• Caro Visitante, por que não gastar alguns segundos e criar uma Conta no Fórum Valinor? Desta forma, além de não ver este aviso novamente, poderá participar de nossa comunidade, inserir suas opiniões e sugestões, fazendo parte deste que é um maiores Fóruns de Discussão do Brasil! Aproveite e cadastre-se já!

[LuizWsp][Explendor][L]

LuizWsp

A torch in the dark
In Memoriam
São fragmentos de uma história que fica na minha cabeça. talvez postando aqui eu consiga organizar um pouco melhor.

Autor: eu mesmo.
Título: Explendor
Capítulo 1: Batidas na porta.

Batidas na porta. O som é quase indistinguível, fruto da chuva forte.

Mas Fried era um monge já velho, e seu sono já não era tão pesado quanto antigamente. Se arrastou preocupado pela casa, com sono, tateando as paredes frias. Quem poderia ser àquela hora?Ao abrir as pesadas portas, porém, não encontrou a resposta de imediato. Seria uma brincadeira? Ou teria imaginado tudo? Forçou os olhos mas não viu nada.O temporal era muito forte e a visão não alcançava muito adiante. Quase decidiu se voltar, quando um demorado relâmpago escolheu aquele momento para iluminar tudo com seu clarão.


Havia algo no chão, logo acima dos três degraus de pedra da igreja que Fried cuidava e morava. O teto da varanda, embora fosse amplo, bem trabalhado e ornamentado, não impedia que o embrulhado de panos à sua frente tomasse alguns pingos daquela densa chuva. Após o rápido clarão, tudo escureceu novamente. Com cuidado, ele usou a memória para se guiar em lugar da visão, e tomou nos braços sua entrega.


Era um bebê, não deveria ter muitos meses de vida. Apesar do cenário de terror e do abandono, não chorava. Olhava para ele com um olhar bastante calmo, totalmente contrário ao estado de espírito do monge. Nunca se acorda preparado para ganhar um bebê como encomenda no meio da noite.


Sua cabeça era um turbilhão de perguntas. Antes mesmo de formular um questionamento, outro se formava em cima desse. Aos poucos, sentiu o calor daquele pequeno ser, naquela noite gélida, e os olhos do bebê estranhamente passavam uma mensagem de que ele não deveria ter medo. Acalmou-se. As perguntas não importavam mais. Naquele momento ele percebeu que seria o pai daquela criatura indefesa.
 
Obrigado pelas mensagens. @Malkyn: o principal objetivo do capítulo era realmente o fato que o bebê não mostrava reação ao estado que se encontrava, então seu post me fez ver que atingi o objetivo! O próximo capítulo não é nada empolgante, mas eu achei necessário. Logo mais posto um com história de verdade.

Capítulo 2: Gártore

Gártore era uma cidade triste.

De certo, não era a primeira opção de quem lá morava. O assunto principal dos mais jovens naquela região eram os planos pra dali sair. Fazia parte de um complexo de ilhas, chamado de Ulna, das quais era uma das menores. Eram duas ilhas maiores, Hamato, a maior e mais populosa e Rotúla, a ilha dos mais ricos, cercadas por várias outras ilhotas menores.

Além de tudo, Gártore era uma cidade velha, muito velha. Ninguém sabia responder quando fora construída. Seu estilo e arquitetura eram remanescentes de um tempo muitos anos atrás, talvez eras. Alguns diziam que, no passado, era a opção dos ricos que queriam ter uma qualidade de vida maior. Assim, enriqueciam nas ilhas principais, e passavam o resto de seus dias na tranquilidade de Gártore. Outros especulavam que a cidade fora edificada para abrigar jovens discípulos do deus Garoth.

Fosse como fosse, era uma pequena cidade, que ocupava cerca da metade da ilha em que foi edificada. Ficava na porção sul da ilha, e era toda cercada por muros que dividiam a parcela civilizada da natureza selvagem. Somente os caçadores passavam para a parte norte da ilha. O único portão ficava por sobre uma ponte, que passava imponente por sobre os muros da cidade. Apesar de Gártore ficar a sudoeste de Hamato, os portos ficavam ao sudeste da ilha, e por lá faziam suas viagens e todo o comércio, que era muito raro. Gártore era auto suficiente, e quem morasse lá por muito tempo lentamente se esquecia do resto do mundo, como se fosse uma memória distante. Era um pequeno mundo particular.

Bill, o barqueiro, era quem mais viajava e mantinha algum comércio com as ilhas maiores. Viajava por vários meses, e voltava após vários outros, mas os mais velhos nunca se interessavam em perguntar por notícias de lá de fora. Os mais novos, entretanto, quase sempre sonhavam em sair de lá, encontrar novas pessoas, novos estilos de vida, e levar uma vida de prestígio em Hamato, e, quem sabe, com muita sorte, até chegar a conhecer Rotúla algum dia.

O que se sabe do passado é que a religião era um ponto forte. O clérigo responsável costumava ter bastante prestígio e o posto era passado de pai para filho. Entretanto, ao longo do tempo, as pessoas foram deixando de lado o culto a Garoth, e se ocupando mais de negócios e comércio. Quando Fried nasceu, poucos ainda frequentavam o templo, que antes era o centro social de Gártore. Pouco ao norte, várias pequeninas lojas começaram a chamar mais a atenção do povo, e quando uma escola foi construída ali perto, o movimento aumentou e a igreja foi aos poucos, esquecida. Obi foi o fundador da escola, uma gigantesca construção em frente à praça de comércio, destoando de todas aquelas outras construções antigas, com pedras que pareciam ter a idade da própria Terra. Os jovens se empolgavam e se reuniam ali, aprendiam a ler, escrever, caçar, comercializar, ler antigas runas, usar e forjar armas simples. Todos os alunos sonhavam ainda mais forte com o dia que sairiam de Gártore.

Quando Fried assumiu o templo, ainda muito novo, após a morte de seu pai, os recursos eram escassos. Ninguém mais apoiava sua religião esquecida, e o templo pouco a pouco ficava deteriorado, até ficar com uma aparência melancólica de abandono.
 
Capítulo 3: Um presente

Pelo modo como a viu pela primeira vez, iluminada por um majestoso relâmpago, decidiu que Explendor seria seu nome. Mesmo não tendo filhos, não demorou muito para Fried perceber que aquela criança era diferente. Logo nas primeiras semanas, o monge percebeu que a menina era mais quieta que o comum. Nunca chorava, raramente ria, se mexia de modo incomum. Os meses foram passando, e ela demorou a começar a andar, e mais ainda a falar as primeiras palavrinhas e isso despertava um grande temor no coração de Fried.

