento e vitalidade. À medida que o tempo tira o poder das legiões romanas, os bárbaros recuperam seu poder. E à medida que o tempo arrasa os exércitos de Gondor, forçando retiradas de Mordor, Enedwaith e Calenardhon, os Homens do Norte chegam para tomar o lugar.

Assim como o Conan de Howard procurou aventura em Aquilonia, Aragorn chegou do norte bárbaro para se aventurar no sul gondoriano, e anos depois ele tomou o trono de Gondor. Assim como Kull, Aragorn veio do mar para clamar o trono. E assim como Alexandre criou uma renascença grega, Aragorn revitalizou Gondor e carregou sua cultura para terras estrangeiras, incluindo a sua própria. Aragorn era um homem de palavras e de ações.

Tradução de Aarakocra

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