O que Tolkien realmente fez com o Sampo

Escrito por Gabriel Oliva Brum
A maioria dos estudiosos de Tolkien tem muito a dizer sobre sua dívida com as literaturas anglo-saxã, nórdica e celta mas, surpreendentemente, poucos estudaram seu uso do Kalevala a fundo. Por Tolkien ter contado em grande parte com seu objeto mítico central, o Sampo, para sua concepção das Silmarils, uma análise mais detalhada [1] das mudanças em relação ao épico de Lönnrot revela muito sobre o método inventivo do mitólogo da Terra-média. Sugiro que Tolkien remodela os conflitos entre as províncias finlandesas pela soberania sócio-econômica proporcionada pelo Sampo na guerra mundial entre todas as raças da Terra-média pela estabilidade terrestre e moral oferecida pelas Silmarils. Seus métodos de retrabalhar o épico do Sampo em O Silmarillion foram: 1) apresentar conflitos de moralidade inflexível sem fazer alegorias; 2) usar elementos pagãos sem vulgarizá-los; 3) preencher as lacunas na fonte com outras tradições ou com sua própria imaginação; e 4) expandir o campo de atuação do épico a uma escala global. O seu propósito explícito foi o de propagar um mundo secundário através da história inventada.
Pode-se dizer muitos medievalismos explorados por escritores dos séculos XIX e XX produziram algumas das mais belas obras literárias do mundo. O romantismo europeu da época “enfatizava a importância do passado e o valor da antiga poesia popular, e a realização finlandesa de um épico nacional estava relacionada” a esse movimento (Alhoniemi 229). William Morris elaborou os seus romances e fantasias “históricos” na segunda metade daquele século. A produção desses dois escritores teve uma profunda influência sobre J. R. R. Tolkien, que em sua adolescência foi inspirado a retrabalhar muitas cenas do épico de Lönnrot no estilo verso-e-prosa dos primeiros romances de Morris. Já em 1914 ele escreve à sua futura noiva Edith Bratt sobre “tentar transformar uma das histórias [do Kalevala] – que é realmente uma história muito grande e trágica – em um conto mais ou menos no estilo dos romances de Morris com doses de poesia intercaladas” (Carpenter, Letters 7). Anos mais tarde (1955) ele reconta o seu processo criativo a W.H. Auden: “Mas o início do legendário, do qual a Trilogia é parte (a conclusão), deu-se em uma tentativa de organizar algo do Kalevala, especialmente o conto de Kullervo, o infeliz, em uma forma minha” (Ibid. 214). Esse material se adaptaria à sua “série de idiomas inventados” que “tornaram-se altamente afilandesados em estrutura e padrão fonético” (Ibid.). A influência inicial do Kalevala sobre Tolkien não pode ser subestimada, embora ela certamente tenha sido amenizada pelo catolicismo romano de Tolkien antes que ele iniciasse a tarefa de recontar partes selecionadas da obra. Durante seus últimos anos na King Edwards, ele descobriu “esse estranho povo e esses novos deuses, essa raça de francos heróis simplórios” com os quais ele mais se sentia à vontade quanto mais lia (Carpenter, Tolkien 49). Uma vez em Oxford, ele apresentou um artigo sobre como essas baladas finlandesas mantiveram uma “macega primitiva” que as outras tradições européias cortaram e de seu desejo de que seu país natal possuísse mais do mesmo tipo de literatura (Ibid.). Esse foi o projeto que ele assumiu para si próprio (como escrevera posteriormente): o de construir uma mitologia para a Inglaterra que fosse “alta, purgada do vulgar e adequada à mente mais adulta de uma terra há muito mergulhada na poesia” (Ibid. 90). Do

relato do próprio Tolkien de sua predileção pelo heroísmo primitivo
encontrado nO Kalevala, resoluto em sua representação trágica de
tais temas desagradáveis como o incesto de Kullervo, percebemos também
o desejo que ele tinha de enobrecer os personagens e apresentar seus
conflitos na vasta escala de um mundo inteiro, e não meramente entre
tribos guerreiras como na obra de Lönnrot. Ele esperava publicar esse
pano de fundo de mito e lenda como O Silmarillion durante sua
vida, mas foi apenas em 1977 que seus leitores tornaram-se cientes da
profundidade e complexidade da obra de sua vida.

Essa recuperação da literatura medieval norte-européia – trazendo as
tradições pré-cristãs desta para o âmbito de sua crença – é algo que
Tolkien compartilhava com seus companheiros de Oxford, os Inklings.
Dentro de suas obras imaginativas de fantasia e/ou ficção científica,
eles procuravam não tanto reconciliar materiais pagãos com o
cristianismo quanto recuperar a riqueza dos primeiros sem louvar
práticas pagãs ou diluí-las. Embora seus modos favorecidos de contar
histórias difiram, esses estudiosos de Oxford incorporaram elementos do
romance, épico e poesia medievais que a maioria dos escritores evitava
no período modernista. C.S. Lewis pegou emprestado livremente elementos
da Idade Média para sua série de Narnia assim como para sua trilogia de
ficção científica (ambas com uma intenção alegórica definida). Charles
Williams escreveu poesia arthuriana quase mística assim como livros de
fantasia caça-níqueis.

Tolkien não compartilhava exatamente da mesma estética de seus colegas:
ele “cordialmente tinha aversão à alegoria em todas as suas
manifestações” (Carpenter, Letters 189), e considerava a lenda
arthuriana explicitamente cristã em demasia para que pudesse basear sua
mitologia nela (Rogers e Rogers 31). O interesse primário de Tolkien
estava nos elfos e não no destino dos homens, de modo que um cenário
excessivamente cristão enfatizaria a humanidade e minimizaria o reino
de Faërie. O que os Inklings tinham em comum com Tolkien, contudo, era
um hábito de tirar inspiração de seus textos medievais favoritos e
então ampliar as partes que se encaixavam na moralidade cristã sem
perder o sabor medieval do original. Enquanto que os livros de Narnia
de Lewis tinham bruxas e os de Williams tinham magia negra e tarô, o
Silmarillion de Tolkien apresentava duelos de canções mágicas similares
aos dO Kalevala entre os xamãs viajantes do mar e de trenós,
Väinämöinen e Lemminkäinen, e seus inimigos da Terra do Norte. O
vislumbre em direção ao passado na ficção de Tolkien e seus amigos é
favorável, localizando aspectos de literatura medieval primitiva ou
pré-cristã que de outra forma poderiam ser apenas ocultistas e não
ortodoxos sem o ponto de vista deles.

