Cristianismo no Mundo do Senhor dos Anéis

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Escrito por Ives Gandra
O primeiro artigo do colunista Valinor Ives Gandra da Silva Martins Filho, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho  e autor do livro “O Mundo do Senhor dos Anéis” foi baseado em roteiro de Palestra proferida na XVIII Semana de Filosofia e Teologia – “Filosofia, Cultura e Fé”, realizada no Centro Cultural Cândido Mendes, no Rio de Janeiro (Brasil) em 5 de outubro de 2007 e publicado na Communio (edição de set-dez/2007), a revista de teologia fundada pelo Cardeal Ratzinger hoje Papa Bento XVI, sobre a perspectiva cristã na obra de Tolkien.

CRISTIANISMO NO MUNDO DO SENHOR DOS ANÉIS
A Perspectiva Cristã na Obra de J. R. R. Tolkien

I) Introdução – Paradoxos

Quando um cristão entra em contato com as obras de J. R. R. Tolkien, principalmente após ser transposta para as telas do cinema a saga dos “Anéis do Poder”, a pergunta que vem naturalmente à mente é: Como uma obra povoada de elfos, anões, hobbits, orcs e outros seres fantásticos pode ter um fundo cristão e trazer lições no campo ético?

Precisamente em ambientes cristãos, um certo preconceito se levanta em relação ao “Senhor dos Anéis”, vendo nele apenas mais um livro de fantasia e, diante do alerta para o fato de que o autor era católico convicto, vertendo no livro seus princípios morais, outra pergunta surge: Não há o perigo de que as pessoas que leiam uma obra de caráter tão fantástico, principalmente jovens, fiquem no episódico das estórias e personagens, sem captar a essência de valores humanos e cristãos subjacente à obra?

Convidado que fui a participar de um “Café Literário”, na última “Feira do Livro” realizada em Brasília, para debater com outro especialista sobre a obra de Tolkien, fiquei realmente impressionado ao ver como o colega de mesa sustentava uma visão exclusivamente esotérica do “Senhor dos Anéis”, de cunho maniqueísta. Percebi como o perigo é real, mas não tão alarmante a ponto de desaconselhar a recomendação da trilogia tolkiana como literatura sadia e edificante para nossa juventude. Pelo contrário, essas são exceções isoladas que confirmam a regra.

Na realidade, a esperança que nutro, com a popularização da saga tolkiana, propiciada pelos filmes de Peter Jackson, é que aqueles que tenham assistido aos filmes tenham despertado o interesse pelos livros e descubram a beleza literária e moral da obra de Tolkien. Os filmes dão uma visão muito parcial de “O Senhor dos Anéis”. Sendo impossível reproduzir nas telas a integralidade de uma obra literária, mormente no caso da complexa e extensa saga dos anéis do Poder, o roteiro do filme, como é natural, fez-se com a compactação de passagens e a supressão de personagens (principalmente o poético e enigmático Tom Bombadil), que acabaram por imprimir a todo o filme uma feição de suspense e tensão que não retratam perfeitamente o ritmo alternado de aventura épica e de poesia bucólica, característico da obra de Tolkien, que os misturou em justas proporções. No entanto, até para o mais exigente leitor, o filme surpreendeu por conseguir plasmar visualmente o que a imaginação já figurava na mente com a leitura da obra. São, pois, um instrumento contributivo para imortalizar a obra de J. R. R. Tolkien.

II) Quem foi J. R. R. Tolkien?

Para compreender a obra, é essencial conhecer seu autor. Pois bem, no caso de John Ronald Reuel Tolkien, os dois traços característicos de sua personalidade são: a) o profissional – era um filólogo, professor e estudioso de línguas na Universidade de Oxford; b) o espiritual – foi um católico de fé profunda e vivenciada.

O gosto de Tolkien pela filologia (especialmente pela origem das palavras) e interesse pelas línguas antigas desembocaram na criação de novas línguas, atividade que constituía seu passatempo (daí surgem o quenya e o sindarin, inspirados respectivamente no finlandês e no galês, a par da influência do islandês, gaélico e anglo-saxão para o que seria a língua dos elfos, de seus contos).

Para Tolkien, as “histórias” que inventou foram feitas para proporcionar um mundo às línguas que criara. Dizia que primeiro pensava num nome e depois vinha a “história”. Daí que tenha, após a difusão de seus livros em outros idiomas, desenvolvido um guia dos nomes para auxiliar os tradutores (quando se fizeram as primeiras traduções para o sueco e holandês). Quando lhe perguntaram certa vez sobre o que era “O Senhor dos Anéis”, respondeu simplesmente: um ensaio de estética lingüística.