Devoto de Garoth, considerado o Deus dos sonhos, Fried era o único que não abandonava os antigos costumes. Entusiasmado, ainda conduzia seus rituais periodicamente, e mesmo pobre, o monge nunca negava auxílio a quem chegasse nos degraus do templo. Nos dias de prosperidade, o templo se erguia imponente e importante, e quem entrasse ali se sentia alguns centímetros menor. Atualmente, estava mais escuro e empoeirado, mas quem olhasse com atenção ainda observaria que havia uma grandiosidade latente naquelas paredes de pedra. Como o culto a Garoth foi lentamente deixado de lado, Fried não recebia agora, nenhum apoio, nem mesmo dos que antes faziam a caridade de ajudá-lo.

Comentavam pela cidade que aquela criança misteriosa, de quem quer que fosse, fora como um presente na vida daquele pobre velho, pois Explendor deu a ele um novo fôlego. Amava-a mais que tudo na vida, e por ela fazia de tudo. Não se passava um dia sem que agradecesse a Garoth por aquele presente, e pedia a ele uma forma de retribuir.

Das características que mais chamavam a atenção na pequena menina, era como ela era muito amável e carinhosa, especialmente com Fried. Fazia de tudo para agradar. Seus presentes eram tão incomuns quanto ela, mas Fried era grato pela intenção. Aos 4 anos, ao ser presenteada pelo pai com uma flor, no dia seguinte Explendor retribuiu com um rato morto. Segundo ela, o rato era um presente melhor, já que este era bem mais difícil de matar do que a flor.

O velho se desdobrava como podia para comprar roupas e alimentos para sua filha, mas sempre achava que deveria fazer mais. Aos 5 anos da filha, realizou um sonho e conseguiu que Explendor fosse para a escola, como todos os outros de sua idade, mesmo que tivesse o despreazer de lidar com Obi vez ou outra. Apesar de ser sonho do pai, isso se mostrou ser o pesadelo da filha, que não se adaptava àquele ambiente. Explendor era sempre mais lenta a aprender as coisas que as crianças da mesma idade. Demorava bastante a formular uma frase ou até palavras, por menores que fossem. Na confusão do entusiasmo natural das crianças, que gritavam e berravam e se divertiam, ela se sentia sempre perdida, como quem não sabe um idioma ao tentar acompanhar uma conversa entre dois estrangeiros. Apesar de demonstrar agilidade nas brincadeiras, e algumas habilidades manuais, tinha muita dificuldade de aprender qualquer lição que era passada, se não tivesse um acompanhamento mais próximo dos tutores.

Na escola, a filha do monge sempre procurava fazer amizades. Como seu pai, sempre se mostrava pronta a ajudar alguma criança que se machucasse por qualquer motivo. Era extremamente bondosa e quase nunca se irritava. Mesmo assim, era vítima dos garotos mais velhos. Certo dia, conhecendo como ela adorava qualquer tipo de doce, dois deles deixaram uma cereja dentro de um armário, de forma que ela visse, e quando ela entrou para pegar, trancaram-na e deixaram a pobre menina ali dentro. Fried só a encontrou no dia seguinte, em pé com as mãos cruzadas atrás do corpo apoiando-se na madeira do armário, olhando para baixo, com uma expressão distante e resignada.

Após outros episódios similares, Fried não aguentou mais, e terminou por tirar Explendor da escola, passando a ensiná-la ele mesmo, como podia.
 
Última edição:
Postagem dupla hoje!!!

Capítulo 4:
Oito anos.

"São 10 moedas senhor." A voz forte de Tom se faz ouvir por sobre toda a gritaria em sua loja. Pessoas comprando e vendendo e negociando aos berros. Cerca de dez ou mais pessoas se debruçando sobre o balcão, querendo se fazer ouvir às pressas. O cheiro de carne fresca já tradicional era como um perfume para Tom, um homem gordo, com muita barba e pouco cabelo, dono da loja de carnes mais popular em Gártore. De toda parte os criadores vinham vender seus animais para ele, ou vinham comprar animais com ele. Era uma espécie de distribuidor.

"Tenho 30 quilos de porcos, mais os dez da semana passada". "Vou querer dois porcos por favor" "Só 14 moedas por esses frangos? Mas você os vende por 30". Tom adorava aquilo tudo. Quem falasse mais alto geralmente era atendido primeiro, com exceção de uma cliente. Quando a confusão começava a ficar grande demais, geralmente pedia ajuda a sua esposa. "Delle, me ajude com esses fregueses sujos e suados, chegou uma em especial", dizia ele gritando e sorrindo. Deixava sua esposa no balcão e parava tudo para atender aquela menininha do cabelo ruivo, de fala arrastada e voz baixa, que entrava na loja de fininho e ficava pacientemente no canto segurando a mercadoria.

"Ora, se não é minha fornecedora favorita?" - Bbbbom dia, ssenhor Tom. Falava essas poucas palavras com muito esforço enquanto os outros fregueses gritavam umas 30 frases ao mesmo tempo. Mas Tom não se importava, gostava muito da pequena Explendor. Ela chegava suada, mais suja que um mendigo, com os cabelos todos atrapalhados pois não dava atenção a nada disso. – Eu... tttrouxe só três ratos e... dois coelhos hoje. Estavam com muito medo de mim e fugiam. "Posso te dar quatro moeda por cada coelho, e mais uma pelos ratos". - Oh, tudo bem, responde a garota, visivelmente decepcionada. - Os ratos não estão vendendo muito bem, não é? "Tenho certeza que vai melhorar essa semana."

Ela repetia aquilo todos os dias. Caçava os coelhos nos bosques ao sul da cidade, e alguns ratos que procuravam abrigo nas cavernas ali perto. Vendia-os por qualquer preço na loja do Tom, corria pra loja ao lado e trocava tudo por algo de comer. Voltava para o templo cansada e satisfeita. Era frequentemente confundida com meninos, às vezes mendigos, e uma ou outra vez até com animais, se era vista de longe e estivesse escuro. No começo Fried era contra, mas ela fazia mesmo assim. Depois a ajuda que ela trazia passou a ser indispensável.

Delle quase sempre repreendia o marido: "Você sabe que não podemos ficar sustentando a menina pra sempre, Tom. Não é nossa filha." Mas ele a defendia: "gosto de recompensar o trabalho duro dela". "Qualquer dia ela vai descobrir que você faz isso só por caridade..." Mas Tom já não estava mais lá, já tinha levado os ratos mortos para descartá-los, já que não tinham valor algum.

