Obituário de J. R. R. Tolkien

Escrito por Fábio Bettega

J. R. R. Tolkien morreu aos 81 anos; Escreveu “O Senhor dos Anéis”

3 de Setembro de 1973


Pelo “The New York Times”

Londres, 2 de Setembro – J. R. R. Tolkien, lingüista, acadêmico e autor
de “O Senhor dos Anéis”, morreu hoje em Bournemouth. Ele tinha 81 anos de idade. Deixou para trás três filhos e uma filha.

Criador de um Mundo

John Ronald Reuel Tolkien lançou um feitiço sobre dezenas de milhares de americanos nos anos 60 com sua trilogia de 500.000 palavras, “O Senhor dos Anéis”, em essência uma fantasia da guerra entre o bem e o mal fundamentais.

Criando o complexo mas consistente mundo da Terra-média, completo com mapas elaborados, Tolkien o povoou com hobbits, elfos, anões, homens, magos e Ents, e Orcs (goblins) e outros servos do Senhor do Escuro, Sauron. Em particular, ele descreveu as aventuras de um hobbit, Frodo, filho de Drogo, que tornou-se o Portador do Anel e a figura chave na destruição da Torre Escura. Como Gandalf, o mago, observou, havia mais nele do que se podia ver.

A história pode ser lida sob muitos níveis. Mas o autor, um acadêmico e lingüista, professor por 39 anos, negou enfaticamente que fosse uma alegoria. O Anel, descoberto pelo tio de Frodo, Bilbo Bolseiro, em um livro anterior, “O Hobbit”, tem o poder de tornar seus usuários invisíveis, mas ele é infinitamente maligno.

Os admiradores de Tolkien o compararam favoravelmente com Milton, Spenser e Tolstoy. Seu editor inglês, Sir Stanley Unwin, especulou que “O Senhor dos Anéis” provavelmente viveria mais além de seu tempo e de seu filho do que qualquer outro trabalho que ele havia impresso.

“Literatura Escapista”

Mas detratores, entre eles o crítico Edmund Wilson, citaram “O Senhor dos Anéis”, a mais famosa e mais séria fantasia de Tolkien, como um “livro infantil que de alguma forma fugiu do controle”. Um crítico do Observer de Londres o condenou em 1961 como “pura literatura escapista… enfadonho, mal escrito e excêntrico” e expressou o desejo de que o trabalho de Tolkien passasse logo ao “misericordioso esquecimento”.Foi tudo menos isso. Foi apenas quatro anos depois, impresso em brochura neste país pela Ballantine e Ace Books, que um quarto de milhão de cópias da trilogia foi vendida em 10 meses. No final dos anos 60, brotaram fãs-clubes por toda América, tal como a Sociedade Tolkien da América, e membros do culto – muitos deles estudantes – decoravam suas paredes com os mapas da Terra-média. A trilogia foi também publicada em capa dura pela Houghton Mifflin e foi um Livro-do-Mês da Seleção do Clube.O criador desse monumental e controverso trabalho (ou subcriador, como ele preferia chamar escritores de fantasia) foi uma autoridade em anglo-saxão, inglês médio e Chaucer. Ele era gentil, de olhos azuis, um homem de aparência meticulosa que preferia lã, fumava um cachimbo e gostava de fazer caminhadas e andar em uma bicicleta velha (embora ele a tenha substituído por um carro elegante com o sucesso de seus livros).De 1925 a 1959, ele foi professor em Oxford, e por fim Professor de Língua Inglesa e Literatura de Merton e um fellow da universidade Merton. Ele ficou um tanto estupefato pela aclamação que sua fantasia extracurricular recebeu – das interpretações intermináveis que variavelmente a chamaram de grande parábola Cristã, a última obra-prima literária da Idade Média e um jogo filológico.

Tolkien insistia, no entanto, que não ela não fora planejada como uma alegoria. “Eu não gosto de alegorias. Eu nunca gostei de Hans Christian Andersen porque eu sabia que ele estava sempre se insinuando a mim”, disse.

A trilogia foi escrita, ele lembrou, para ilustrar uma aula sua de 1938 na Universidade de Glasgow sobre contos de fadas. Ele admitiu que contos de fadas eram algo como uma fuga, mas não via por que não poderia ser uma fuga do mundo de fábricas, metralhadoras e bombas.

