Recriando a Terra Média no Brasil

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Escrito por guilherme de franco

Estudando um pouco de cinema aprendi que um bom filme por mais barato que seja começa com um roteiro bem estruturado. Mas como fazê-lo? Realmente não é uma tarefa simples, pois é no roteiro que está a essência de um filme, seu cerne. Existe um tipo de formatação específica bem como uma necessidade de amarrar os núcleos da trama de forma que funcione na tela. Acho que foi na criação do roteiro do Hobbit que eu passei a admirar mais e mais os roteiristas de “O Senhor dos Anéis”. Adaptar um livro não é fácil. Sabe aquela parte do livro que a gente lê, relê e se empolga pensando como seria maravilhoso ver aquilo no cinema?

Mas muitas vezes isso não funciona. O livro e, sobretudo a narrativa que criamos do livro em nossas mentes, nosso filme próprio, interno, tem um tempo diferente do cinema. Ao ler, estamos sendo ativos no processo de criação e de fato tudo que adicionamos nesta nossa visão tem muito a ver com o que somos, vivenciamos e acreditamos. Nosso roteiro básico é o livro, mas nossa adaptação para que aquilo nos satisfaça minimamente é mais rica do que qualquer filme que já existiu. O que obviamente não impede que às vezes vejamos um filme baseado em uma obra ficcional que nos surpreenda. Acontece, pois o trabalho do roteirista é pensar justamente como transformar aquele livro querido e aquelas partes que todo mundo ama, de formas variadas, em algo único que capte a essência do livro e possa tentar agradar os fãs e os não-fãs tanto em estética quanto em conteúdo. É uma tarefa árdua e a responsabilidade é enorme.

E como fazer isso com o Hobbit? Digamos que aquele primeiro roteiro que criei, o tal roteiro megalomaníaco que eu sempre cito, tinha erros gravíssimos. Parecia mais uma peça teatral longa e chata pois eu simplesmente tinha pena de cortar as partes para que funcionassem no vídeo. Pode parecer meio bobo mas vai tentar cortar um filho querido ao meio pra você ver. É aterrador, frustrante e muitas vezes desejei ser russo pra poder fazer filmes de ultra longa duração como aqueles filmes antigos de 7, 8 horas. Mas acho que só eu assistiria.

Enfim, com dor no coração cortei o roteiro pela metade retirando aquelas cenas “lindas mas desnecessárias” que todos amamos nos livros. Depois resolvi procurar uma formatação apropriada para aquele monte de falas em inglês, adicionei a descrição de cada cena e foi quando me bateu uma angústia. Onde eu iria filmar tudo aquilo, e como?

A primeira questão eu resolvi de forma mais simples de início e fui apurando a idéia com o tempo. Como sabemos, moramos em um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Sim, é verdade mas sabemos que não é apenas isso. Embora seja essa a visão que prevaleça sobre nós no exterior sobretudo pelo cinema nacional que produz e exporta filmes que quase sempre remetem ao sertão nordestino, ao Rio de Janeiro ou ao processo de favelização das grandes metrópoles. E neste momento eu tive um “insight” daqueles que só acontecem no ônibus voltando do trabalho ou da escola, um sentimento poderoso que acabei tomando por missão: mudar esse padrão e tentar fazer algo completamente diferente. Afinal, se um pequeno hobbit do Condado conseguiu destruir o Um Anel e o Senhor do Escuro, porque um brasileiro da periferia do mundo não conseguiria filmar uma obra de Tolkien em seu país e mandá-lo para o Peter Jackson? Isso ninguém esperaria. Nós que somos fãs da trilogia, dos livros e dos filmes, sabemos que às vezes é justamente o que se pensou até agora impossível, o mais arriscado, o caminho que ninguém mais trilhou por não acreditar, é justamente o que dá certo. Resolvi arriscar, apostar tudo e empolgado comecei a procurar as locações.

Viajei bastante, procurei em sites até perceber que o Condado sempre esteve perto de mim, na zona rural do Vale do Paraíba. O aspecto rural e o relevo de mares de morros fazem com que o lugar seja digno da trilogia do Peter Jackson.

Para a Floresta das trevas escolhi o Bosque da Física na USP em São Paulo. Um lugar tranqüilo e com muitas, mas muitas aranhas reais. E das grandes. Sempre pensei na Floresta das Trevas como um lugar sombrio, mas mais parecido com uma floresta tropical do que com qualquer outro tipo de floresta. Pelos insetos, pelas aranhas, pelo calor. A mata é muito fechada, tão fechada que de dia parece noite e de noite não se enxerga um palmo na frente do nariz. Então resolvi aproveitar um cenário bem brasileiro, adicionar algumas teias de aranha, um filtro escuro e pronto teríamos nossa Floresta das trevas.

Erebor por outro lado precisava ser um local desolado, sem muito verde com mais pedras de preferência pontiagudas pois essa característica era essencial na minha visão da Desolação do Dragão que cerca a Montanha. Mas onde achar uma montanha dessa proporção em terras brasileiras? Foi quando me lembrei de Itatiaia, sobretudo o Pico das Agulhas Negras que com alguns efeitos acabou se transformando no cenário ideal. Um filtro amarelo quase alaranjado e bem pesado seria usado nestas cenas para demonstrar o cansaço, a fadiga e que aquele não era um lugar comum, era uma terra devastada, triste. Por sorte, ou por azar, o Parque das Agulhas Negras havia passado por um incêndio há algum tempo e a mata não havia se recuperado. O que foi perfeito para a Desolação do Dragão. Para o restante do filme resolvi filmar em brotas e em Campos do Jordão.

Fiz uma lista de possíveis atores, projetei o figurino, deixei meu cabelo crescer até ficar de um tamanho hobbitesco, sempre me baseando mais nos filmes e temperando alguma coisa própria de como eu enxergava o livro. Comecei a trabalhar como professor e a separar grande parte do meu salário para comprar tecidos. Foram inúmeras visitas a 25 de março, a costureiras diferentes até que tudo estivesse nos conformes. E nas madrugadas lá estava eu numa sala de computadores da USP mexendo e remexendo no roteiro.

Mas eu só estava me esquecendo de uma coisa. E a câmera? Eu não tinha nem uma câmera fotográfica pra fazer vídeos de baixa qualidade. Um amigo meu, aquele que me levou pra ver o primeiro filme e me ajudou no começo, cujo apelido pra nós é “Batata” me emprestou uma câmera de 3.1 megapixels que era o top de linha da época. Eu me decepcionei muito com o resultado. Tanto trabalho, tanta dedicação pra nada.

Foi quando eu percebi pela primeira vez que talvez os sonhos realmente cheguem ao fim. Que um hobbit só consegue destruir um Mal Supremo em livros e filmes. Que provavelmente o Peter Jackson iria rir do meu vídeo amador e descartá-lo de vez. Eu havia perdido todas as esperanças, empacotei as roupas, voltei para o mundo real e a rotina me consumiu. Eu havia desistido.

CONTINUA (mais uma vez)…

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