Explendor era sempre bem humorada, mas não tinha nenhum amigo mais próximo, senão Bill, o barqueiro. Quando ele não estava em uma de suas viagens, ela sempre passava para visitá-lo e ouvir suas histórias. Ouvia muito mais que falava. Aliás, sempre que conversava se comportava assim, e só falava bastante em conversas com Fried. Sempre que podia, substituía um "sim" ou "não" por um aceno de cabeça. Era uma garota bem alegre e simples. Aventureira, determinada e muito tímida. Ao contrário dos outros jovens, não tinha nenhuma pretensão de sair da ilha, e Fried também não a encorajava a querer. Seus maiores medos eram o velho da loja de poções, de quem Fried sempre aconselhava distância – não acreditava muito nessa coisa toda – e um homem misterioso que ela não conhecia, nem Fried, que de vez enquanto ela pegava olhando-a enquanto voltava de suas "caçadas". Parecia um bêbado que não tinha onde morar ou o que fazer e só saía de noite, mas uma ocasião Explendor pôde perceber que carregava uma espada na cintura, debaixo da roupa.
 
Capítulo 5: Uma corda fraca

A noite estava quente, como era comum naquela época do ano, e Explendor havia passado o dia todo pescando ao sul da ilha, sozinha. Não gostava muito de pescar, mas precisavam ter o que comer. Voltava cansada, andando devagar, relaxada pelo dia todo de pescaria, o cesto pesando-lhe as costas. O céu estava claro, mas como não viu nenhum movimento pelo caminho, concluiu que já estava bastante tarde. Mas Fried haveria de perdoá-la o atraso, afinal, durante o dia aqueles peixes preguiçosos não queriam fisgar o anzol, só durante a noite ela começara a ter mais sorte! Atipicamente, hoje não estava toda desarrumada, e nesses raros momentos podia-se ver como estava se tornando bela. Cabelo ruivo escuro e bem liso, diferente da maioria das pessoas da ilha. A pele era lisa e perfeita, e o desenho do rosto não tinha nenhuma falha. Era pequena pra alguém da sua idade e bem magra, passando a primeira impressão de ser indefesa, porém era surpreendentemente ágil, muito mais do que com a fala. Tinha muita facilidade com qualquer tarefa manual, tanto as que exigiam habilidade quanto as que exigiam precisão ou velocidade e até um pouco de força. Contudo, naquela noite, o que mais chamava a atenção nela, de certo, era o cheiro de peixe.

Já devia ter passado o meio da noite, e ela sentia muita fome quando estava terminando o percurso. Assim que fizesse uma última curva para a direita e começasse a descer pela estreita ponte de madeira que passava por sobre uma fazenda particular, era sinal que estava chegando. De lá já conseguiria avistar o templo. Porém, a visão do templo que Explendor teve naquele momento não foi de alívio, algo estava diferente. Sempre que saía assim para pescar, Fried a esperava com as luzes acesas até que ela retornasse, mas desta vez, tudo estava apagado. Poderia não ser nada, mas ela pressentiu que fosse algo importante. Sentiu medo e não sabia exatamente o porquê. Apertou o passo. O caminho que ela tomava exigia ainda uma pequena curva sinuosa, primeiro para esquerda, depois à direita, antes de descer suavemente ao nível da rua que circundava o templo. Com pressa, ela ignorou este caminho e pulou de onde estava direto para a rua. Faltavam agora poucos passos até o templo, mas na queda, a corda que segurava o cesto às suas costas não resistiu o peso e se rompeu, derrubando alguns peixes. Virou-se para trás , tirou o cesto das costas e se ajoelhou na rua pavimentada com ladrilhos de pedra para pegá-los.

Estava tudo muito escuro, a fonte de luz mais próxima era um lampião ao longe, na sua frente, exatamente abaixo da mesma ponte de madeira por onde viera. Explendor fazia dela o melhor uso possível para localizar seus peixes, pensando no sei pai com a ansiedade crescendo no peito, quando de repente alguém bloqueou a tal fonte de luz. Quando a menina olhou para cima, viu aquela figura misteriosa que sempre a seguia. Não conseguia ver nada além de sua silhueta, já que a luz estava atrás dele, mas sabia quem era. Reconheceu o capuz preto e o guarda-mão e cabo dourados de sua espada. Antes que pensasse em qualquer coisa, ele deu um passo a frente e a agarrou.
 
Capítulo 6: Sozinha

Antes que Explendor pudesse piscar, aquela sombra se projetou sobre ela, segurando-lhe a boca, virando-a de costas e levantando-a do chão, tudo com um movimento apenas. Com a boca, ele chiava indicando que queria que ela fizesse silêncio. Ela era tão pequena perto dele! Seus pés se debatiam, flutuando sobre o chão, enquanto era levada para debaixo da ponte, para longe do templo e da rua. Explendor sempre teve medo dele. Pela cidade, diziam que era louco, mas seu pai, mesmo que aconselhasse a filha a manter distância, procurava confortá-la dizendo que talvez não tivesse motivo para ter medo nenhum “Talvez é apenas uma pessoa estranha, mas inofensiva” dizia ele. Porém, não havia tempo para pensar nisso agora, sua mente estava focada em resistir, ela só não sabia como. Era muito menor e mais fraca.

Com uma das mãos, o agressor lhe segurava a boca para que não gritasse. Com o braço direito, abraçava-lhe por trás e prendia os dois braços dela ao mesmo tempo. Novamente fez o chiado para que ficasse quieta. – Shhh. Ninguém pode te ouvir. – Deu a volta com ela e escorou as costas em uma parede. Ali, na escuridão, eles pararam, enquanto o homem ficou simplesmente segurando a menina acima do chão de terra úmido, em baixo da ponte. Explendor sentiu que o homem estava bêbado. Tentava se debater, mas estava tão presa naqueles braços que mal podia se mexer. Ele continuou: – Você é tão nova, tão linda, tão... Você não merece ver isso, eu vou cuidar de você.

Ainda focada em fugir, a menina procurava qualquer brecha que pudesse utilizar, e num momento de descuido, conseguiu abrir a boca e morder-lhe o dedo com toda a força que podia. O bêbado gemeu, segurando-se para não gritar, mas perdeu as forças e acabou soltando-a. Ela caiu no chão e logo se levantou, correndo pelo mesmo caminho pelo qual havia sido carregada, buscando chegar ao templo mais uma vez. Não era forte, mas corria muito. Passou pelos peixes caídos, que agora não importavam mais, deu a volta no templo em direção à porta principal, nos mesmos degraus onde havia sido encontrada 13 anos antes. Só pensava em conseguir entrar e fechar a porta atrás de si e estaria em segurança. Nem se lembrava mais da preocupação pelo templo estar de luzes apagadas, entrou com pressa e fechou a porta, procurando ansiosamente pela chave para trancá-la. As mãos trêmulas deixaram a chave cair, que no escuro, se perdeu. Ajoelhada, tateava o chão em desespero, em busca da sua salvação, temendo que aquele homem derrubasse a porta a qualquer momento. Encontrou a chave, e agora o desafio era encontrar a fechadura, tentando controlar seus próprios movimentos, e quando finalmente a porta foi trancada, ela ainda ficou alguns instantes com as mãos a empurrar a porta, esperando pelo pior, antes de conseguir se recompor.