Dos estudiosos de Tolkien que têm estudado sua obra desde os anos
oitenta, poucos deram mais do que um breve olhar na influência dO Kalevala em O Silmarillion
[2]. Muitos reconhecem a contribuição de Lönnrot no entusiasmo
filológico pelos mitos norte-europeus no século XIX, mas oferecem
apenas informações superficiais sobre os heróis finlandeses e suas
buscas [3]. Alguns escritores concentraram-se em certos contos ou
personagens dessa tradição [4], mas algumas das melhores críticas
literárias e lingüísticas sobre Tolkien podem ser encontradas em
publicações finlandesas como a Scholarship & Fantasy.
Entretanto, surpreendentemente pouco tem-se dito sobre o Sampo em
relação às Silmarils. Dada sua centralidade nos mundos míticos nos
quais habitam, é espantoso que esses objetos míticos não tenham sido
considerados com maior profundidade.

Tom Shippey resume o que os estudiosos têm teorizado a respeito da
natureza misteriosa do Sampo, e o quão tentador tal enigma deve ter
sido para Tolkien, que estava predisposto a ler nas entrelinhas de seus
textos favoritos (181). Um tratamento razoavelmente compreensivo da
influência dO Kalevala sobre Tolkien pode ser encontrado no livro Tolkien e as Silmarils,
de Randel Helm, que possui uma extensa discussão de Kullervo (6-12). Na
verdade, muitos críticos de Tolkien se concentram em Kullervo quando
mencionam O Kalevala, provavelmente porque Tolkien mencionava-o em suas
cartas e porque “De Túrin” assemelha-se muito a ele. Embora Helms
ilumine o processo pelo qual Tolkien transforma um servo lascivo e
destrutivo no herói de Túrin, ele não explica a ligação do Sampo e as
Silmarils com igual precisão, particularmente no que diz respeito aos
personagens envolvidos na sua forja e roubo. Sua divisão do papel de
Louhi tanto em Thingol como em Melkor, e do papel de Ilmarinen tanto em
Fëanor como em Beren (e também em Melkor!), não só é confusa como
também desnecessária (42). Ao invés de uma associação precipitada dos
personagens de Tolkien com seus “originais” em Lönnrot, é necessário um
olhar mais prolongado nas funções desses personagens dentro de cada
obra para se compreender o que Tolkien fez com o Sampo ao forjar as
Silmarils. Isso será abrangido na seção A Motivação para Forjar e Roubar.

Antes de prosseguir para analisar esse método criativo, gostaria de
esclarecer algumas afirmações feitas por outros críticos a respeito de
Kullervo para que algumas concepções errôneas não sejam inseridas na
presente discussão. Helms observa que, ao retrabalhar o ciclo de
Kullervo, Tolkien estava “aprendendo a superar uma influência,
transformar uma fonte, desenvolver um conto medieval grosseiro em algo
maior e melhor” (6). Primeiro, Kullervo não era medieval: pelo menos
ele não chegou a Lönnrot através da poesia oral finlandesa como fizeram
os outros personagens do Kalevala de 1849. De todas as figuras míticas
na obra, Kullervo é em maior parte invenção de Lönnrot, sendo um
“personagem composto” de antigos motivos europeus de uma criança
sobre-humana, baladas germânicas de incesto inconsciente e guerreiros
medievais que deixam o lar; ele “carece de uma contraparte na tradição
autêntica” (Branch xxxi). A distinção é importante, pois alguns
escritores têm feito observações precipitadas sobre os empréstimos de
Tolkien de materiais “medievais” como O Kalevala.

Segundo, o caso de Kullervo é de fato esclarecedor, especialmente ao se
considerar o método criativo de Tolkien em comparação com o de Lönnrot.
Ambos sentiam que haviam se deparado com materiais que mereciam ser
retrabalhados em uma nova forma versificada. O próprio Lönnrot disse
sobre as fontes finlandesas que: “As runas de Kullervo eram
particularmente confusas”, ao que Juha Pentikäinen acrescenta, “não foi
fácil para Lönnrot entrelaçar o personagem de Kullervo, encontrado nas
runas das regiões meridionais, na trama do Kalevala… Não obstante,
ele considerava a poesia de Kullervo tão significativa que buscou um
lugar para ela” (40). Em outras palavras, nos elementos díspares da
tradição oral que cercavam o grosseiro e infeliz menino prodígio,
Lönnrot viu a possibilidade de criar uma narrativa coerente que
refletisse o tipo de personagem sem sorte reconhecível pelos
finlandeses e que ainda tivesse apelo a uma audiência mais ampla por
sua tragédia. M. A. Branch afirma que “Lönnrot transformou Kullervo em
um herói comparável a Édipo e Hamlet, e condenado à destruição pelos
fados” (xxxi). Tolkien certamente sentiu que a tragédia de Kullervo era
digna das dores da reformulação. As cenas vívidas do infeliz herói
podiam suportar uma dramatização mais séria, e ele acabou criando duas
versões de tamanhos alternados. A mais curta, “De Túrin Turambar”,
aparece nO Silmarillion.

Ao modificar a história de Kullervo, Tolkien emprega os dois primeiros
métodos que mencionei: 1) ele apresentou conflitos de inflexível
moralidade sem fazer alegorias, e 2) pegou emprestado elementos pagãos
sem vulgarizá-los. O efeito da tragédia é intensificado ao macular-se o
destino de Túrin com uma sina inescapável. Embora imperfeito, ele é
mais uma vítima dos desígnios sutis de Melkor do que um malfeitor. Ao
invés de omitir o assassinato e o incesto, Tolkien torna-os o resultado
integral da indomável, porém inconsciente, juventude de Túrin, enquanto
suprime seu despeito e pequenez.

