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Paulo Venturelli

Ana Lovejoy

Administrador
Maior arrependimento de graduanda: nunca ter me matriculado em aula do Venturelli. Anyway, compartilhando o perfil escrito pelo José Carlos Fernandes (de quem fui aluna em outra graduação :lol: ) porque está muito bacana (as usual) e serve como incentivo para quem está procurando mais brasileiros para ler.

Em 1978, ao pisar pela primeira vez numa sala de aula, o recém-formado em Letras Paulo Venturelli não tinha a mínima ideia do que deveria fazer. Apavorou-se. “Minha impressão era a de que o chão se movia e que a gurizada ia despencar em cima de mim”. Foi em meio a essa vertigem que decidiu praticar uma de suas maiores especialidades – a rebeldia –, promovendo um gesto tresloucado que dividiria sua trajetória em antes e depois daquele dia.

Pediu aos alunos – uma sétima série do tradicional Colégio Nossa Senhora de Sion, em Curitiba – que não só rasgassem o livro didático que tinham sobre a mesa, como o atirassem pela janela. Sem dó. Ninguém desobedeceu, para desespero da direção, que se viu numa saia justa diante daquela insólita chuva de papel picado. Pais, docentes, muitos pediriam sua cabeça, mas era tarde. O emprego durou pouco, mas a fama incendiária do professor Venturelli tinha ganhado a eternidade.

1989 – o telefone toca na casa de Venturelli. Na linha, um aluno do colégio Nossa Senhora Medianeira: “Paulo, Paulo, você precisa assistir a Sociedade dos poetas mortos. Esse filme é sobre nós...”. E desligou. No escuro do cinema, horas depois, chorou feito criança ao acompanhar a história do nada convencional professor de literatura John Keating, vivido por Robin Williams. Era impressionante a semelhança entre a trama e o que tinha experimentado em sala de aula. “Foram os anos mais importantes da minha vida”, resume. Quem viveu aquela época também acha.
Dez anos se passaram entre a mal-sucedida passagem pelo Sion e as glórias do Medianeira. Nesse período, há quem jure que tenha sido escrito o “método Paulo Venturelli” de ensino. Ele acha graça. Nunca houve pedagogia própria. No máximo seguia a regra: “Nada de mostrar os dentes para a gurizada”. Conquistou os alunos para a literatura, qual John Keating, na base do carisma e poder. Era rígido. Bem lembra dos estudantes do ensino médio, na porta da sala, tentando adivinhar que haveria para aquela manhã.

Poderia ser uma aula sem as carteiras, com todo mundo deitado no chão, ouvindo Pink Floyd. Ou um pito homérico por causa dos resultados da última leva de textos. As aulas eram tão imprevisíveis quanto o noticiário – de onde Paulo tirava seus temas. Usava textos objetivos de grandes jornais. Mas se valia também do mundo cão dos tabloides.“Eu puxava pelas coisas nas quais acreditava. Criticava da Playboy à Coca-Cola. Condenava a colonização da mente, a colonização da fantasia. Era um desbunde, literalmente”.

“Às vezes, ele era temperamental. Não fazia o tipo bonzinho. Seu estilo? Charlie Hebdo”, lembra a jornalista Valéria Prochmann, ex-aluna de Venturelli, o iconoclasta. Entusiasma-se. A exemplo de outros, chama-o de guru e afirma que as aulas com aquele catarinense culto e de pavio curto – o homem que lhes apresentou Kafka e Caio Fernando Abreu – decidiu suas escolhas. “Agora é que eu entendo as aulas do Venturelli”, costumam dizer os egressos, uma lista que vai da artista plástica Adriana Tabalipa ao escritor e videomaker Cezar Tridapalli. Paulo se impressiona com os depoimentos que recebe, às pencas, mandados pela turma que ele chegou a desdenhar, rotulando-a de burguesia com pele de pêssego.

Como um sujeito sem arreios conseguiu se manter tanto tempo num colégio confessional, eis a pergunta. Ele responde: acredita que virou um chamariz duplo, para pais que queriam filho com livro debaixo do braço e para guris e gurias loucos para se livrar do tédio escolar. Mesmo os dissidentes mais valentes – que juraram lhe dar uma sova de corrente –, ficavam pianinhos a diabruras tantas. Teria se aposentado lá. Não fosse um ocorrido por aqueles dias em que estreou Sociedade dos Poetas Mortos. Daí o motivo de parte das lágrimas derramadas na dita sessão de cinema.

Tinha pintado um concurso no Departamento de Letras da UFPR. Os amigos insistiram. Paulo tentou e passou. Ninguém acreditava que pudesse deixar o Medianeira. Nem ele. Mas em 1990 estava lá, no 10.º andar do Edifício Dom Pedro I da UFPR, não propriamente para ter alegrias, como logo percebeu. “Me arrependi. Nunca me entrosei com a burocracia, com o carreirismo e a produção de textos que ninguém lê. Mas podia dar menos aulas, escrever meus livros...” Aposentou-se em setembro passado, depois de 24 anos de ensino superior. Talvez não sinta saudade. O próximo romance, Madrugada de farpas, sobre uma paixão homoerótica inter-racial entre estudantes, trará, na rabeira, críticas à instituição. “A universidade em si nunca me encantou”.

Em tempo. Na carreira acadêmica, Paulo se tornou referência nacional em literatura homoerótica. Tomou muito sarro, é claro. Estudou Adolfo Caminha, João Silvério Trevisan, Caio Fernando Abreu, Silviano Santiago, Roberto Piva. Tem material para produzir uma suma sobre prosa e poesia gay no Brasil. O tema lhe surgiu por acaso, quando um amigo, num acinte, lhe perguntou por que havia “tanto veado no teatro”. Respondeu a seu modo, estudando. Lógico – vive às turras com a turma que estuda gênero e guetos em geral. “Nunca me acertei em nenhum grupo. Minha independência intelectual ofende as pessoas”, diz, num momento raro de autoexposição.