Ao se virar, entretanto, viu algo que a fez esquecer completamente tudo que acontecera até aquele momento. No chão, uma pequena vela queimava seus últimos momentos e sua luz fraca iluminava um cenário de terror que para sempre estaria impresso na memória de Explendor. Seu pai estava no chão, deitado, coberto em sangue. O peito descoberto revelava várias marcas de corte, e o rosto uma expressão de pavor. Sua filha se aproximou, atônita, procurando entender o que se passara ali. Lembrou-se da ansiedade que a fizera correr para o templo, das luzes apagadas... Não acreditava ser verdade. Ao chegar perto sentiu que pisava em sangue. Por algum motivo freou suas mãos antes de tocar no rosto de Fried. Logo acima dele, na parede, também em sangue, havia alguns símbolos que ela não discerniu o que eram e também não deu muita atenção. Apesar da descrença, não demorou a perceber a gravidade da situação: seu pai estava morto. Prostrou-se, ajoelhada diante da única família que conhecera toda sua vida. Sentiu todas as forças que ainda restavam abandonarem-lhe o corpo. Com isso, deitou-se ao lado dele, ali mesmo, naquela chão sangrento, e não conseguiu mais se mover. Seus olhos estavam perdidos e sua mente também. Conseguiu, de relance, observar que o homem encapuzado estava entrando pela janela a sua direita, mas não teve nenhuma reação. Simplesmente, dormiu.
 
Última edição:
Capítulo 7: Do lado de fora

Acordou e não reconheceu onde estava. Já amanhecera há algumas horas e estava numa cama improvisada, pequena, não muito confortável. Nunca estivera ali antes. Estava com outras roupas, que não eram dela, mas o cheiro de pescaria e algumas marcas do sangue do seu pai confirmavam que a noite anterior não fora apenas um pesadelo. Levantou e abriu os olhos devagar enquanto analisava o ambiente em que estava, com o estômago reclamando fome. Reconheceu o que era uma casa improvisada dentro de uma árvore. Geralmente, esse tipo de local que servia de repouso para caçadores que se aventuravam muito longe da cidade, pois era um local alto e conferia alguma proteção em um ambiente selvagem. Havia um fogão improvisado (um amontoado de lenha) no canto, e um móvel antigo de madeira – logo à frente de sua cama – que parecia grande demais para aquela pequena casinha. As paredes eram o próprio tronco da árvore, onde estavam pendurados dois arcos, e os galhos e folhas serviam como uma cortina improvisada. No centro, uma pequena mesa acompanhada de um solitário banquinho.

Explendor, olhando para fora da árvore, conseguiu reconhecer, muito longe, os muros da cidade de Gártore. Estava do lado de fora pela primeira vez – somente caçadores tinham o costume de se aventurar no norte, e, embora ela houvesse tentado algumas vezes, os guardas sempre a barravam por ser muito pequena. Como chegara ali?

Em cima da mesa, havia o que parecia ser um bilhete, e reconheceu a espada daquele bêbado que a atacara na noite anterior servindo como peso de papel. Nunca havia visto sua lâmina antes, longa, fina, brilhante e ameaçadora, mas aquele punho dourado era singular. O cabo era de madeira, e o pomo redondo era tão brilhante que ela imaginou ser de ouro. No bilhete, o seguinte estava escrito:

“No dia em que decidi me despedir deste mundo de dores, dirigi-me ao sul da cidade para comprar o veneno que me traria a liberdade desejada. Nesse dia, porém, meu caminho cruzou com o teu. Ignoro o por que, mas tua imagem me forçou a abandonar o plano. Talvez destino, talvez porque me lembrou de minha falecida filha, ou talvez porque eu procurava uma desculpa para não enfrentar aquele ato que eu tanto desejava, mas tanto temia. Algo me prendeu a ti. Passei a te seguir, como bem sei que o sabes, como de plantão, a esperar que algo ocorresse.

Na noite de ontem, porém, fartei-me de aguardar, e ingeri o veneno. Aguardaria mais algumas horas, e dormiria pela última vez. Foi quando vi três homens de manto negro adentrarem o templo em que tu moras e, curioso, vigiei pela janela. O que vi revirou-me o estômago. Sei defender-me e até gosto de uma boa briga, mas com a idade, não sou tão rápido nem tão sóbrio quanto outrora. Dei-me por inútil, e inútil fui. Entretanto, por milagre, ou novamente o destino, percebi que tu não estavas ainda no templo, mas dirigia-te a ele naquele instante. Desesperado, agi por impulso, na tentativa de poupar-te da morte certa, pois certamente também te matariam, ou pior, e pelo susto, peço-te perdão.


Rogo perdão também por ter te roubado do templo, mas imaginei que poderiam voltar, e recusei eu ser inútil uma vez mais, pela última vez na minha inútil vida. Estás agora em minha casa, que agora pode ser tua. Toma também para ti esta espada, e aprenda a usá-la. Rogo para que esta pequena ajuda que prestei a ti absolva parte dos meus pecados feitos em vida. Rogo-te que não voltes lá, para aquele cenário de horror e grande perigo.”

Não estava assinado, mas Explendor achou justo, já que ele mesmo nunca soubera o nome dela.
 
Última edição:
Capítulo 8: Não há nada com que a gente não se acostume

A espada lhe pareceu muito boa. Cortava bem, era leve e bem resistente. Não combinava muito com seu estilo mais selvagem que disciplinado, mas tornaram-se grandes amigas. Seu manuseio era diferente do que estava acostumada com a lança, exigindo mais leveza e precisão, e Explendor foi pegando o jeito lentamente. Suas refeições eram basicamente de frutas, peixes e pequenos animais. Embora odiasse sua própria habilidade como cozinheira, a necessidade falava mais alto. Seguiu o conselho do estranho que a salvara e não voltou para dentro da cidade. Do lado de fora, não havia com quem conversar, ninguém a quem recorrer por alguma ajuda e nenhum ouvido para desabafar o quanto sentia a falta do pai. Sentia falta também de pessoas em geral, do rapaz que trazia o leite, da risada dos vizinhos ou o pessoal a desejar bom dia. Era só ela, em um quarto numa árvore quase morta.