Enquanto que Kullervo precipita-se maliciosamente para matar a esposa
de Ilmarinen e a família de Untamo, Túrin também ataca
precipitadamente, matando inadvertidamente Saeros sob extrema
provocação e posteriormente ferindo mortalmente seu amigo Beleg na
confusão de seu resgate dos servos de Morgoth. Em seus dias como
Neithan, o Injustiçado, e depois como Mormegil, o Espada Negra, Túrin
exibe traços do nobre fora-da-lei à la Sociedade da �?rvore Seca no Poço no Fim do Mundo
de Morris, ou mesmo da tropa de Davi perseguida por Saul em 1 Samuel
21-30. Outra diferença é que o incesto de Kullervo é o resultado de
perseguir donzelas em seu trenó, mas para Túrin é um casamento
condenado pela amnésia lançada sobre sua irmã por Glaurung, o dragão.
“De Túrin” mantém muitos dos crimes de Kullervo que compreendem o
núcleo das cenas poderosas de Lönnrot – culminando com o herói
perguntando à sua espada sobre sua disposição para matá-lo e com a
resposta afirmativa desta – com uma diferença na culpabilidade do
protagonista. Tolkien continua esse processo de refinamento moral do
material do Kalevala sem a perda de dispositivos temáticos importantes
na sua apropriação de elementos do Sampo.

Tanto Lönnrot como Tolkien tendiam a enfatizar os aspectos pagãos das
fontes a partir das quais eles trabalhavam, embora a moralidade cristã
de Tolkien fundamente esse material pagão. Felix Oinas descreve o
processo criativo de Lönnrot: “Suas práticas editoriais traem sua
tendência de reduzir as características cristãs e lendárias enquanto
fortalece tantos os elementos pagãos como os histórico-realistas”
(290). Contudo, há uma ocasião onde Lönnrot claramente faz alusões
cristãs em seus versos. Ela é encontrada no último runo (canto)
a respeito do nascimento virgem do filho de Marjatta (Maria), o futuro
Rei de Karelia. Apesar dos aspectos cristãos óbvios, os personagens não
se encaixam na moralidade do Novo Testamento. Ao contrário de João
Batista, Väinämöinen enfurece-se com o batismo do novo salvador, e ele
canta uma nova embarcação para ir embora viajando pelo céu. Ele
consola-se apenas ao deixar para trás sua kantele (harpa) e seu
legado como sábio e cantor de seu povo, ainda que Kalevala deva sua
proteção e o rejuvenescimento dos pedaços do Sampo ao valor de
Väinämöinen.

Parte desse procedimento criativo era também o método de Tolkien, ao
reduzir os elementos explicitamente cristãos de suas fontes enquanto
fortalece os pagãos. Se o grande marinheiro Eärendil é pretendido como
uma figura de João Batista, no sentido de um precursor da salvação de
seu povo, então ele é ao mesmo tempo mais gracioso em comportamento e
mais “disfarçado” nesse papel do que sua contraparte Väinämöinen, que
fica amargurado com o novo rei que suplanta-o. Ao contrário de Lönnrot,
porém, Tolkien tendia mais exatamente a amplificar a questão lendária e
a diminuir os detalhes histórico-realistas. Isto é, ele preferia uma
consistência de realidade interna ao seu mundo que não dependia de
explicações do “mundo real”, mas das leis de seu reino de fantasia.
Desse modo, Eärendil representa a esperança de socorro da Terra-média
não por apelar à conhecida tradição cristã, mas por referência a uma
passagem mais obscura em inglês antigo que expressa a esperança de um
vínculo intercessor com ancestrais pagãos [5]. Tolkien amarra esse tema
de esperança em suas lendas através do transporte, por meio de
Eärendil, de uma Silmaril pelos céus na embarcação do marinheiro. O
destino de Arda, enquanto amplamente contingente pelo destino das
Silmarils – uma das “leis” postas em operação desde o início das lendas
–, mantém a continuidade da história inventada ao invés de crenças
cristãs convencionais.

Quanto ao processo criativo de Tolkien, tanto Shippey como Helms
comparam o conto de 1917, “De Túrin Turambar”, com outro criado mais
tarde naquele ano: “De Beren e Lúthien”. Ambos revelam o autor tentando
transcender a influência literária com níveis variados de sucesso.
Helms considera que “Túrin” suplanta seu predecessor “A Queda de
Gondolin” em termos de “gradualmente libertar sua (isto é, de Tolkien)
imaginação de seu estado derivativo juvenil”, mesmo dizendo-se que
“Gondolin” não possui precedente literário (5, 6). Shippey concorda,
mas vai além ao dizer que “Túrin” realiza mais completamente a idéia de
destino apenas vislumbrada em “Beren” e digere mais completamente sua
fonte, como se isso fosse uma virtude (195). Realmente, Tolkien
retrabalha habilmente a história de Kullervo em seu conto, como com o
uso de Sigurd, o matador do dragão, mas os empréstimos são mais
evidentes do que aqueles em “Beren”.

Nesse terceiro conto, as importações são de fato numerosas. [6] Porém,
elas exemplificam o terceiro método do processo criativo de Tolkien, 3)
ele preenche as lacunas entre as fontes com sua imaginação. Tolkien
impregna-as com suas próprias experiências românticas e sintetiza as
fontes umas com as outras, criando mais uma narrativa sem costuras com
um ar de originalidade. O que Shippey enumera como falhas – a
repetição, a brevidade e a variedade de formas – são o que na verdade
podem ser considerados pontos fortes. De acordo com Umberto Eco,
alusões a obras externas podem ser parte da apreciação de um texto por
alguém a par das fontes (um “Leitor Modelo”), especialmente quando
combinadas engenhosamente por um autor (22-23). Helms sustenta que
“Beren” fornece triunfantemente o “protagonista adequado” que falta nos
dois primeiros contos de 1917 e, assim como o próprio Tolkien,
considera “Beren” como a obra-prima dO Silmarillion (12). Apesar
desse conto também conter cenas de sofrimento e escuridão, ele é mais
positivo do que os outros. De fato, o conto diferencia-se em suas
linhas iniciais: “Entre os contos de dor e ruína… há alegria… E
dessas histórias, mais bela ainda aos ouvidos dos elfos é o conto de
Beren e Lúthien” (Tolkien, 162).