Em 1917, em convalescença da febre das trincheiras que adquiriu durante a Grande Guerra, começaria a escrever o que seria mais tarde “O Silmarillion”: sua grande obra mitológica. O ideal que havia concebido era o de criar uma mitologia inglesa, ao estilo da mitologia nórdica, que fosse pautada por valores morais, uma vez que a mitologia grega e romana colocava os deuses como personagens imorais, com ações pérfidas ao lado de grandes feitos. Assim, a criação de seu mundo mitológico, aproveitando as matrizes históricas inglesas, será um amálgama da mitologia nórdica com os valores cristãos, concebendo os “deuses antigos” como anjos, bons ou maus, conforme sua conduta, criados todos por um Deus único, origem de todo o Universo.

A fé católica, Tolkien a recebeu de sua mãe Mabel, que, após a morte do marido, havia se convertido ao catolicismo. A conversão representou para ela e seus filhos o corte da ajuda econômica que recebia de seus parentes, protestantes que receberam muito mal o passo dado. Porém Mabel enfrentou com fortaleza tanto o ostracismo familiar quanto as dificuldades econômicas que sua conversão provocaram, deixando um sólido exemplo para os filhos. Em seu leito de morte, quando Tolkien tinha apenas 12 anos, confiou seus filhos ao Pe. Francis Xavier Morgan, pároco de S. Dunstan, que passou a ser o tutor de Ronald.

No pensionato em que passou a viver, Tolkien conheceu outra pensionista órfã, Edith Bratt, com quem fará amizade e por quem se apaixonará (era 3 anos mais velha que ele). Como o namoro começou a comprometer seus estudos e a preparação dos exames para ingresso em Oxford, o Pe. Morgan proibiu Tolkien de ver ou escrever a Edith até atingir a maioridade (havia trasladado a garota para outra cidade). Tolkien, com seu espírito romântico, não se esquece dela durante os 3 anos de separação. Assim, à meia-noite do dia em que completaria os 21 anos, escreve uma carta a Edith para reatar os laços rompidos (1913). Ao receber a resposta, fica sabendo que ela, ao não ter notícias dele por 3 anos, pensou que a tivesse esquecido e, desse modo, já estava comprometida com outro. Tolkien toma o primeiro trem para encontrá-la e, depois de conversarem, ela decide romper com o outro rapaz e reatar com Ronald (esse amor de Tolkien por sua futura esposa ficará plasmado na legendária “Balada de Beren e Lúthien”, que integrará seu livro “O Silmarillion”, tendo os nomes dos dois personagens sido insculpidos nos túmulos do casal, como seus cognomes).

No Exeter College da Universidade de Oxford descuida, durante os primeiros anos do curso, da prática religiosa, retomando-a com novo fervor quando reencontra Edith e esta se faz católica (1914). O amor dos dois frutificará em 4 filhos, dos quais um será sacerdote. As tertúlias familiares, onde Tolkien contava suas estórias para os filhos, arraigará nestes a mesma fé herdada da avó. E os valores cristãos serão a fonte oculta, inspiradora dos ideais da saga tolkiana.

III) Traços Cristãos na Obra de Tolkien

Nas três principais obras de Tolkien – “O Silmarillion”, “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis” – a cosmovisão cristã, ainda que velada, pode ser percebida quer de forma difusa em toda a saga, quer de forma pontual em muitas passagens, com o que podemos traçar muitos paralelismos entre o Cristianismo e o Mundo do Senhor dos Anéis:

1) Perspectiva Creacionista

O mundo é fruto do ato criador de um Deus Único (“Eru”, que significa “O Único” ou “Ilúvatar”, que significa “Pai de Todos”), contrapondo-se ao politeísmo das mitologias antigas. Assim, àquilo que os antigos tinham por deuses (Zeus e os demais deuses gregos, Júpiter e demais deuses romanos, Odin e o restante dos deuses nórdicos), Tolkien dá a natureza de anjos (os “Valar” e os “Maiar”), ou seja, seres puramente espirituais, que também seriam criaturas (existindo uma hierarquia de espécies dentro dessa mesma natureza: “Sauron” é uma “Maia” que servirá a “Morgoth”, que é um “Vala”).

Fala-se de uma queda de algumas dessas “criaturas angélicas”, quando todas foram submetidas a uma “prova”, concebida alegoricamente por Tolkien como a composição de uma sinfonia em conjunto a partir de um tema dado por “Eru”, em que cada um dos “Valar” se conhecia na medida em que compunha a sua música, sendo que um deles, “Melkor” ou “Morgoth” (imagem do demônio ou “Lúcifer”), inchado de orgulho pelo próprio esplendor, decide criar os seus próprios temas e dá o tom dissonante na sinfonia, fazendo com que muitos dos “Vala” acabem se desviando do tema originalmente proposto.