Ás vezes tudo parecia um sonho ruim, mas sempre acabava acordando no mesmo lugar que dormira. Suas copanhias eram o frio, fome e cansaço. Acostumou-se a mal terminar uma refeição e já trabalhar para garantir a próxima. Se pudesse, evitaria olhar para o sudoeste, pois os altos muros da cidade eram vistos de longe, e traziam memórias ruins.

Os caçadores que vinham da cidade, antes eram admirados por Explendor, mas agora ela suspeitava e temia que fossem os assassinos do pai a terminar o serviço. Oque significaria aquele comentário sobre o Coração Negro no bilhete? De todas as mágoas que carregou por toda a vida, uma das mais notáveis foi a de nunca ter descoberto o real motivo daquele ato, e se estavam atrás dela ou só do pai.

Somente depois de alguns meses ela conseguiu se aproximar de um pequeno grupo de caçadores. Precisava de roupas limpas e novas, e ofereceu alguns pescados em troca de dinheiro. Passou a caçar um pouco mais e trocar o excesso por algumas moedas de ouro. Não pagavam tão bem quanto Tom, mas não chegavam a ser injustos.

E foi assim que Explendor passou sua adolescência. Mesmo sob essas hostis circunstâncias, a vida foi se ajeitando. "Não há nada com que a gente não se acostume", ela gostava de pensar. Como caçadora, era importante que não fosse vista, e ficara boa nisso. Quatro invernos se passaram e ela foi à cidade poucas vezes, geralmente para afiar a espada ou comprar um doce, que tanto sentia falta. Como não havia outra coisa a fazer, caçava quase o dia todo, e estava bem eficiente nisso, além de ter ajuntado boa quantia com os caçadores. No fundo, ela até gostava da caça. Lembrava de todas as origens de cada uma das várias cicatrizes que colecionara durante esse tempo. A da perna esquerda, por exemplo, foi fugindo de urso ao roubar um pouco de mel, tão irresistível. No braço, as marcas de uma dentada de um jovem lobo, que por pouco não acabou numa tragédia maior. Apesar de ter amadurescido como mulher, ainda era miúda, mas muito rápida. Baixa e magra, mas muito resistente e até mesmo surpreendentemente forte pra alguém de seu tamanho. Conhecia praticamente toda a extensão da ilha, onde encontrar qual tipo de peixe, e quais lugares deveria evitar.

Fato curioso, Explendor jamais teve pena do que caçava, contanto que morressem depressa. Já havia comprado uma briga ou duas com alguns caçadores que teimavam em usar táticas dolorosas às suas presas. Sentia-se indefesa, mas com uma inerente obrigação de defender aqueles com ainda menos recursos do que ela.

Aos poucos, a atividade de caça ultrapassou a utilidade inicial, apenas de sobrevivência. Explendor passou a encontrar naquilo um refúgio para sua mente. Quando sentia fome, caçava. Quando se sentia sozinha, caçava. Se a saudade do pai apertava, saía para caçar e só voltava tarde da noite, na escuridão. Quando sentia ódio do seu destino ou desejo de ter uma vida normal, caçava até que a exaustão do corpo não permitisse que o cérebro pensasse mais naquelas coisas. E quando caçava, era como se transformasse em um outro alguém, ou como se alguém estivesse controlando-a e sua própria mente estivesse de férias por alguns instantes.
 
Última edição:
Capítulo 9: A excursão

Um dos vícios de Explendor era o de acompanhar de longe as excursões que a escola de Obi promovia para algumas turmas. Reuniam em torno de cinco a dez alunos e se aventuravam fora dos muros da cidade, “colocando em prática o que aprenderam nas aulas”. Explendor gostava de assistir como os alunos, mesmo escoltados, saíam pela ponte principal e desciam as longas escadas até o solo com olhos apreensivos, a postura defensiva e sempre juntinhos uns dos outros. Era como observar a si mesma no passado, em algumas de suas caças logo antes de sua mudança ao exílio. Ao mesmo tempo, era um pouco doloroso, pois sentia um pouco de inveja da vida aconchegante e protegida que eles levavam e principalmente do privilégio de viverem na companhia uns dos outros. Já se sentia muito selvagem para tomar coragem de iniciar um contato e temia ser descoberta. De qualquer forma, a cada nova excursão, algo dentro de si a compelia a observá-los durante todo o tempo.

Foi numa destas excursões que conheceu Circa. O grupo não tinha nada de diferente, e foram para as cavernas do norte, habitada por alguns trolls, do tipo pequeno, que era comum em Gártore. Explendor os seguia de longe, no escuro, enquanto o grupo ia à frente com suas tochas. Por conhecer tão bem aqueles lugares, ela nem precisava de luz para guiar-se. Naquele dia, entretanto, nem tudo correu como planejado. Por azar ou destino, após tomarem alguns caminhos que não deviam e fazerem algumas curvas equivocadas, toparam com um grande grupo de trolls, maior do que o esperado. Houve confusão e o grupo acabou se dispersando nos corredores estreitos, primeiro em dois, e depois em grupos ainda menores. Foi assim que Circa terminou sozinha, segurando uma tocha com as duas mãos, com as costas contra a parede, imóvel, os olhos arregalados e o medo travando qualquer ação, e foi assim que Explendor a encontrou. Permaneceu na escuridão, sem ser percebida, e observou que a menina da cidade não tinha a menor ideia do que fazer em seguida. Foi quando um dos trolls entrou em cena (e era um dos grandes), também segurando um grande pedaço de madeira que servia como tocha e logo que a encontrou, seguiu em sua direção. Para surpresa da caça e do caçador, Explendor saiu da sombra e se pôs no meio dos dois, pé direito atrás, braço esquerdo erguido segurando um escudo disforme (feito com umas escamas de um dragão morto que encontrara uns anos antes) e a mão direita escondendo a espada atrás do corpo. A fera analisou seu novo adversário, pequeno e aparentemente frágil, e aceitou o desafio. Aqueles braços finos não segurariam um golpe bem dado. Desferiu um golpe vertical com a tocha visando esmagar escudo, braço e o que estivesse por trás. Mas o escudo era apenas uma isca e, com uma rápida esquiva para a direita, Explendor desviou da tocha e contra atacou a perna do agressor, fazendo-a sangrar. Com a dor e a surpresa, o monstro tentou mais uma vez, com violência, e Explendor agora se esquivou para o outro lado com apenas um passo. Pé direito à frente e uma estocada firme a perfurar a pele grossa e garganta do inimigo. Tudo isso sem fazer o menor ruído.