Uma característica de “Beren” criticada por Shippey precisa ser
analisada minuciosamente, pois ela influencia nossa leitura da Quenta Silmarillion inteira, e pode ser um dos elementos que Tolkien retirou dO Kalevala
junto com o Sampo. Já mencionei como as fontes distinguíveis
entrelaçam-se habilmente e, quanto à brevidade, o estilo de prosa
narrativa comprimida simplesmente é apropriado para o discurso adotado
pelo autor, o de uma alta retórica na veia bíblica. A outra
característica que foi nomeada como falha, mas que na verdade é um
ponto forte, é a repetição. Certas imagens, incidentes e temas são
evocados no decorrer da história e, se qualquer um desses for
completamente apreciado em si pelo leitor, a reaparição deles em formas
variadas pode ser parte do prazer da leitura. Eles são o tipo de cenas
centrais ou passagens líricas que assombraram Tolkien no decorrer de
sua vida, como o encontro de um homem e uma donzela élfica em uma
floresta, que ele revisitou mais de uma vez não apenas em “Beren”, mas
em diferentes aspectos no decorrer dO Silmarillion e mesmo em O Senhor dos Anéis. [7]

Embora a repetição possa ter pouco apelo para aqueles com uma estética
modernista (ou pós-moderna), que prezam a inovação ou novidade como a
prova legítima de arte, ela é a esfera de ação apropriada de certos
tipos de literatura. Eco explica que perceber variações dentro de
repetições de uma forma de arte é provavelmente uma das estéticas mais
antigas, e é uma sensibilidade artística apropriada em nossa era de
cultura de massa (14, 28). A repetição é certamente uma característica
das sagas nórdicas, cujas gerações de fratricídios, maldições e
promessas quebradas são repetidamente imitadas por Tolkien. Em uma
forma literária retraída tal como o épico, ela serve a uma função
prática de lembrar à audiência dos principais temas na obra. Para O Silmarillion,
os repetidos juramentos, promessas ousadas, destino, buscas e reinos
caídos sustentam as minúcias da história. Tal como na vida real,
existem ciclos de circunstâncias similares, mas com uma variedade
infinita e diferentes resultados em sucessivas gerações.

A repetição nos cantos dO Kalevala serve a vários propósitos,
geralmente fornecendo as deixas estruturais necessárias a uma audiência
de poesia oral. A base do texto de Lönnrot é de fato as notas que ele
tomou de exibições ao vivo de cantores folclóricos na região de
Karelia, editadas a partir de variantes dos mesmos contos ou baladas
tradicionais. Os múltiplos epítetos de cada personagem – Ahti
(Lemminkäinen), o Ilhéu, o amante caprichoso; Velho Väinämöinen Inabalável, o bardo eterno; Louhi, senhora da Terra do Norte, a bruxa de dentes espaçados
[8] – servem como motivos condutores, ajudando a audiência a
identificar o elenco e associar as ações deste nos cantos com
expressões reconhecíveis. Além disso, os paralelismos na versificação dO Kalevala com ligeiras alterações ajudam o ouvinte a acompanhar a ação antes que o cantor passe para o próximo ponto:

Irei forjar o Sampo,
Soldar sua tampa brilhantemente colorida
……………..
Pois fui eu que forjei os céus,
E a abóbada do ar eu martelei (Kirby 111)

Se Tolkien tem sido criticado pela brevidade de sua narrativa resumida, então O Kalevala
certamente peca no oposto. Oinas comenta que “a ação é tênue em
comparação ao grande volume do épico, e algumas digressões que atrasam
ou interrompem o curso principal de eventos são, de certo modo,
entediantes” (298-99). Reconhecidamente, os cantos são redundantes: a
ação principal de muitos cantos geralmente envolve pelo menos três
tentativas, tais como as tarefas dos três pretendentes, os três
desastres enviados por Louhi ao Kalevala, e as três tentativas da forja
tanto do Sampo como da noiva dourada de Ilmarinen. A versificação
também torna-se repetida quando Väinämöinen conta mentiras – quatro
vezes à donzela de Tuonela e três vezes à Annikki – sobre o destino de
sua viagem. Tal redundância em estrofes com elementos variados constrói
uma expectativa, frequentemente com humor intencional nO Kalevala.
Ao se ler, se é constantemente lembrado que esse efeito bem pode criar
hilaridade na vívida tradição oral da qual ele se originou, na qual
dois cantores apertam as mãos e respingam cerveja um no outro enquanto
manejam a kantele e trocam letras de músicas. O tom humorístico
engendrado por essa magnitude de repetições nas baladas está longe do
planejado por Tolkien. Embora seja simpático ao xamanismo desembaraçado
e ao ciclo de temas repetidos, Tolkien retira muito da mitologia
finlandesa da cervejaria e passa isso para o alto e conciso tom dos
anais sagrados.

A prosa elevada, ao contrário da canção folclórica, pode distinguir seu estilo, mas O Silmarillion deve muito de sua estrutura total ao Kalevala
centrado no Sampo. Ambos retrocedem no tempo para fazer relatos míticos
da criação antes de introduzir os personagens principais que instigam
as lutas pelo Sampo e as Silmarils; ambos acarretam na perda daqueles
objetos míticos; e ambos terminam em uma nota de triunfo pelas figuras
heróicas primordiais, ou ao menos pelo, por ora diminuído, poder de
seus inimigos. No meio dessas características estruturais
compartilhadas, Tolkien não apenas reembaralha alguns dos eventos que
cercam o Sampo, mas também pega emprestado um pouco da “gradação
tripla” de ação intensificadora que Oinas salienta como sendo
predominante nos cantos de Lönnrot (298). Como já observado, a
repetição é evidente nO Kalevala através das sucessivas ações e
dos diálogos repetidos na maioria dos cantos, frequentemente com um
efeito cômico. Os ciclos de repetição em O Silmarillion, contudo, são mais sutis e estão espalhados pelos contos.

