"O Hobbit" virado do avesso — ou quase

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Escrito por Reinaldo José Lopes

Que o gentil leitor da Valinor me perdoe se pareço colocar o carro na frente dos bois com a primeira parte desta série sobre a história do clássico “O Hobbit”. No entanto, convém que começos sejam acompanhados de uma dose considerável de impacto, o que me levou a tomar a decisão de principiar com informações que são do conhecimento de poucos leitores de Tolkien, mesmo os mais fiéis. Estou falando da revisão radical do livro, que o Professor iniciou por volta de 1960 e acabou abandonando tempos depois.

Essa fase inédita dos textos tolkienianos foi publicada na íntegra por John D. Rateliff no segundo volume de sua obra “The History of The Hobbit”. Na verdade, não estamos falando de manuscritos, mas de textos cuidadosamente datilografados que deveriam substituir, apenas em parte, pedaços dos primeiros capítulos da aventura de Bilbo, começando com o encontro entre o hobbit e Gandalf no Condado e indo até a chegada de Bilbo e seus companheiros anões a Valfenda.

O mais surpreendente nesses textos é o processo de “senhordosaneisização” (pusta palavra horrível, eu sei, mas é a melhor descrição) de boa parte da linguagem e do clima original de “O Hobbit”. Basicamente o que acontece é que Tolkien ficou insatisfeito com duas coisas do primeiro livro após ter conseguido publicar “O Senhor dos Anéis”. Primeiro, ele achava que era preciso integrar melhor o mundo de “O Hobbit” com a geografia, a história etc. apresentada com mais detalhes na Saga do Anel. Em segundo lugar, o Professor achava que o estilo narrativo e literário geral da aventura de Bilbo estava leve demais, e às vezes meio bobo, em comparação com o que veio depois.

Por tudo isso, ler a versão de 1960 de “O Hobbit” — que acabou nunca sendo incorporada às edições canônicas do livro — é como ler um prelúdio do SdA que mais parece uma antecipação do capítulo “A Sombra do Passado”, de “A Sociedade do Anel”. Tolkien resolveu dar a essa versão um clima sombrio e paranoico que não estaria fora de lugar nos apêndices do SdA que explicam como Sauron voltou ao poder na Terra-média, por exemplo.

Bilbo, o mané

Falando assim, parece um conceito muito legal, e de fato é — mas existem algumas desvantagens também. A primeira delas é que Bilbo acabou sendo retratado como um personagem muito mais mané e sem noção do que seu amadurecimento, em especial o que se vê no SdA, acaba mostrando. Logo no primeiro capítulo, Tolkien diz que Bilbo “se viu envolvido em grandes eventos, que ele nunca entendeu; e se tornou enormemente importante, embora nunca se desse conta disso”. Considerando que Bilbo se tornou praticamente um mestre das tradições élficas no fim da vida, a afirmação é no mínimo injusta. Os anões também tratam Bilbo de forma mais impaciente e condescendente.

Outra perda que talvez fosse lamentada pelos fãs mais hardcore de “O Hobbit” é o fim das conversas e comentários do narrador com os leitores — frases do tipo “como você sabe” e por aí vai, que davam (aliás, ainda dão) todo um ar brincalhão e de cumplicidade à narrativa como a conhecemos. Décadas depois de escrever o livro, Tolkien passou a achar que essa velha técnica dos livros infantis equivalia a desprezar o leitor e até chamá-lo de burro. Várias piadas — como a que diz que os dragões têm uma boa noção do “valor de mercado” de seu tesouro — foram retiradas do texto por causa disso.

Várias passagens foram reescritas e reformuladas do ponto de vista estilístico, seguindo a linguagem mais solene e sombria do SdA. Um exemplo é quando Gandalf fala sobre sua passagem pelas masmorras do Necromante:

“Não me pergunte! Não à noite”, disse Gandalf. “Não falarei sobre isso. Mas era minha tarefa vasculhar as sombras, e uma demanda escura e perigosa foi. Mesmo eu, Gandalf, mal escapei. Tentei salvar seu pai [o pai de Thorin, no caso], embora ele fosse apenas um anão sem nome para mim, sozinho, em desgraça. Era tarde demais.”

Guardiões, Bri, pontes e cavalos

No texto revisado, Tolkien também tentou tomar providências para fazer com que o mundo de “O Hobbit” não tivesse discrepâncias com o do SdA. Na versão original da história, por exemplo, o nome “Condado” nem chegava a ser mencionado, mas aparece no texto de 1960.

Em sua viagem, Bilbo e os anões passam por Bri (passando uma noite no Pônei Saltitante) e pela ponte sobre o rio Mitheithel (Fontegris) na qual, décadas depois, Aragorn acharia a pedra élfica deixada por Glorfindel. Gandalf cavalga um corcel élfico chamado Rohald, emprestado da casa de Elrond. A ponte aliás, está quebrada por causa dos trolls que o grupo encontra mais tarde. Quando os trolls finalmente viram pedra, Gandalf conta aos anões que os Guardiões estavam caçando outros monstros na região.

Ao mesmo tempo, é curioso que Tolkien tenha deixado algumas coisas passarem nessa revisão. Os nomes dos trolls, por exemplo — William, Bert e Bill, que até serviriam para fazendeiros do Condado, mas não para monstrões canibais. E também a cena engraçada da carteira falante, já que não há nada parecido no SdA.

Segundo John Rateliff, Tolkien teria emprestado esse material revisado para um amigo (não sabemos exatamente quem), para ter uma avaliação independente. A resposta parece ter sido algo do tipo “está muito legal, mas não tem nada a ver com O Hobbit”, porque Tolkien acabou desistindo dessa revisão radical. É até difícil imaginar que livro teríamos nas mãos hoje se o projeto tivesse continuado até a última página.

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