Era a alegria, disse, que era a marca do verdadeiro conto de fadas: “…Por mais selvagens que sejam os acontecimentos, por mais fantásticas ou terríveis que sejam as aventuras, pode dar para uma criança ou homem que a ouvir, quando o ‘clímax’ vem, uma tomada de fôlego, uma batida e aceleração do coração, próximo a (ou de fato acompanhado por) lágrimas, tão penetrante quanto aquele dado por qualquer forma de arte literária, e tendo uma qualidade peculiar”.

Sua própria fantasia, foi dito, tinha começado quando ele estava corrigindo provas um dia e acabou por rascunhar no topo de uma das mais maçantes “em um buraco no chão vivia um hobbit”. Então os hobbits começaram a tomar forma.

Eles eram, decidiu, “pessoas pequenas, menores que os barbudos anões. Hobbits não têm barbas. Há pouca ou nenhuma magia eles, exceto do tipo comum que os ajuda a desaparecer discreta e rapidamente quando gente grande e estúpida como você e eu aproxima de modo desajeitado, fazendo barulho como elefantes que eles podem ouvir a uma milha de distância. Eles tendem a ser gordos na barriga; vestem cores claras (principalmente verde e amarelo); não usam sapatos porque em seus pés crescem solas naturais como couro e pêlos espessos e castanhos; têm dedos morenos, longos e habilidosos, rostos amigáveis e dão gargalhadas profundas e deliciosas (especialmente depois do jantar, que eles têm duas vezes por dia, quando podem).”


Descobrindo a Inglaterra

Ele instalou esses inocentes reservados em uma terra chamada Condado, modelado  com base no campo inglês que ele havia descoberto quando era uma criança de 4 anos, chegando de sua terra natal na África do Sul, e enviou alguns deles em perigosas aventuras. A maioria deles, no entanto, ele concebeu como amigáveis e aplicados, mas ligeiramente tolos, o que ocasionou seu rabisco sobre aquele fortuito exame.

“Se você realmente quer saber no que a Terra-média é baseada, é no meu encanto e deleite pela terra como ela é, particularmente a natureza”, Tolkien disse uma vez. Sua trilogia é recheada com seus conhecimentos sobre botânica e geologia.

O autor nasceu em Blomfontein em 3 de Janeiro de 1892, filho de Arthur Reuel Tolkien, um gerente de banco, e Mabel Suffield Tolkien, que serviu como missionária em Zanzibar. Seus pais vieram de Birmingham, e quando o pai do garoto morreu, sua mãe levou ele e seu irmão para morar na região central da Inglaterra.

A Inglaterra parecia-lhe “uma árvore de Natal” depois da aridez da África, onde ele fora picado por uma tarântula e mordido por uma cobra, onde ele fora “seqüestrado” temporariamente por um empregado negro que quis exibi-lo em seu vilarejo. Foi bom, depois daquilo, estar em um lugar confortável onde as pessoas moravam “afastadas de todos os centros de distúrbio”.

Ao mesmo tempo, ele uma vez observou em um ensaio de contos de fadas, “Cobicei dragões com um profundo desejo. Claro, eu em meu corpo tímido não os quis para estarem na vizinhança, intrometendo-se em meu mundo relativamente seguro…”

Sua mãe foi sua primeira professora, e seu amor pela filologia, assim como seu anseio por aventuras, foram atribuídos à influência dela. Mas em 1904 ela morreu.Os Tolkiens eram convertidos ao Catolicismo, e ele e seu irmão tornaram-se os pupilos de um padre em Birmingham (Alguns críticos afirmaram que a desolação de Birmingham industrial foi a inspiração para a maligna terra do Inimigo, Mordor, de sua trilogia).

Serviu na 1ª Guerra Mundial

O jovem Tolkien cursou a Escola Secundária King Edward’s e seguiu para a Faculdade Exeter, Oxford, com bolsa de estudos. Ele recebeu seu diploma em 1915. Mas a 1ª Guerra Mundial começou, e, com 23 anos, ele começou a servir nos Fuzileiros de Lancashire. Um ano depois, ele casou com a senhorita Edith Bratt.

A guerra, foi dito por seus amigos, o afetou profundamente. O escritor C. S. Lewis insistiu que isso estava refletido em alguns dos mais sinistros aspectos de sua obra e no prazer de seus heróis pela camaradagem. O regimento de Tolkien sofreu duras perdas e, quando a guerra acabou, apenas um de seus amigos próximos ainda estava vivo.