Explendor fazia aquilo meio por instinto, meio por experiência, nunca havia sido ensinada essas coisas. Entretanto, a cena daquela pequena garota que devia ter a sua idade e era tão pequena quanto ela dominar uma fera três vezes maior sem uma gota de suor era a coisa mais incrível que Circa havia presenciado.
** Posts duplicados combinados **
Capítulo 10: Circa

Circa era uma garota morena, magra e um pouco mais alta que Explendor. Aparentemente comum, filha de uma pescadora da região, órfã de pai. Tinha apenas um irmão, mais novo. Era mais magra que Explendor e vestia-se com delicadeza e prestava atenção até demais em sua própria aparência, principalmente os longos cabelos negros ondulados. Era muito bonita.

Com o tempo, tornaram-se companheiras muito próximas. Circa sempre grata por Explendor ter-lhe salvo a vida, e a jovem caçadora contente por finalmente ter uma companhia de sua idade. Na maioria das vezes encontravam-se fora da cidade, quando Circa conseguia dar uma escapada, mas às vezes Explendor criava coragem e transpunha os muros para visitar sua única amiga. Com ela, se sentia mais desinibida e não gaguejava tanto como na presença de outras pessoas. Algumas vezes, conviviam também com outras pessoas e colegas da mesma idade, mas Explendor nunca dava muita atenção ou importância para os outros, pelo contrário, tinha ciúmes de qualquer outra pessoa que roubasse a atenção de de sua única amiga. Conversavam bastante, comiam juntas, passeavam... Explendor a levava para caçar algumas vezes (mas fazia todo o trabalho sozinha) e Circa a mostrava coisas do mundo civilizado para a pequena selvagem. Para a ruivinha, o que importava mesmo era a companhia dela e nada mais. Foi com ela que Explendor conseguiu, finalmente, após tantos anos, visitar novamente o templo. Estava abandonado. Seus pertences e de seu pai haviam sido roubados ou confiscados, não sabia. Aquele lugar antes acolhedor, onde havia passado toda a infância, agora era tenebroso e sem vida. Embora alguém tivesse limpado o sangue daquela horrível cena, no lugar onde vira seu pai pela última vez, ela pôde perceber que o símbolo que os assassinos haviam pintado naquele noite era a figura de um coração negro, marca de uma facção de mesmo nome, composta por uns fanáticos religiosos. Nenhuma das duas disse nada, e foram embora.

Circa havia estudado na escola de Obi com o propósito de sair da ilha de Gártore assim que fizesse 18 anos e tentar a vida em Hamato, como tantos outros. Não era fácil, mas todo ano, os oito melhores alunos receberiam assistência extra, o que tornava tudo mais fácil e mais atrativo. Não tinha muita aptidão para combate ou caça, mas era boa com fazer algumas poções, chás e coisas do gênero, tinha boa memória e boa disciplina, o que era muito valorizado na região. Por esse motivo, foi uma entre os oito alunos escolhidos naquele ano.

Explendor, que agora estava muito apegada a ela, não queria ser deixada para trás, novamente na companhia da solidão. Tomou todo o dinheiro que tinha ajuntado com suas caçadas e decidiu que iriam tentar a vida juntas na grande ilha de Hamato. Escolheriam um lugar simples na cidade de Temarlo, no extremo noroeste de Hamato e dividiriam as despesas.
 
Última edição:
Capítulo 11: Pessoas selvagens

Circa iria para Temarlo com seus sete colegas e Obi, escoltando-os até o porto e até sua primeira moradia temporária. Mapa, pertences e alguns mantimentos, ajuda no translado e toda a assistência possível. Explendor não tinha tanta sorte, e fez a viagem sozinha, um mês antes. Pegou carona num barco pequeno que passava por Gártore para fins comerciais. A viagem foi desconfortável, o barco era pequeno e sacolejava por demais nas ondas do mar, na companhia de marinheiros gordos e de longas barbas sujas. Definitivamente aquela pequena ruiva de apenas dezoito anos não pertencia àquele meio.

Quando chegou no porto de Temarlo, algumas poucas moedas no bolso (gastara todo o resto na passagem), três mudas de roupa, suas armas penduradas na cintura, Explendor teve mais medo que quando, cinco anos atrás, percebeu-se fora da cidade pela primeira vez. Todas aquelas pessoas eram muito mais intimidadoras que qualquer animal, que só ataca por fome ou segurança própria. A noite escura e a chuva forte não amenizavam o cenário. Tinha muita fome. Não tinha a menor noção de onde deveria ir e onde procurar passar a noite.

Decidiu tentar fingir que sabia o que estava fazendo, diziam que não era boa ideia mostrar que era estrangeiro. Cobriu os cabelos ruivos com um capuz e pôs-se a seguir um pescador que viera no mesmo barco que ela, mas desistiu assim que ele entrou em um bordel de muito mal gosto. A arquitetura de pedra era parecida com Gártore, mas as ruas eram muito mais populosas, e as pessoas passavam correndo, com um olhar desconfiado a analisar uns aos outros, o que a deixava muito desconfortável.

Chegou a uma espécie de taverna ou bar e decidiu avaliar o local. Estava muito cheio para seu gosto mas ela precisava de algo para comer. Por sorte, achou uma mesa vaga, afastada. Sentia que estava sendo vigiada por todo mundo. Sentia que já haviam descoberto que ela não pertencia àquele lugar e estava com medo. Pediu algo para comer embora achasse tudo muito caro. Ficou sentada por algumas horas acuada, e percebeu que estava exatamente como Circa, no dia em que a encontrara pela primeira vez. Ah, como queria que ela estivesse ali, estava tão cansada de viver sozinha o tempo todo... Solitária no meio de tanta gente. Começou a observar os outros clientes, talvez não fossem tão maus assim.

Fixou o olhar em um rapaz encostado em uma parede, do outro lado da rua, abaixo da luz de um lampião, com um pé no chão e outro na parede. Aparentava ter uns 5 ou 8 anos a mais do que ela. Deveria ir lá tentar falar com ele? Buscar algumas informações? Talvez, se explicasse a situação, ele até o ajudaria, não poderiam ser todos maus... Ela definitivamente precisaria de amizades nesse novo mundo. O sujeito não parecia nada mal, nem diferente dela mesma. Era magro, com rosto fino e aparência descansada. Não tinha barba. Segurava uma faca na mão direita, a qual usava para partir uma fruta roxa que vinha comendo, que ela não conhecia. Alternava o olhar somente entre a fruta e o céu, até que seu olhar cruzou com o de Explendor.