2) Perspectiva Ética

A luta do bem e do mal que pontua “O Senhor dos Anéis” e as obras que a precedem no tempo “estórico” não tem contornos maniqueístas, mas, pelo contrário tem um fundo ético nitidamente cristão. Há apenas um princípio do bem: o Ser por excelência, o Deus do Bem. O mal moral é fruto da liberdade: desde os seres inteligentes criados mais perfeitos (os “Vala”), até os humildes (os “hobbits”), o perfil moral é traçado pelas opções pessoais pelo bem ou pelo mal. Assim, um sábio como Saruman, o Branco, pela sua ganância, acaba se tornando, como ele mesmo diria, “Saruman, o das muitas cores”, pérfido e odioso, solitário e vingativo.

Nesse sentido, a perspectiva ética se mostra no ressaltar as grandezas e misérias da alma, conforme as virtudes e os vícios dos personagens, bem contrastados, mas em que ninguém está a salvo de se corromper, como também ninguém está irremediavelmente perdido.

Assim, a inveja é o motor maior de “Morgoth”, que só deseja destruir o que de bom realizam os demais “Valar” e criaturas de “Eru”, para construir o seu próprio mundo de dominação. O orgulho e a soberba dessa criatura “angélica” originalmente mais poderosa, acaba sendo vencido pela humildade das menores criaturas desse mundo imaginário (os “hobbits”), cuja vida simples e marcada pela firmeza de caráter, será o elemento explicativo da vitória do Bem contra o Mal na “Guerra do Anel”.

Emociona ver Frodo (o “hobbit” encarregado de destruir o anel do Poder), ao pensar na dureza da missão que lhe havia sido confiada, quando sozinho com Sam tem de enfrentar a última etapa, concluir que “tinha de fazer o que tinha de ser feito, e que, se Faramir, Aragorn, Elrond, Galadriel, Gandalf ou nenhuma outra pessoa jamais ficassem sabendo de seu feito, isso não teria importância”. É o cumprimento do dever não para ser visto ou reconhecido pelos outros, mas por sentido de missão da vida).

A avareza é a marca característica da posse do “Anel do Poder”, que  dá poderes extraordinários ao que o utiliza, mas vai corrompendo interiormente aquele que o possui, até torná-lo escravo seu, como ocorreu com “Gollum”, que é o retrato da destruição física e psicológica que o apegamento aos bens materiais acarreta a qualquer criatura. Essa corrupção só se vence com a virtude do desprendimento, como ocorre com “Bilbo”, “Frodo” e “Sam”, que são os hobbits” que portaram temporariamente o “Um Anel” e que venceram a tentação de serem seus donos definitivos.

A misericórdia e o perdão, não obstante tudo que se possa ter sofrido de mal, se vê também estampado nas palavras de Frodo, impedindo que Sam mate Saruman decaído (e impenitente, sem estar curado interiormente do seu mal): “Não, Sam! Não o mate, nem mesmo agora. Pois ele não me feriu. E, seja como for, não quero que seja abatido nesse ânimo maligno. Um dia ele foi grande, de uma nobre estirpe, contra a qual não deveríamos ousar levantar nossas mãos. Entrou em decadência, e sua cura está fora de nosso alcance, mas eu ainda o pouparia, na esperança de que algum dia ela a encontre”.

Essa perspectiva ética chega até o ideal de perfeição no trabalho, estampado na explicação que os elfos dão para a beleza das vestimentas que confeccionavam: “Colocamos em tudo o que fazemos o pensamento de tudo o que amamos”. É pura teologia do trabalho, tão bem desenvolvida por S. Josemaria Escrivá, que falava na santificação do trabalho através da busca da perfeição em tudo o que se faz, como decorrência de se trabalhar na presença de Deus, ou seja, de ter no pensamento o amor a Deus e o serviço aos outros que se presta com todo trabalho.

3) Símbolos Cristãos Velados

Permeia toda a obra de Tolkien uma relação invisível entre as ações nobres ou vis praticadas pelos personagens, que tornam o mundo, como um todo, melhor ou pior, conforme a atitude interior dos personagens (as vitórias ou derrotas das várias forças na “Guerra do Anel” é “sentida” interiormente pelos protagonistas das várias ações em campos distintos), o que recorda, de longe, a doutrina da Comunhão dos Santos.