Bigodes do pai

Paulo Venturelli foi criado entre Brusque e Jaraguá do Sul, Santa Catarina, numa família de poucas posses. Um de seus luxos foi ter sido alfabetizado por uma religiosa, irmã Celeste, que lia para ele os contos de Perrault. Os pais eram operários da indústria da tecelagem. Não passou ileso por nenhum dos dois. Lembra de acompanhar o pai em reuniões de sindicato. Getulista e membro do PTB, chegava a se disfarçar com bigodes para panfletar nas periferias. Credita a ele o temperamento, digamos, forte, e a indignação cívica.

Mas foi a mãe, Albertina, que o influenciou para a experiência mais determinante de sua vida – a ida para o seminário da Congregação do Sagrado Coração de Jesus, os dehonianos, em Corupá, nos idos de 1962. Tinha apenas 12 anos e deu trabalho. Se por um lado Paulo desfrutou de todas as benesses do colégio – a biblioteca, o teatro, o jornal mural, o rádio, dos quais fala com entusiasmo – por outro atazanou o clero com seu espírito demolidor.

Lia com apetite. Descobriu Conan Doyle, as aventuras de Karl May e pockets, “aqueles de vamps com peitão”. As partes picantes eram censuradas com ranhuras de caneta preta. “O que a gente imaginava era muito pior do que o que devia estar escrito”, brinca sobre o ambiente bipolar e estimulante, onde cartas eram abertas, mas se podia ouvir iê-iê-iê e assistir a filmes toda semana.

Em 1968, o das barricadas, os reitores o mandaram embora. Alegaram que não tinha vocação para a obediência. Menos de dois anos depois, estava de volta, mitificado. “Eu era o cara que tinha ido para o mundo. Minha vida se resumiu a ouvir os dilemas dos meus colegas, a maioria de ordem afetiva. Todos tinham problema de sexo. Foi uma rebordosa”. Em poucos meses, pediu para sair. Mais uns meses, depois de uma missa, avisou a todos ser ateu, para desespero da mãe, que até hoje reza por sua conversão.

Só lhe faltava mais uma ruptura – com Jaraguá do Sul. Demoraria. A boa escrita e educação lhe garantiram salário alto e obrigações: pagava aluguel na casa de quatro filhos. Em 1974, chamou sua turma e disse que viria para Curitiba, queria ser escritor. Sabia que precisavam dele, mas era o que tinha de fazer. Fez.

Não foi um mar e rosas. No começo, morava nas barbas do Cajuru, mudava de empregos – foi garçom de churrascaria –, alugava quartinhos e comia pouco. Formou sua própria família de trás para frente – primeiro veio Gigio, um ex-menino em situação de rua que adotou logo que desembarcou na cidade. E depois Líbera, sua mulher, a quem conheceu nos tempos de Medianeira, de uma vez para sempre. As aulas na UFPR não eram tão estimulantes quanto sonhava. Mas havia algo que valia cada noite sem jantar – o teatro.

Embora Paulo Venturelli seja conhecido pela literatura infantojuvenil – os seus Anjo rouco, Admirável ovo novo e Visita à baleia são marcos nacionais no gênero, somando, juntos, perto de 100 mil exemplares – seu posto nas artes cênicas é incontestável. Chegou a sonhar com os palcos – em qualquer das posições – e produziu muito, em especial ao lado do já falecido Cleon Jacques. A falta de profissionalismo e a inconstância financeira da classe, contudo, o derrotaram.

Fala do assunto com certa irritação – “vivem me pedindo textos e me negando créditos”–, pachorra semelhante à devotada aos tempos de seminário. “Não gosto desse assunto. Pago terapia até hoje”, dispara. Mas adianta que tem um livro pronto em que saltam algumas memórias do claustro. Livro pronto, a propósito, é uma marca de Paulo Venturelli. São muitos, sempre em gestação. “Está vendo esse caderno? É o número 43. Você é testemunha”...

Sim, cadernos. Paulo Venturelli escreve todos os dias, à mão, em cadernos numerados. De um caderno passa a limpo para outro, “com letra caprichada”. Só depois vai para o computador. As tarefas são metodicamente divididas – a manhã para produção literária; a tarde para estudo e leitura; e às noites, para a leitura. Gasta mais de R$ 2 mil por mês em livros. No prédio em que mora, tem dois apartamentos – um para ele e Líbera, outro para os 15 mil títulos, fora a infinidade de CDs, pôsteres de ídolos como James Dean e Machado de Assis. E flâmulas do Atlético Paranaense.

O apartamento-biblioteca é uma lenda dos pinheirais. Seria seu elo com os ex-alunos, que aparecem vez em quando para uma consulta. O movimento não parece mais tão intenso. Aos 64 anos, Paulo Venturelli dá a entender que se retirou. Livre circulação naquele espaço, apenas do poodle Nino, que quebra a aura monástica local. O exílio para produzir e pensar não pesa à consciência do socialista declarado – aquele sempre pronto para provocar os bem-nascidos do Medianeira. Ainda os atiça quando lhe aparecem pela frente. Que joguem tudo pela janela. “Eu sou o cara que bota fogo no circo”, avisa.

Para quem ficou curioso, Madrugada de farpas sai no primeiro semestre pela Arte&Letra.
 

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