A princípio, ela desviou o olhar, por reflexo ou por medo. Não resistiu e olhou outra vez. Percebeu que ele continuava a encará-la, com uma expressão que Explendor não conseguia decifrar. O rapaz terminara a fruta e mastigava lentamente o último pedaço. Explendor tentou desviar o olhar uma, duas vezes, na esperança que ele também o fizesse, mas ele persistia. Com o bar e a rua movimentados, várias pessoas cruzavam a linha entre os dois, e ele persistia em fitá-la. Estavam relativamente distantes, mas a garota notou que ele estava com um quase imperceptível sorriso nos lábios, como se a desafiasse para olhar para ele também. Explendor não fugiu do desafio.

Como outros, um homem careca que andava pela rua para o sul cruzou a linha entre os dois naquele momento, caminhando próximo ao rapaz. Mas quando a linha foi desobstruída de novo, Explendor viu que o rapaz não estava mais olhando para ela. Em vez disso, ele estava enterrando sua faca na nuca do transeunte, tão facilmente quanto na fruta que comera. Com um forte movimento, forçou a vítima a cair de joelhos, indefesa. Puxou a faca para fora com grande violência e o sangue jorrou para todos os lados, parte dele em seu rosto. Sua mão esquerda apanhou a mochila da vítima antes mesmo que essa caísse no chão. Ainda uma última vez, tornou a olhar para Explendor, o sorriso nos lábios agora era largo e evidente, antes de colocar-se a correr para o norte, pelo mesmo caminho por onde o falecido havia chegado.
** Posts duplicados combinados **
Capítulo 12: Um dia para conhecer Temarlo

Quanto sangue frio! Explendor não conseguia acreditar no que vira. Grande parte das pessoas ao redor se afastaram, alguns pareceram não se importar, enquanto outros três, como abutres, se jogaram ao corpo deitado na rua a procurar o que pudessem pilhar. O garçom que a atendeu percebeu seu espanto: "Não se preocupe, aqui dentro você está segura. Mas fique de olhos abertos e olhos nas costas assim que pisar ali fora".

O que mais impressionou Explendor não foi o fato em si, mas a reação das pessoas. Um homem brutalmente assassinado pelas costas no meio da rua, mas era como se um simples copo houvesse caído no chão: todos olharam e se afastaram dos cacos, mas logo continuaram seus assuntos, como se aquilo fosse muito comum. Não demorou para que a recém-chegada entendesse o porque. Ainda naquela noite, mais dois episódios parecidos ocorreram. Uma mulher fora morta por uma flecha que veio da escuridão. Algumas horas depois dois jovens magos se enfrentaram, um com magias que pareciam ser elétricas, mas o vencedor foi o que fez uma magia para atear fogo no inimigo.

Ela, Circa e todos os outros tinham sonhado em sair de Gártore por muito tempo, mas talvez tudo teria sido um grande engano. Sentiu saudades de sua pequena ilha, onde tudo era mais simples. Ursos e lobos eram perigosos, mas até mesmo os trolls de lá só atacavam por necessidade, não por uma mochila e algumas moedas. Ela não saberia se defender de homens, ou de flechas que surgem do nada, e imaginou que morrer queimada como a última vítima fosse sofrimento demais. Mas agora ela estava lá, não havia como voltar. Como precisasse arrumar onde passar a noite, pensou em chamar o garçom e pedir informações. Paralisada pelo medo, assim que ele a atendeu, não conseguiu dizer palavra alguma. Sua língua e voz a traíam nos momentos mais inoportunos! Pediu mais uma água para ganhar tempo.

— Água? — Gritou alguém enquanto socava uma grande caneca com cerveja em sua mesa e puxava uma cadeira para se sentar. — Que tal segurar um estandarte dizendo "eu não sou daqui"? Seria mais discreto! — Soltou uma gargalhada enorme enquanto girou a cadeira e se sentou colocando o encosto a frente de sua barriga. — Você se lembra de mim... Estava me vigiando mais cedo, logo antes de eu matar aquele homem. — Disse ele com naturalidade. Seguiu um momento de silêncio. A menina não sabia o que responder, a presença dele a intimidava. Com uma atitude exageradamente descontraída, ele continuou: — Não pense que não vi que estava me olhando só porque está com esse capuz aí! hahaha. Terminou sua cerveja em um longo gole e fez um gesto para o garçom, pedindo outra. Explendor notou que havia um homem atrás dele que vigiava a conversa. Mais uma vez o rapaz falou: — Olha, não quero te assustar, aquele cara me devia umas moedas, não queria pagar e eu o fiz me pagar. Você não me deve nada, deve? — Ela apenas meneou a cabeça negativamente. — Então não tem que ter medo. Eu e meu amigo aqui atrás, nós cuidamos de pessoas como você... que chegam a Temarlo sem conhecer muita coisa. Você tem sorte, está em boas mãos. Como se chama? O tal amigo estava alguns passos atrás dele, escorado em uma parede de pedra, com as mãos segurando a própria mochila vermelha e olhando para o lado oposto.

Ela não podia responder, não podia se mexer e tinha dúvidas se realmente estava respirando. O garçom chegou com a cerveja do rapaz, que pediu outra para Explendor. — Você precisa se soltar um pouco, garota, está muito... — Gesticulava com a mão como se o movimento substituísse a palavra. Conversava o tempo todo com um sorriso no rosto. — Meu nome é Vick. Você veio de Gártore não é? Temarlo recebe pessoas de toda parte, mas quem vem de Gártore geralmente se assusta mais que os outros. Haha, eu sabia! Olha, eu já me apresentei e até lhe paguei uma cerveja, agora você me deve algo. Ou me revela seu nome ou tira o capuz, o que me diz?

Para alguém com tanta dificuldade na fala, aquela era uma escolha fácil, e tirou o capuz, revelando-se. A expressão de Vick mudou por um instante, surpreso com sua beleza diferenciada. A garota possuía uma aparência que flutuava entre uma atraente fragilidade e uma força dormente, esperando para explodir. — Nada de nomes então... - Continuou o estranho. - Mas gostei do seu cabelo!

Inclinou-se para a mesa, saboreando a cerveja, apoiou os braços na mesa e falou, mais baixo, dando a entender que o que falava era algo exclusivo: - Deixe-me lhe contar. Não muito longe daqui possuo um lugar... precisa de um lugar para passar a noite, não? Pois nesse lugar vai encontrar o que queres. É grande, protegido, silencioso e ninguém jamais reclamou!

Era exatamente o que ela queria, mas não com aquele assassino. Mas e se essa fosse a única opção da cidade? E se todos fossem assassinos? O coração de Explendor era tão puro que não conseguia entender com clareza a maldade ou a astúcia, e já começava a cogitar a ideia. Porém, algo nela a impedia, e pensava consigo mesma: "Você viu o que ele fez Explendor, não confie nele." Vick insistiu: — É pequeno mas aconchegante! — Reunindo todas as forças que podia, finalmente Explendor abriu a boca e respondeu, enquanto balançava a cabeça: — N... nnnão, mas... obrigada. — Antes que terminasse a frase o rapaz a interrompeu, inclinando-se para trás, mostrando as palmas das mãos e concordando: Talvez da próxima vez! Foi um prazer ter essa gostosa conversa, nos vemos um outro dia, com certeza. — Deu um largo sorriso e se retirou, com o companheiro atrás dele.