A invocação, pelos “hobbits”, do nome de uma Valië (“Elbereth Gilthoniel”, Senhora das Estrelas), faz tremer as forças do Mal e constitui elemento de sustentáculo para a missão que têm, como Nossa Senhora, pelo papel singular que desempenhou na “História da Salvação” é proteção constante na vida dos cristãos. No momento em que Frodo se encontra diante das portas de Mordor e sente, ao ver sair o “Senhor dos Espectros”, a tentação forte de usar o Anel (com o que seria descoberto), vence-a ao tocar no “Frasco de Galadriel”, o que lembraria o escapulário do Carmo, que muitos cristãos trazem no peito, por devoção a Nossa Senhora, que os ajuda a superar as tentações.

O alimento dado pelos elfos aos membros da Sociedade do Anel, para poderem enfrentar a dura missão que teriam pela frente, o “lembas” ou pão do caminho, pode ser visto, pelos efeitos benéficos que tinha, desproporcionais para um simples alimento, incutindo um vigor novo aos “hobbits”, restaurando substancialmente as forças e dando ânimo para a caminhada, como uma imagem, ainda que pálida, da Eucaristia (Corpo de Cristo em forma de pão), chamada nos cânticos litúrgicos cristãos de “panis angelurum, cibus viatorum” (pão dos anjos e alimento dos caminhantes), a qual, ao propiciar a comunhão com Cristo, restaura as forças da alma.

O Salão do Fogo, em Rivendell, onde Frodo encontra Bilbo meditando e compondo seus versos, é também uma imagem dos oratórios ou capelas cristãs. Gandalf ao mostrar-lhe o local, diz: “Este é o Salão do Fogo. Aqui poderá escutar muitas canções e histórias. Mas, a não ser nos dias importantes, o salão fica vazio e quieto, e aqui vêm as pessoas que desejam ter paz e refletir. O fogo fica sempre aceso, durante o ano”. A lareira sempre acesa lembra o sacrário. Os dias importantes seriam os domingos e festas, com o culto cristão relembrando as histórias do Antigo e Novo Testamento e cantando louvores ao Criador. Durante o resto do tempo, um local de oração e meditação.

Um último paralelismo, que é o do sacrifício redentor, como o de Cristo na Cruz, para a salvação dos homens (a ser revivido de alguma forma por cada cristão, como “alter christus”), é bem estampado no diálogo final entre Sam e Frodo: “Mas – disse Sam, com lágrimas brotando nos olhos – achei que o senhor também fosse aproveitar a vida no Condado, por muitos e muitos anos, depois de tudo o que fez”. E Frodo responde “– Foi o que também pensei, antes. Mas meu ferimento é profundo demais, Sam. Tentei salvar o Condado, e ele está salvo, mas não para mim. Muitas vezes é preciso que seja assim, Sam, quando alguma coisa está em perigo: alguém precisa desistir dela, perdê-la, para que outros possam tê-la”.

Esses são apenas alguns pontos de semelhança entre a saga tolkiana e a “História da Salvação”, não se podendo, no entanto, procurar um paralelismo mais abrangente, quando não foi o objetivo de Tolkien assumir todas as premissas fáticas do cristianismo, sob pena de estar fazendo teologia ao invés de uma despretenciosa obra literária. Mas não se pode deixar de perceber que justamente por ter assumido esses valores básicos, intrínsecos ao Cristianismo, é que chegou a produzir uma obra de valor perene e de atrativo universal.

IV) Conclusão – A Saúde Espiritual dos Contos de Fadas

Podem parecer paralelismos um pouco forçados os que traçamos entre a mitologia tolkiana e o universo cristão, no intento de salvar o valor ético e humanístico da obra de Tolkien como contributo para se forjar uma cultura cristã. A pergunta que se poderia fazer, nesse sentido, seria, pois: afinal de contas, o que a literatura fantástica, em suma, os contos de fadas, podem trazer como elemento de formação humana e cristã?

Em 1939, Tolkien publicou um ensaio intitulado “On Fairy Stories”, expondo as 3 funções que, a seu ver, os contos de fadas desempenhavam na vida humana:
a) terapia de restauração para alma em relação à atividade produtiva e laborativa absorvente;

b)
sã evasão dos problemas angustiantes do dia-a-dia, encontrando um mundo de sonhos que engloba as mais elevadas aspirações humanas; e

c)
consolo da alegria, que não se confunde com um gozo meramente evasivo da realidade, mas que constitui um eco da vida real (satisfação dos desejos humanos primordiais, de sabedoria, amor e beleza, como também de comunicação com todos os seres viventes).