Conforme os padrões reconhecíveis se desenrolam, a gradação de ações
vai de mal a pior na medida em que as mentiras e influências de Melkor
espalham-se e infectam a Terra-média mesmo após ele ter partido. Por
causa desse tumulto através das eras, o destino das Silmarils está
cercado por uma “arena de batalha” maior do que aquela do Sampo. Isso é
característico do quarto método de Tolkien, 4) ele expande o campo de
atuação do épico a uma escala global. As Silmarils passam por três
terras (Valinor, Beleriand e Utumno). Uma delas passa pelas mãos de
três raças (élfica, dos Valar e humana), desencadeando destruição entre
três raças (élfica, anã e humana) após a posse dela por Thingol. Três
reinos élficos caem (Nargothrond, Doriath e Gondolin) e, após três
gerações de conflitos (Beren, Dior e Eärendil), essa Silmaril navega
pelos céus na fronte de Eärendil, enquanto que as outras vêm a repousar
na terra e no mar. Os contos que abrangem essas repetições triplas
fornecem uma história muito mais complexa das Silmarils do que o esboço
básico dos ciclos do Sampo. Por todos os seus interlúdios e digressões
encantadores, o épico finlandês era consideravelmente menos abrangente
e global do que Tolkien desejava para seu mundo secundário.

A natureza mítica do Sampo e das Silmarils

Por causa da simples amplitude da história inicial da Terra-média, os
atributos de seu objeto de buscas central teriam que ser descritos mais
claramente do que o Sampo se ele fosse ser cobiçado por nações e
passado através das gerações. A natureza do Sampo conforme apresentada
por Lönnrot era vagamente mística e totemística e, no entanto,
fundacional para a função agricultural da sociedade ártica retratada –
justamente o tipo de enigma filológico que atraía Tolkien. Muito da sua
invenção de fantasia deve suas origens às referências enigmáticas ou
ocultas de textos medievais que filólogos como Tolkien e seus
predecessores tinham certeza que em tempos passados haviam exercido uma
forte influência no imaginário popular, ou que pelo menos eram
reconhecíveis pela audiência literária do material primitivo. Por
exemplo, ele desenvolveu os ents da Floresta de Fangorn a partir da
palavra ent ou “gigante” do inglês antigo e, como já
mencionado, Eärendil era uma alusão inglesa antiga sem um referente
claro. Muito do trabalho dos filólogos envolvia reconstruir o possível
significado (ou a evolução) de uma formação incerta de palavras ao se
reunir evidências a partir de palavras comparáveis. A ficção
imaginativa de Tolkien frequentemente seguia a mesma linha, e o Sampo
foi justamente tal objeto de mistério.

Em finlandês, sampo não é uma palavra com outro significado que não o do nome dado ao objeto mítico nO Kalevala e nas tradições folclóricas da Finlândia. Uma palavra relacionada usada algumas vezes é sammas,
outra “palavra sem sentido” de acordo com Shippey (181), mas que
significa “pilar” em finlandês de acordo com Oinas (291). O que Tolkien
conhecia disso foi compilado a partir da tradução de Kirby de 1907 e de
pedaços do original que ele mesmo traduziu, “como um estudante com
Ovídio” (Carpenter, Letters 214). A tradução de Kirby descreve o objeto
como possuidor de três lados compostos de um moinho de milho, um moinho
de sal e um moinho de moeda; ele possui também uma “tampa
brilhantemente colorida”. Por ter sido forjado por Ilmarinen, o
ferreiro, que “soldou-o e martelou-o”, podemos supor que ele é metálico
e, no entanto, suas “raízes” têm dezesseis metros e meio de
profundidade. Ele é uma máquina ou um poderoso totem orgânico? Ele
exibe traços de ambos ao prover as necessidades materiais de Pohjola em
abundância:

Ora estava moendo o novo Sampo,
E revolvia a tampa pintada,
Grandes porções moeu até o entardecer,
Primeiramente por comida ele moeu uma grande porção,
E outra moeu para troca,
E uma terceira ele moeu para armazenar. (115)

A “brilhante tampa” giratória ou “cobertura colorida” revolvente é
outra parte do quebra-cabeça. O Sampo inteiro parece ser uma estrutura
tão maciça que sua tampa decorada pode ser vista girando enquanto os
moinhos moem continuamente, seguros detrás de nove fechaduras no Monte
de Cobre.

Os estudiosos têm arriscado várias suposições a respeito da verdadeira
natureza do Sampo, mas a concepção predominante adiantada por Uno Harva
é a de um pilar do mundo que mói como um gigantesco moinho sob a “tampa
decorada” do céu (Oinas 291). Essa idéia de uma tampa giratória formada
pelo céu, que impulsiona o moinho, é considerável, uma vez que o Sampo
foi forjado por Ilmarinen, o deus do céu da mitologia finlandesa que
gaba-se de ter martelado a abóbada do firmamento antes do início do
mundo. Além disso, as descrições do Sampo são análogas aos moinhos
mágicos do Edda, ou à �?rvore da Vida em mitos do mundo. Por
Tolkien ter lido abundantemente esse tipo de material, ele
provavelmente viu dentro do Sampo a personificação dessas noções
tradicionais de um eixo mundial.