Explendor respirou aliviada como se algo estivesse lhe pressionando o peito este tempo todo. Dormiu ali mesmo, sentada á mesa do bar.
 
Capítulo 13: Hospedagem

Então era o caso que, devido ao imenso tamanho de Hamato, no mundo todo havia o debate sobre ser mesmo uma ilha ou se deveria de vez ser considerado um continente a parte. Uns defendiam que era apenas um complexo de ilhas, sendo uma grande ilha ao centro cercada por ilhas menores (mas ainda muito grandes). Outros defendiam que o tamanho de todas as áreas cobertas por terra naquela região, se somadas, eram tão ou mais extensos que os outros continentes do mundo.

Fosse como fosse, o rótulo não modificava por si o tamanho daquele lugar. Além de enorme, o complexo era também muito distante do próximo pedaço de terra. As várias ilhas, assim como a pequena Gártore, aprenderam a ser suficientes em si mesma e raramente necessitavam de recursos umas das outras, jamais de outro continente. Assim sendo, esses fatores acabavam por causar um grande isolamento daquele lugar em relação ao resto do mundo. Dentre os poucos que se aventuravam de Hamato para fora ou do mundo para Hamato, menor ainda era o número dos que regressavam à origem para transmitir suas experiências, e já era assim por várias gerações.

Se algum destes houvesse retornado, observariam que a maior diferença de Hamato para o resto do mundo era o constante sentimento de medo que pairava no ar. Os nativos, que não conheciam a vida de outra maneira, não notavam, mas passava-se cada minuto com medo da morte. Em Hamato não havia ordem, polícia ou segurança. Cada um cuidava de si e do próximo como podia - e se não podia, morriam. Crimes cometidos não eram punidos, senão pela própria vítima, ou alguém em seu favor. Dessa forma, apenas os mais fortes, ou aqueles cujas amizades eram fortes, podiam prosperar.

Explendor não queria que Circa passasse pela mesma sensação de estar sozinha e perdida num lugar como esses, então arrumou coragem onde não havia e pôs-se a andar pelas ruas para conhecer a cidade de Temarlo e poder apresentá-la a sua amiga, que chegaria em algumas semanas.

Também havia lá um templo, mais iluminado e aberto que aquele em que passara sua infância. Havia um pequeno lago ao sul deste templo e, mais a frente, algumas lojas onde podia se encontrar todo tipo de coisa. Animais (vivos ou mortos), poções, cordas, roupas, utensílios de todo tipo, armas, objetos de decoração e muito mais. O porto onde chegara na noite anterior ficava no sudeste da cidade, embora a cidade ficasse no extremo noroeste da ilha. Havia uma pequena entradinha de água que se afunilava e impedia que grandes navios coubessem ali. A oeste da cidade ficavam algumas fazendas e o mar. Para lá das águas ficava Gártore, agora tão distante que não podia mais ser vista. Visitou também a parte norte, cercada por altos portões e muitos guardas, pois era a região onde se encontrava a Regente da cidade. Na saída leste que era a principal entrada e saída de quem viajava pela ilha de Hamato, ficavam várias residências, alguns armazéns e o cemitério. Este era triste e muito populoso, mas era bem cuidado e bastante florido. Foi o único local da cidade que Explendor não esbarrava em alguém a cada passo e a correria parecia não chegar até ali. Decidiu parar um pouco e pescar no rio que ficava ao sul do cemitério. Ali, deitada na relva, refletia como o mês seria longo até a chegada de sua única companheira na vida. Mesmo acostumada a uma vida de pouco luxo, dormir sentada a uma mesa de bar na noite anterior produzira algumas dores nas costas. Juntando a isso o barulho das calmas águas que passavam em direção ao mar diante dela, o resultado era um cenário perfeito para uma tarde de sono. Sonhou com o olhar penetrante de Vick a observá-la, seu sorriso misterioso e aquela faca cheia de sangue.

Ela acabara de acordar e o sol já se punha. Sentia-se ansiosa por, mais uma vez, não ter um lugar para repousar. A mochila era pesada e o vento indicava que a noite seria mais fria que a anterior. Embora parecesse alguma forma de retrocesso, nenhuma outra escolha passara por sua mente senão retornar ao bar, único lugar onde encontrara alguma forma de segurança.

Quando retornou ao bar, reconheceu o homem que a servia na noite anterior. Naquele dia, entretanto, não estava trabalhando, e comia com as duas mãos um pedaço de frango e se sentava à mesma mesa que fora ocupada por si, na noite anterior. Era um sujeito gordo e alto, de um bigode espesso que trazia a sua mente recordações do seu velho amigo Tom, o comerciante de carnes em Gártore. Destemida o bastante para entrar em qualquer caverna na antiga ilha e encarar qualquer animal que ali estivesse, Explendor não tinha a mesma naturalidade com seres humanos. A simples ideia de se convidar a sentar com aquele homem lhe causava calafrios. Reuniu, entretanto, toda a coragem que precisava e se apresentou, perguntando se podia se juntar a ele.

O sujeito, que aparentava já algo de meio século vivido, ficou feliz em vê-la. Convidou-a para sentar e gritou ao garçom em serviço para trazer algo para ela o mesmo que ele estava a jantar. Aceitou o frango de bom grado mas recusou a cerveja, pois nunca bebera antes e não queria experimentar os efeitos na frente de um estranho.

Ele a inquiriu o motivo da visita a Temarlo, e daí desenvolveram uma conversa que, apesar de superficial, era bastante amistosa e agradável. Explendor tinha mais facilidade com as pessoas mais velhas. Como de costume em suas “conversações”, escutava muito e falava pouco.

Para sua alegria ele a instruiu que o bar, além de oferecer bebidas e comida, era também um albergue, e oferecia módicos aposentos para viajantes! Vivia cheio, mas com a ajuda dele havia de encontrar um quartinho que a coubesse. - Pequena assim não deve precisar de muito espaço. Observou ele, enquanto gargalhava, mastigava e bebia sua cerveja, tudo ao mesmo tempo. Como ela queria ter descoberto isso ontem! Refletiu rapidamente como sua timidez a prejudicara mais uma vez.
 
Última edição:

Valinor 2023

Total arrecadado
R$2.434,79
Termina em:
Back
Topo