O ensaio, como também o substrato de princípios e ideais que embasam toda a obra de ficção de Tolkien, consona perfeitamente com o capítulo “A Ética da Terra dos Elfos”, do livro “Ortodoxia”, de G. K. Chesterton, que mostra como os contos de fadas retratam, na sua lógica interna, um dos traços básicos do Cristianismo: o princípio da felicidade condicionada, ou seja, de que toda a alegria humana está condicionada à observância de umas regras morais mínimas, que, desprezadas, acabam por quebrar o encanto e a harmonia da vida.

Chesterton traça o paralelismo entre o pecado original (tudo é permitido ao homem no paraíso, à exceção do fruto da árvore da ciência do bem e do mal) e as condições colocadas às fabulosas façanhas dos personagens de contos de fadas (Gata Borralheira que deve voltar do baile à meia-noite; Bela Adormecida que não pode se  ferir numa roca; etc). Toda a disputa pelos “Silmarils” e pelos “Anéis do Poder”, que constitui o cerne da saga tolkiana, é o retrato da não aceitação, pela criatura, dos limites impostos pelo Criador, provocando a sua ruína (vide, por exemplo, a rebelia de Morgoth contra Illuvatar; a dos numenorianos contra a proibição de navegar para o Ocidente; etc), mas com a subseqüente vitória da humildade sobre o orgulho, com o restabelecimento da harmonia quebrada (Elendil escapando do naufrágio da ilha de Númenor; Frodo e Sam salvando o mundo civilizado, com o cumprimento da missão de destruir o Um Anel).

O sentido do dever nos personagens tolkianos e o respeito a um Código de Ética que não é estabelecido pelos personagens, mas lhes vem imposto pela sua própria natureza de seres criados,  é uma constante em todos os seus contos e livros, explicando, em muito, o caráter atrativo das lutas e dramas de todas as suas estórias.

A própria explicação do fato dos homens estarem sujeitos à morte (enquanto isso não acontece naturalmente aos elfos) não pode ser outra que a do pecado original. Diz a Escritura que “Javé Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden, para que o cultivasse e guardasse. E Javé Deus ordenou ao homem: Poderás comer de todas as árvores do jardim, mas não comerás da árvore da ciência do bem e do mal, porque no dia em que dela comeres, com certeza morrerás” (Gen 2, 15-17).

A descrição bíblica da queda original mostra nossos primeiros pais sendo tentados pela serpente (materialização do Maligno) e sucumbindo à insinuação de se tornarem como deuses, com a conseqüente expulsão do paraíso e promessa de um Redentor (cfr. Gen. 3, 1-19).

S. Agostinho, em sua “A Cidade de Deus”, que pode ser considerada a primeira obra de Filosofia da História, fala de duas histórias paralelas se desenvolvendo: uma visível (a construção da “Cidade Terrena”), com a sucessão dos impérios e do progresso tecnológico, e outra invisível (a construção da “Cidade Celeste”), com a santificação das almas, pedras vivas que comporiam, com o tempo, o “Reino dos Céus”.

A importância e o papel das pessoas no desenvolvimento da história humana somente poderia ser aquilatado no final dos tempos, sendo que aqueles que aparentemente não fizeram nada de relevante podem ter sido os mais importantes (como, na saga do Anel, os hobbits). Ademais, S. Agostinho coloca Jesus Cristo no centro da história: Deus que assume a natureza humana “na plenitude dos tempos”, para redimir a humanidade do pecado, através de sua Paixão. Os anos e os séculos são contados antes e depois de Cristo.

Casando a cronologia tolkieniana com o calendário moderno, poderíamos ter a Era dos Homens se impondo a partir da 4a Era da Terra Média (quando os elfos se retiram para a Terra Abençoada de Aman), sendo que, para a sua redenção, Deus (Eru ou Ilúvatar de Tolkien) se faz homem, para libertá-los da morte.

Concluindo: podemos dizer que talvez Tolkien não quisesse deixar tão explícita sua inspiração cristã em suas obras para evitar que o preconceito anti-cristão impedisse a captação de valores morais que são intrínsecos à própria natureza humana. E esses valores humanos e cristãos poderiam muito bem ser veiculados através do mais tradicional meio, que são os contos de fadas, estórias que, com o passar dos séculos, somente vão enriquecendo o patrimônio cultural da Humanidade, apontando-lhe o norte para a saúde espiritual, pela poesia com que transmitem esses valores. E dessa sadia evasão precisamos um pouco todos nós, para recuperar as forças e os ideais no mundo do trabalho.

Do Rio para Brasília, 5-6 de outubro de 2007
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