O tipo de lenda que Tolkien estava criando, entretanto, necessitava de
algo um pouco mais inteligível, uma invenção de partes separadas, cada
uma invejável o suficiente para despertar o desejo insaciável da
maioria dos governantes poderosos de controlá-la e capaz de incitar
múltiplas buscas para sustentar a longa história. Esse símbolo mítico
não poderia estar adequadamente personificado em uma única forma como o
Sampo: Tolkien teve que dividir o pilar do mundo a partir da tampa
brilhantemente decorada, designando diferentes atributos a elas e
unindo-as de algum modo na origem. Uma estaria enraizada como uma
�?rvore da Vida, enquanto que a outra seria móvel, “brilhantemente
colorida” e permutável, isto é, mais facilmente roubada ou passada
adiante. Essas tornaram-se as Duas �?rvores de Valinor e as três
Silmarils, as primeiras cultivadas organicamente, e as últimas forjadas
com a essência derivada das fontes de luz do mundo. Elas fornecem mais
do que a supremacia sócio-econômica do Sampo: o mundo inteiro depende
da luz que delas emana.

Ao redefinir os elementos constituintes de seus objetos de busca a
partir das propriedades do Sampo, Tolkien aplica todos os seus quatro
métodos criativos. Ele concebeu objetos que trazem à tona o que há de
melhor nos heróis e o que há de pior nos vilões, incitando 1) conflitos
de inflexível moralidade. A luz das Duas �?rvores dentro das Silmarils
representa mais do que as vantagens sócio-econômicas do Sampo para
Pohjola: o potencial de iluminar a terra com rara e preciosa beleza
pode ser cobiçado e entesourado, privando o mundo inteiro de poderosa
luz. Isso estabelece oposições de certo e errado absolutos entre
aqueles que procuram proteger esse poder e aqueles que anseiam em
possuí-lo. As Silmarils respondem de modo específico àqueles que as
portam: elas “toleram” que as mãos de Beren e Eärendil as carreguem
porque os corações deles são bons, enquanto que Morgoth, Carcharoth e
Maedhros são queimados ao tocar as jóias porque suas intenções são más.

Ao pegar emprestado as idéias de uma árvore polar, da qual as
pitorescas luzes do céu dependem para movimentarem-se, Tolkien invoca
2) o uso de fontes pagãs sem vulgarizá-las. Antigas culturas da Europa
e �?sia pré-cristãs, incluindo povos saxões e escandinavos, possuíam
crenças primitivas sobre uma árvore ou pilar universal que sustentava
as luzes do céu e beneficiava o mundo (Ibid.). Essas idéias
encontram-se nos objetos míticos no coração das crises centrais da
Terra-média. Ao conceber as Silmarils como jóias e as Duas �?rvores como
um brilhante “pilar do mundo”, Tolkien 3) preenche uma lacuna na fonte
com sua imaginação. Conforme afirmado anteriormente, a indefinição do
Sampo como um objeto tangível teria sido um risco nas tramas dO Silmarillion.
Logo, Tolkien cria as vívidas jóias e árvores cujas luzes ele descreve
como mais inerentemente belas e cruciais ao mundo inteiro do que o
Sampo, que oferece ao seu possuidor pouco mais do que vantagens
industriais.

Ao dividir os atributos míticos do Sampo em objetos de busca separados
mas relacionados, ele 4) expandiu o campo de atuação do épico a uma
escala global. O número maior de objetos míticos permite uma
sofisticada série de buscas no decorrer das primeiras eras da
Terra-média. Assim, as Duas �?rvores são subjugadas por Melkor, mas a
luz delas é preservada dentro da substância misteriosa das Silmarils
que ele rouba, provocando o ímpeto de Fëanor, Beren e, finalmente, dos
Valar de empreenderem missões para a recuperação das jóias. Todos
partem contra o terrível poder de Morgoth e seus agentes por diferentes
razões, embora a motivação de cada um envolva o destino das Silmarils
no conflito intergeracional através do mapa da Terra-média.

As motivações para forjar e roubar

A diversidade de tentativas de roubo das Silmarils tem muito a ver com
o propósito inicial pelo qual elas foram criadas: Fëanor teve um
pressentimento nefasto e então procurou, com todo seu coração, colocar
toda sua habilidade na criação de gemas em prática. Nesse aspecto, O Silmarillion difere em muito dos cantos de forja e roubo dO Kalevala.
Tolkien pega extensivamente emprestado elementos dessas áreas de sua
fonte e, contudo, altera significantemente as motivações dos agentes
principais das maiores ações para produzir o tipo de guerra em larga
escala entre o bem e o mal que molda a miríade de aventuras de seu
mundo secundário. Enquanto que o cortejar da donzela do norte pelos
heróis do Kalevala é o que leva Ilmarinen a forjar o Sampo, o perigo
iminente de Morgoth é o que motiva grandemente Fëanor a confeccionar as
Silmarils. Para executar essa mudança, Tolkien conta primeiramente com
seus primeiro e quarto métodos de lidar com o material do Sampo: 1) ele
apresenta conflitos de inflexível moralidade e 4) expande o campo de
atuação do épico a uma escala global.

Embora a última parte dO Kalevala contenha a batalha pelo
Sampo e a tentativa de vingança de Louhi, o grosso do épico diz
respeito à vida de aldeia e aos rituais dos karelianos do Mar Branco,
particularmente às tarefas de cortejamento e tradições de casamento
encontradas em vários cantos. Como Pentikäinen escreve, “O Kalevala
é, na verdade, em grande parte um drama de casamentos” (47). Mesmo as
tarefas sobrenaturais impostas aos pretendentes por Louhi são meramente
hipérboles de tarefas cotidianas: esculpir (um barco a partir de uma
roca), esquiar para encurralar um alce (demoníaco), arar um campo
(infestado de víboras), e assim por diante. Entretanto, quando Louhi
pede a Väinämöinen para forjar o Sampo pela a mão de sua filha, ele
precisa recrutar os serviços de Ilmarinen, o mestre ferreiro. Depois
que a desanimadora tarefa é cumprida, Ilmarinen oferece o Sampo de bom
grado, esperando conquistar a donzela para si próprio. Portanto, é
devido ao casamento que o destino do Sampo é ser trancafiado, roubado
e, finalmente, partido em pedaços; Väinämöinen recupera os restos do
objeto, mas ele jamais é reforjado. As Silmarils são igualmente
insubstituíveis, mas seu papel é mais importante do que ser o presente
de um pretendente a casamento. Aqui Tolkien 1) apresenta um conflito de
inflexível moralidade. Melkor já havia começado a espalhar seu ódio e
Fëanor, “atingindo seu poder máximo, foi dominado por uma nova idéia,
ou talvez lhe tivesse ocorrido alguma sombra de presságio do triste
destino que se acercava” (67). Por causa da ameaça que eventualmente
mergulha o mundo em guerras, ele volta toda sua habilidade para a
confecção das jóias que são as únicas que podem abrigar a luz de
Valinor.

