Resenha de 'The Children of Húrin' que sairá no G1

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Escrito por Reinaldo José Lopes
Ainda não é dessa vez que eu consigo publicar minha avaliação para tolkienmaníacos de "Os Filhos de Húrin" aqui na Valinor. Enquanto isso, fiz uma versão dedicada ao público geral, que só conhece SdA, para o G1, onde trabalho. Deve sair no domingo, mas vocês já podem conferi-la aqui.
 

Devo dizer que o livro melhorou em muito a minha relação com o sem-noção do Túrin. É um dos melhores personagens de Tolkien ever. Bem, vamos à resenha!

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Só há um jeito de descrever "The Children of Húrin" (Os Filhos de Húrin),
novo livro de J.R.R. Tolkien, autor de "O Senhor dos Anéis": um soco no
estômago, daqueles dados com precisão cirúrgica. Os críticos literários mais
esnobes, que adoravam pegar no pé do autor (nascido em 1892 e morto em 1973) por
causa de supostos personagens de baixa complexidade, otimismo e finais felizes
vão ter de engolir em seco. "The Children of Húrin" traz uma visão sombria e
desesperada do mundo, um herói culpado de traição, assassinato e incesto e um
ritmo aventuresco capaz de capturar até o leitor mais desatento.

Os mais chatos podem discordar do uso do adjetivo "novo" para designar um
livro escrito por um autor morto há mais de 30 anos. A confusão é fácil de
explicar, já que Tolkien deixou uma massa gigantesca de escritos inéditos quando
morreu. A tarefa de lidar com esse vasto material não-publicado coube a seu
filho caçula e testamenteiro literário, Christopher. 

Ele passou as últimas décadas publicando volume após volume dessa obra antes
oculta, lutando contra dezenas de versões variantes da mesma história – Tolkien,
maniacamente perfeccionista, reescrevia inúmeras vezes seus textos. Foi graças à
edição de Christopher Tolkien que os fragmentos da saga de Húrin e seu filho,
Túrin Turambar, finalmente vão poder ser lidos como uma narrativa detalhada e
contínua, tal como o pai do editor havia sonhado. É por isso que a maior parte
do texto – pedaços espalhados ou resumos da trama – já tinha sido publicada em
outros livros do autor, como "O Silmarillion" e "Contos Inacabados" (ambos já
disponíveis no Brasil). 

"The Children of Húrin" é uma história do passado remoto da Terra-média
(região equivalente ao nosso Velho Mundo numa época remota, onde se passam as
sagas de Tolkien). Bota remoto nisso: a trama se passa cerca de 6.500 anos antes
de "O Senhor dos Anéis".

A Terra-média está debaixo da sombra da guerra e do genocídio, cortesia de
Morgoth, "o Inimigo Escuro" – ninguém menos que a versão tolkieniana do Demônio.
(Ele é o chefão de Sauron, seu equivalente em "O Senhor dos Anéis".) Só que, na
mitologia de Tolkien, Morgoth decide construir seu Inferno no mundo físico – uma
fortaleza conhecida como Angband, da qual ele comanda vastos exércitos que
ameaçam escravizar a Terra-média e seus habitantes. Mas os reinos dos imortais
elfos, junto com seus aliados, os guerreiros humanos das Três Casas dos Edain,
ainda ousam desafiar Morgoth e lutar pela sua liberdade.

Entre os humanos rebeldes está o nobre Húrin, Senhor de Dor-lómin. Mas Húrin
parte para uma batalha decisiva contra Morgoth, deixando seu filho pequeno e a
mulher grávida em casa. E aí a coisa desanda de vez: derrotado em batalha, Húrin
é levado à presença de Morgoth e, como se recusa a trair seus aliados élficos, é
aprisionado em tortura perpétua. Como se não bastasse, Morgoth amaldiçoa toda a
família do guerreiro.

A narrativa passa então a acompanhar as andanças do jovem Túrin, filho de
Húrin, e a multidão de desgraças que a combinação explosiva entre a
personalidade do menino e a maldição de Morgoth acaba trazendo. Levado para a
proteção do exílio, ele é adotado por um rei dos elfos e se transforma num
guerreiro praticamente invencível, mas a desgraça parece segui-lo feito as
abelhas rodeiam o mel. Onde quer que vá, Túrin troca de nome o tempo todo – um
sinal claro de suas tentativas desesperadas de fugir do próprio passado – e
ganha posições de comando e destaque, mas todos os seus planos de enfrentar
Morgoth e vingar sua família se convertem em mais desespero.

É claro que não ajuda o fato de que Túrin tem um caráter difícil, orgulhoso e
violento, dado a explosões quase assassinas e erros brutais de julgamento que o
levam a escolher justamente os amigos e a mulher errada, ou a se deixar levar
pelos planos que Morgoth traçou para ele. Túrin é uma figura que lembra um
bocado os heróis trágicos gregos, como Édipo, ou escandinavos, como Siegfried, e
a força literária da trama é justamente ver como livre-arbítrio, maldição e
destino se unem (para usar uma expressão da moda, "agem em sinergia") para
arrastar Túrin ao abismo. 

De quebra, a história provavelmente é o melhor exemplo de um dos temas mais
apreciados por Tolkien na literatura antiga que ele conhecia tão bem: a chamada
"teoria da coragem do Norte". Dito assim parece uma chatice sem tamanho, mas o
conceito é um bocado interessante.

A teoria da coragem é uma característica típica da mitologia escandinava, do
norte da Europa. Ao contrário do que se vê no cristianismo ou na mitologia
grega, no Norte o lado do bem, que reúne deuses e humanos contra as forças das
trevas, está destinado a perder de goleada do lado do mal quando o
Apocalipse (ou melhor, Ragnarok) chegar. Mas os heróis pronunciam um "dane-se"
fenomenal diante desse destino sombrio e continuam a lutar com todas as forças
mesmo assim. Mesmo a derrota completa não transforma o certo em errado, segundo
a teoria da coragem do Norte.

Esse é o espírito de Túrin. Eis o que ele diz ao comentar o fato de que seu
pai, ainda que amaldiçoado e prisioneiro, continua a resistir a Morgoth:

"O desafio de Húrin Thalion é um grande feito; e, embora Morgoth possa matar
aquele que o pratica, não pode fazer com que esse feito nunca tivesse existido.
Não está ele escrito na história de Arda [a Terra]?"

Qualquer um que tenha sentido o peito queimar com a vontade de fazer o que é
certo, pouco importando o custo ou as conseqüências, sabe do que ele está
falando.

 

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