Númenor, Elendil e viagens no tempo – parte I

Escrito por Fábio Bettega

Observar a evolução da lenda de Númenor nos escritos
de Tolkien pode revelar muitas coisas interessantes e insuspeitas. E,
principalmente, faz o leitor lamentar o fato de que o velho Professor
deixou incompletas duas obras fantásticas, intimamente relacionadas,
que tratam do reino dos Dúnedain: The Lost Road [A Estrada Perdida], de
1937, e The Notion Club Papers [As palestras do Clube Notion], datado
provavelmente de 1946 ou 1947. Além de terem em comum a temática
numenoreana, esses dois livros inacabados trazem à baila, de forma
bastante incomum, o batidíssimo motivo da Viagem no Tempo, típico da
ficção científica, mas retrabalhado à instigante maneira tolkieniana.

 

 

 
The Lost Road foi publicado no quinto livro da
série The History of Middle-earth, que leva seu nome. Aparentemente, a
idéia para escrever o livro partiu de uma série de conversas entre
Tolkien e seu grande amigo de Oxford, C.S. Lewis. Eles decidiram que
C.S. Lewis iria tentar escrever uma história de viagem espacial – que
se transformou no livro Out of the Silent Planet – enquanto Tolkien
iria se concentrar em viagem no tempo: o nunca completado The Lost Road.

A narrativa, que chegou a ter quatro capítulos escritos antes de ser
enviada à editora Allen & Unwin [e rejeitada para publicação], está
lotada de elementos autobiográficos. O personagem central, Alboin
Errol, filho do professor Oswin Errol, é um adolescente apaixonado por
arqueologia, mitologia e pelas línguas antigas do norte da Europa. Seu
nome é o mesmo de um lendário príncipe dos lombardos, e significa
“amigo-dos-elfos”. Alboin tem um hobby um tanto estranho: a criação de
línguas. Eu disse criação? Não exatamente: em seus sonhos, Alboin
escuta estranhos fragmentos de línguas desconhecidas, que ele tenta
“registrar” quando acorda. Duas línguas, em especial, dominam as noites
do garoto: o eressëano e o beleriândico. Adivinhou? Isso mesmo: o
quenya e o sindarin. E, junto com esses sonhos lingüísticos, ele é
perseguido por um nome – Númenor – e uma imagem ameaçadora: terríveis
nuvens em forma de aves avan̤ando do Oceano, amea̤ando a terra Рas
“Ã?guias dos Senhores do Oeste”.

Ao mesmo tempo, Alboin começa a “ouvir” fragmentos de poemas e canções
em seus sonhos, alguns em línguas “reais” como o anglo-saxão, com um
tema recorrente, resumido na frase: “uma estrada reta havia para o
Oeste, e agora ela está curvada”, e estranhas alusões à Ilha Solitária
dos Elfos e à Terra dos Deuses. Alboin cresce, forma-se em história em
Oxford e perde o pai; logo depois, casa-se, tem um filho chamado Audoin
e fica viúvo. O desenvolvimento do eressëano e do beleriândico não
pára, mas mesmo assim uma inquietação persegue Alboin; um desejo que
ele identifica com um incontrolável anseio por voltar no tempo:

“Considerando os últimos trinta anos, ele sentia que […] seu
estado de espírito mais permanente, embora muitas vezes encoberto ou
suprimido, tinha sido desde a infância o desejo de voltar. De caminhar
no Tempo, talvez, como os homens caminham em estradas compridas; ou de
observá-lo, como os homens podem ver o mundo do alto de uma montanha.
[…] Mas, de qualquer maneira, desejava ver com seus olhos e escutar
com seus ouvidos: ver o aspecto de terras antigas ou mesmo esquecidas,
contemplar homens antigos caminhando, e ouvir suas línguas da maneira
que eles as falavam, nos dias antes dos dias, quando línguas de
linhagem esquecida eram ouvidas em reinos há muito desaparecidos nas
costas do Atlântico”.

Audoin, que recebera esse nome em homenagem ao pai do príncipe lombardo
Alboin, revela ter interesses muito semelhantes aos de seu pai, mas com
a diferença importante de pensar mais por imagens, ao invés de
elementos lingüísticos como Alboin. Este pensa em revelar ao filho as
línguas que estava criando ou “descobrindo”, quando tem um sonho
especialmente perturbador. Nele, um fragmento de eressëano parece
descrever uma terrível catástrofe: os numenoreanos teriam caído sob uma
sombra malévola, feito guerra aos Poderes e Númenor, como conseqüência,
teria submergido no Oceano.

Enquanto tenta decifrar o verdadeiro sentido do fragmento eressëano, o
desejo por voltar no tempo toma cada vez mais conta de Alboin. Ele
deseja uma máquina do tempo, mas tem certeza de que “o tempo não pode
ser conquistado por máquinas”. Ele sente mais uma vez a ameaça das
�guias dos Senhores do Oeste sobre Númenor, e adormece. E, no sonho,
vem a resposta. Uma figura alta e sombria, que recordava a Alboin seu
pai, surge e lhe fala:

“Estou com você. Eu era de Númenor, o pai de muitos pais antes de
você. Sou Elendil, que em eressëano é “amigo-dos-elfos”, e muitos foram
chamados assim desde então. Você pode ter seu desejo”.

Elendil oferece a Alboin a possibilidade de voltar no tempo, e
contemplar aquilo que ele mais desejava e mais temia, com a condição de
que ele levasse Audoin consigo. Mas adverte-o de que, uma vez no
passado, os dois estarão no mesmo estado de suas vidas presentes, e
sujeitos ao perigo e à morte. Alboin passa por um terrível momento de
indecisão, mas decide aceitar a viagem. E pai e filho se vêem em
Númenor, na pele de Elendil e seu filho Herendil [os dois nomes são
traduções de Alboin e Audoin, respectivamente], tendo que enfrentar a
Sombra de Sauron sobre Ponente.

A narrativa de The Lost Road pára exatamente no momento em que Elendil
explica a seu filho a verdadeira natureza e intenções de Sauron, e os
dois decidem lutar contra o servo de Morgoth. Mas, ao que parece,
Tolkien pretendia que a estrutura do livro fosse mais complexa:
voltando progressivamente no tempo, pai e filho iriam se identificar
com Aelfwine e Eadwine na Inglaterra saxã do século IX; com os
lombardos Alboin e Audoin na Itália do século VI; e assim
sucessivamente, passando por camadas cada vez mais profundas das lendas
e mitos do noroeste da Europa, até chegarem a Númenor. Em cada
episódio, um deles deveria pronunciar as terríveis palavras: “Eis as
Ã?guias dos Senhores do Oeste vindo sobre Númenor!”. Infelizmente [ou
felizmente, considerando que todo o desenvolvimento da lenda de Númenor
teria tomado outro rumo], Tolkien jamais passou dos rascunhos para a
conclusão da história.

Parte II – Veja como as idéias presentes em The Lost Road evoluíram de
forma surpreendente e geraram The Notion Club Papers, outra intrigante
obra inacaba de Tolkien!

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