Para apresentar a perene guerra mundial da Terra-média em termos de bem
e mal absolutos, Tolkien tem que redefinir uma ou duas cenas dO Kalevala. Ele estabelece a perversidade irredimível de Melkor já no Ainulindalë,
enquanto que a inimizade entre Louhi e o sul é revelada gradualmente, e
a culpa é principalmente de Lemminkäinen por ter decapitado o marido
dela em uma luta confusa. O ato punitivo final de Louhi de roubar o sol
e a lua ocorre próximo ao final do épico, após o Sampo ser roubado
dela. Como Melkor, Louhi move-se sorrateiramente durante uma celebração
dos heróis e remove as fontes de luz de seu lugar elevado no topo das
árvores. É bem possível que Tolkien tenha pegado emprestado essa cena,
colocando-a entre o primeiro dos ataques de Melkor.

Quando Melkor e Ungoliant extinguem as fontes originais de luz do
mundo, Fëanor não sacrifica sua mais bela criação para restabelecer as
Duas �?rvores de Valinor. Como os outros protagonistas, sua vontade
torna-se corrompida pelas maquinações de Melkor, a fonte do mal
absoluto. Tão forte é o amor do habilidoso artífice por sua obra que
ele protesta:

Para os inferiores como para os superiores, existe um feito que ele
não poderá realizar mais do que uma vez; e a esse feito seu coração se apegará.
Talvez eu libere minhas pedras preciosas, mas nunca mais farei outras
semelhantes; e, se precisar destruí-las, destruirei meu coração
e serei morto; o primeiro dos Eldar a ser morto em Aman. (Tolkien 78)

O egoísmo de Melkor já infectara Fëanor. Ao contrário de Aulë, ele não
entrega o trabalho de suas mãos pelo bem de outros. O desejo de criar é
tão forte nas criaturas de Ilúvatar que elas ficam tentadas a idolatrar
seus trabalhos manuais e entesourá-los para si próprias. Assim, o
trabalho de uma criação habilidosa é tratado mais seriamente nO Silmarillion do que nO Kalevala,
onde os heróis são seduzidos pela prosperidade engendrada pelo Sampo, e
não pela forma do aparelho em si. Lönnrot não está tão preocupado com
que lado é moralmente melhor, enquanto que o comentário sério de
Tolkien sobre o perigo do egoísmo forma o pano de fundo de moral
inflexível dos seus contos.

A obsessão de obter as Silmarils não morre quando Fëanor tomba na
tentativa. Outros aceitam o desafio, embora motivados por diferentes
razões. Devido ao seu conflito universal do bem e do mal, Tolkien situa
seu uso do roubo do Sampo como uma busca intermediária por uma
Silmaril, antes da batalha final na qual os Valar expulsam Morgoth para
sempre. Isso 4) expande o campo de atuação a uma escala global,
dividindo as motivações para o roubo – ou recuperação – entre mais
personagens do que os poucos heróis da terra de Kalevala.

Enquanto que Tolkien apresenta numerosos protagonistas, Lönnrot tende a
reunir várias figuras lendárias em um único personagem, tais como
Kaukomieli e Ahti, cujas proezas de amor e guerra Lönnrot atribui a
Lemminkäinen. Como já mencionado, Kullervo é um personagem composto,
sendo em grande parte criação do próprio Lönnrot. O propósito dessa
redução de dramatis personae foi o de conferir os feitos de
heroísmo a algumas das figuras mais conhecidas dos mitos e lendas
finlandesas e organizar suas proezas em volta do roubo do Sampo. Ele
torna Väinämöinen, Ilmarinen e Lemminkäinen os heróis do Kalevala
meridional que defendem a causa do nacionalismo finlandês ao
suplantarem Louhi e os Lapões setentrionais de Pohjola. Esta batalha
por supremacia provincial entre vizinhos karelianos é particularmente
localizada em comparação com o grande alcance da guerra da Terra-média
abrangida pelo O Silmarillion.

Ao invés de reduzir o elenco de personagens, Tolkien condensa muitas
das cenas de Lönnrot através do tempo e do espaço, destinando
diferentes porções da trama do Sampo a várias gerações de elfos e
homens apanhados na teia de trapaças de Morgoth. Ele incorpora os
aspectos de cortejamento e roubo no conto “De Beren e Lúthien”, e
atribui as motivações de Louhi e dos pretendentes a Thingol e Beren.
Neste ponto nO Silmarillion, as Silmarils já haviam sido
forjadas, e os conflitos morais haviam sido estabelecidos. Nessa busca
intermediária, o rei de Doriath oferece então sua filha a Beren pela
tarefa cortejante de recuperar uma Silmaril. Há até mesmo um
pretendente rival por Lúthien, Daeron, o principal menestrel na terra,
embora sua aparição seja breve. Thingol é motivado pelo surpreendente
valor e poder da Silmaril ao fazer sua promessa precipitada, assim como
Louhi, que deseja a assombrosa capacidade produtiva do Sampo, propõe
aos pretendentes de sua filha missões impossíveis. Tolkien adota outras
funções de personagens dO Kalevala para o conto de Beren: Finrod
e Sauron duelam cantando seus encantamentos como Lemminkäinen e o
Mestre da Terra do Norte; Lúthien canta e, com isso, faz com que toda a
fortaleza de Morgoth durma, assim como Väinämöinen canta e, com isso,
faz com que toda a casa de Louhi durma; e Beren arranca uma Silmaril da
coroa de Morgoth com a faca Angrist, usando o tipo de ingenuidade que
Lemminkäinen demonstra ao desarraigar o Sampo com um boi monstruoso.