Invalidado dos Fuzileiros, Tolkien decidiu no hospital que o estudo de línguas seria sua profissão. Ele retornou para Oxford para receber seu mestrado em 1919 e para trabalhar como assistente no Oxford Dictionary. Dois anos depois ele começou sua carreira de ensino na Universidade de Leeds.

Dentro de quatro anos, ele era professor, e publicou também um “Vocabulário do Inglês Médio” e uma edição (com E. V. Gordon) de “Sir Gawayne and the Green Knight”. Ele recebeu um chamado de Oxford, onde suas aulas de filologia logo deram a ele uma reputação extraordinária.

Seus alunos lembram dele por realizar esforços sem fim para interessá-los. Uma aluna recordou que havia algo de hobbit nele. Ele caminhava, ela disse, “como se tivesse pés peludos”  e possuía uma alegria atraente.

Enquanto isso, uma vez rabiscada aquela palavra “hobbit” em um exame, sua curiosidade sobre hobbits foi estimulada, e o livro com esse nome – o precursor do mais sério “O Senhor dos Anéis” – começou a crescer.

Ele foi estimulado pelos encontros semanais com seus amigos e colegas, inclusive o filósofo e romancista C. S. Lewis e seu irmão, W. H. Lewis, e o romancista místico Charles Williams. Os Inklings, como eles se chamavam, reuniam-se na Faculdade Magdalen ou em um pub para beber e compartilhar uns com os outros seus manuscritos.

C. S. Lewis pensava bem o suficiente de “O Hobbit”, que Tolkien começou a escrever em 1937 (e contou aos seus filhos), para sugerir que ele o submetesse à publicação para a George Aleen e Unwin, Ltd. A sugestão foi aceita, e a edição americana ganhou um prêmio Herald Tribune como melhor livro infantil.

O autor sempre insistiu, porém, que nem “O Hobbit” nem “O Senhor dos Anéis” foram destinados para crianças.

“Não é mesmo muito bom para crianças”, disse de “O Hobbit”, que ele mesmo ilustrou. “Escrevi uma parte dele em um estilo para crianças, mas isso é o que elas detestam. Se eu não tivesse feito isso, no entanto, as pessoas teriam pensado que eu era louco”.

“Se você é um homem consideravelmente jovem”, ele contou a um repórter de Londres, “e não quer ser zombado, você diz que está escrevendo para crianças”.

“O Senhor dos Anéis”, ele admitiu, começou como um exercício em “estética lingüística” e também como uma ilustração de sua teoria sobre contos de fadas. Então a própria história o prendeu.

Levou 14 anos para ser escrito

Em 1954, “A Sociedade do Anel”, o primeiro volume da trilogia, apareceu. “As Duas Torres” e “O Retorno do Rei” foram a segunda e a terceira partes. O trabalho, que tinha um apêndice de 104 páginas e levou 14 anos para ser escrito, é cheio de jogos verbais, alfabetos desconhecidos, nomes do nórdico, anglo-saxão e galês. Sua história invoca, entre outros, a lenda de “O Anel dos Nibelungos” e o antigo clássico escandinavo, o “Edda Poético”.

Enquanto isso, Tolkien também estava ocupado com escritas acadêmicas, que incluíam “Chaucer As a Philologist”, “Beowulf, the Monster and the Critics” e “The Ancrene Wisse”, um guia para as ermitãs medievais.

Após a aposentadoria, ele morou em Headington, no subúrbio de Oxford, “trabalhando pra diabo”, disse, estimulado a reiniciar sua escrita sobre um mito da Criação e Queda chamado “O Silmarillion”, que ele tinha começado antes mesmo de sua trilogia. Como ele disse em uma entrevista há poucos anos atrás, “Uma caneta está para mim como um bico está para uma galinha”.

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Tolkien em sua última fotografia sob sua árvore preferida - Jardim Botânico de Oxford.
Tolkien em sua última fotografia sob sua árvore preferida – Jardim Botânico de Oxford.
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Marcus Pedrosa

Saudações, Fábio,

Excelente artigo!

Também sou fã de Tolkien e membro do Valinor, até escrevi um livro sobre “O Hobbit”, cujas informações podem ser obtidas no link acima.
Tenho tentado estabelecer contato para saber seu poderia colaborar ao site também com artigos, e convidá-los a conhecer meu livro.
Ficaria imensamente grato por um retorno.
Atenciosamente,
Marcus.

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