Esses são apenas alguns exemplos que revelam o método de Tolkien de
lidar com seu material de pesquisa. A natureza das mudanças feitas ao
pegar emprestado elementos dO Kalevala sugere o tipo de metas
que ele possuía como um filólogo cristão no século vinte. Tanto Tolkien
como Lönnrot tentaram criar uma literatura de proporções épicas para
seus países natais; contudo, suas formações culturais deram-lhes
escolhas retóricas e estéticas diferentes. Lönnrot escreveu durante o
início do século dezenove, enquanto os finlandeses estavam formando sua
identidade nacional. Por esse motivo, Lönnrot explorou as tradições
orais que cercavam o Sampo. Ele escolheu o Kalevala meridional como o
local da terra natal de seus heróis, e apresentou a luta deles contra
os Lapões vizinhos da Pohjola setentrional como um épico inspirador
para seu país. Tolkien também desejava dar à sua terra natal uma série
de mitos e lendas nativos, mas a Inglaterra do início do século vinte
estava ocupada com as atrocidades da guerra mundial. Como seus
companheiros Inklings, ele foi atraído para a literatura medieval da
Europa setentrional, e viu nela as possibilidades de expressar seus
valores cristãos, apesar do pessimismo de sua própria era devastada
pela guerra. Ao escrever em um tom de nobre coragem, Tolkien pegou
emprestado elementos de fontes como O Kalevala para apresentar a história épica de um mundo condenado, cujas Silmarils ainda oferecem luz em tempos sombrios.

Notas

[1] Ao desenvolver essa análise de como Tolkien lida com O Kalevala,
fico em débito com o eloqüente relato de um método encontrado no ensaio
literário “What Chaucer Really Did to Il Filostrato” (“O que Chaucer
realmente fez com Il Filostrato”) de C. S. Lewis.

[2] Mesmo as obras mais recentes que tratam das influências na fantasia de Tolkien fazem apenas breves referências ao Kalevala (Fantasy: The Liberation of Imagination, de Richard Mathews. Nova York, Londres: Twayne Publishers, 1997) ou simplesmente nenhuma (Defending Middle-earth: Tolkien, Myth, and Modernity, de Patrick Curry. Nova York: St. Martins Press, 1997).

[3] Por exemplo, James Hodge compara Väinämöinen e Ilmarinen a Gary
Cooper e Clint Eastwood em seu artigo “Tolkien: Formulas of the Past”.
Mythlore 29 (1981): 15-18.

[4] Iwan Morus observa o uso de elementos do Kaleva em “The Tale of
Beren and Lúthien” Mallorn 20: 19-22, enquanto que David Dettman
discute as influências finlandesas em “Väinämöinen and Bombadil:
Finnish Folklore and The Lord of the Rings, Part One.” Minas Tirith
Evening Star 8.4 (julho): 3-8.

[5] Shippey explica que a inspiração para Eärendil originou-se do
significado incerto dos versos que Tolkien encontrou na Letra do
Advento: “Eala earendel, engla beorhtast, ofer middangeard monnum
sended…” (183).

[6] Sir Orfeo em inglês médio, O Kalevala, a Volsunga Saga, a “Rapunzel” dos Grimms, o Gênesis B em inglês antigo, o Mabinogion e o Edda Prosaico. Ver Shippey 193.

[7] O padrão consiste de um homem encontrando em uma floresta uma
mulher que o encanta com seu canto e dança. Thingol e Melian (embora
ele seja um elfo e ela uma Maia), Beren e Lúthien, e Aragorn e Arwen
são aqueles “condenados” a se apaixonarem desse modo.

[8] Esses são os nomes e pseudônimos dos personagens conforme apresentados na tradução de Keith Bosley de 1989 dO Kalevala.

Obras citadas

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Battarbee, K. J., ed. Scholarship & Fantasy: Proceedings of The Tolkien Phenomenon. Maio de 1992. Turku, Finlândia. Anglicana Turkuensia No. 12. Turku, Finlândia: Universidade de Turku, 1993.

Bosley, Keith, trad. O Kalevala. Por Elias Lönnrot. Oxford, Nova York: Oxford UP, 1989.

Branch, M.A. Introdução. Kalevala: The Land of the Heroes. Trad. W. F. Kirby. Por Elias Lönnrot. Londres e Dover: Athlone Press, 1985. xi-xxxiv.

Carpenter, Humphrey, ed. The Letters of J.R.R. Tolkien. Com a assistência de Christopher Tolkien. Boston: Houghton Mifflin, 1981.

Carpenter, Humphrey. Tolkien: a Biography. Boston, Houghton Mifflin, 1977.

Eco, Umberto. Innovation and Repetition: Between Modern and Postmodern Aesthetics. Reading Eco: an Anthology. Ed. Rocco Capozzi. Bloomington: Indiana UP, 1997. 14-33.

Helms, Randel. Tolkien and the Silmarils. Houghton Mifflin, 1981.

Oinas, Felix J. Heroic Epic and Saga: An Introduction to the Worlds Great Folk Epics. Bloomington, Londres: Indiana UP, 1978.

Pentikainen, Juha Y. Kalevala Mythology. Trad. e ed. Ritva Poom. Bloomington, Indianápolis: Indiana UP, 1989.

Rogers, Debrah Webster e Ivor A. Rogers. J.R.R. Tolkien. Ed. Kinley E. Roby. Twaynes English Authors Ser. 304. Boston: Twayne Publishers, 1980.

Shippey, T.A. The Road to Middle-earth. Boston: Houghton Mifflin, 1983.

Tolkien, J.R.R. O Silmarillion. Ed. Christopher Tolkien. Boston: Houghton Mifflin, 1977.

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