Pegadas no Orvalho

Escrito por Fábio Bettega
De acordo com as lendas européias não escritas,
anteriores a Shakespeare e ao próprio cristianismo, aquele que, numa
noite enluarada visse uma filha dos Elfos dançando numa clareira, se
deixaria fascinar e estaria perdido para sempre a partir de quando se
juntasse ao bailado; em geral, porém, as danças não tinham testemunhas;
de manhã percebia-se, apenas, na erva úmida o traço ligeiro de suas
pegadas. Tolkien talvez tenha sido o último homem que se deixou atrair
e seduzir sem resistência.

 

 
Ele era apaixonado por histórias antigas e
perseguiu as pegadas suaves dos elfos pela vida toda. Seu apetite por
tal espécie de literatura era tão voraz que mesmo o domínio de várias
línguas, que lhe franqueava acesso a um muito vasto repertório de
lendas germânicas, não era um leito suficientemente profundo a ponto de
canalizar toda a sua avidez pelo belo, ingênuo e melancólico legendário
europeu.

 

E o irônico é que talvez o cristianismo (religião
à qual o Professor era tão apegado) tenha sido o principal responsável
por isso.

 

As lendas européias antigas chegaram à Idade
Média através da tradição oral. Foram vertidas para a linguagem escrita
apenas por estrangeiros ou evangelizadores. E nesse processo, os olhos
civilizados viram apenas o que quiseram.

 

Quem procura mitologia européia encontra-a
soterrada pela filosofia católica. Lendas como os grandes poemas de
Eldar Edda (onde o escritor cristão Snorri Sturluson, através de várias
fontes, reconstituiu ou recriou o folclore escandinavo) ou o romance de
Tristão e Isolda (lenda celta cuja versão mais aceita é a reconstituída
pelo francês Joseph Bédier, no final do século XIX) são histórias
recontadas.

 

Encantado por tais ecos de uma Europa Antiga,
subjacente ao cristianismo, Tolkien ambicionava sobretudo encontrar um
conjunto de lendas a respeito da Grã-bretanha, o seu País. Mas,
retirando-se as histórias sobre o Rei Arthur (que são um produto
relativamente recente do imaginário britânico, já profundamente
influenciado pela moral cristã) pouco pode-se encontrar de lendas
britânicas.

 

O que Tolkien estava procurando era uma mitologia
ao estilo dos contos de fadas germânicos, escrita em inglês antigo. Mas
o pouco que existia na Inglaterra era apenas o eco de vozes distantes
que haviam há séculos atravessado o Mar, vindas do Leste, antes de
quando o cristianismo penetrou na Inglaterra, e aterrissou como um
pesado monólito, por sobre a mitologia nativa, esmagando-a.

 

Haviam nomes, idéias, mitos…, mas não uma
mitologia organizada. Algo mais ou menos parecido com o emaranhado
incoerente de crendices populares a partir do qual Monteiro Lobato
reconstruiu o folclore brasileiro, à sua própria época e lugar.

 

Quando Tolkien começou a escrever suas próprias
histórias (para suprir, a princípio para si mesmo, aquela lacuna que a
cristianização da Europa criou no imaginário europeu), não se importava
em apropriar-se de termos comuns do lendário popular, tais como
duendes, anões ou gnomos.

 

Mas com o tempo, passou a preferir nomes
inventados: hobbits, orcs e ents, por exemplo. Em alguns casos,
inclusive, o Professor chegou cogitar a possibilidade de alterar nomes
que já havia utilizado. Foi o que aconteceu com os orcs (que antes eram
duendes, no legendarium tolkieniano) e quase ocorreu com os elfos.

 

Conforme a carta 239 (Letters of JRRT), quando
Tolkien começou a escrever sobre os elfos, chamava-os de gnomos. O
primeiro título provisório dos esboços do Silmarillion era A História
dos Gnomos. Esse era um termo concebido por Tolkien, a partir da
palavra gnome (pensamento ou inteligência, em grego).

 

No entanto, como Tolkien veio posteriormente a
descobrir (ele trabalhou no dicionário de Oxford), o termo gnomos já
havia sido inventado antes, por um outro autor: Paracelso, um escritor
do século XVI que o usava com o significado de habitantes da terra; com
o que se referia a seres (também denominados pygmaeus) para quem a
terra era seu elemento, tal como a água é para os peixes e o ar é para
as aves e animais, de modo que podiam mover-se livremente através dela.

 

A partir de então, Tolkien passou a referir-se a elfos no lugar de gnomos. Mas, tempos depois, arrependeu-se mais uma vez.

 

Conforme Tolkien esclarece na carta 236, não há
nenhuma canção ou história preservada sobre elfos ou anões em inglês
antigo, e apenas um pouco em outras línguas germânicas. Tudo o que
restou foram palavras e alguns nomes.

 

Nessa mesma carta, Tolkien ressalta não conhecer
nenhuma história em houvessem papéis desempenhados por elfos ou anões,
exceto Andvari nas versões norueguesas de Nibelung. No inglês antigo,
se não fosse por umas pouquíssimas exceções, a partícula elf jamais é
encontrada em palavras com o significado a que Tolkien se referia.
Segundo ele próprio afirma (ainda na carta 236), em toda poesia antiga
inglesa elves (ylte) ocorre apenas uma vez, em Beowulf: associada com
trolls, gigantes e mortos-vivos, como a prole amaldiçoada de Cain.

 

Por conta dessa imprecisão terminológica, após
falar sobre a questão da substituição da nomenclatura duendes por orcs,
na carta 151, Tolkien lamenta profundamente nunca ter descartado a
denominação elfos. A justificativa dentro da obra para a manutenção do
termo baseia-se na idéia de que uma vez que as histórias tratavam de
uma época esquecida em que se usavam línguas incompreensíveis no tempo
presente, a utilização de palavras como dwarf, goblin, troll ou elf
seria apenas uma maneira (bastante imprecisa) de se referir a tais
criaturas na língua inglesa moderna. Os elfos, por si mesmos, se
chamavam quendi.

 

No entanto, é inafastável a evidência de que o
termo elfo (também emprestado do imaginário popular europeu), embora
fosse, em sua acepção original, em muito maior medida compatível com os
predicados atribuídos aos primeiros filhos de Eru, do legendarium
tolkieniano, ainda não era um termo que se pudesse considerar seguro
contra interferência de outros significados populares.

 

E com efeito, no Ensayo de un Dicionario
Mitologico Universal (Madrid: Aguilar, 1958, p. 255) o verbete Elfos se
refere a todas as divindades subalternas da mitologia escandinava. Tais
divindades (os álfar), segundo Johannes Brondsted em Os Vikings (São
Paulo: Hemus, 1987), eram cultuadas pelos escandinavos dentro de casa,
por causa de seus poderes protetivos. Como se vê, o termo é ambíguo e
seu significado é vago. Um esforço de sistematização moderno somente
poderia definir um significado principal.

 

Por outro lado, conforme Félix Guirand (Mitologia
General. Barcelona: Larousse, 1962, p. 369), a palavra Elfo tem, em
todas as línguas germânicas – assim como naquelas em que se adotou o
termo – um significado mais restrito do que já teve em outras épocas, e
serve para designar todo espírito ou demônio que está associado à vida
da Natureza e reside, segundo se acredita, nas águas, bosques e
montanhas, às vezes se demonstrando prestativo; às vezes maligno.
Costumava-se imaginar os elfos como mais bonitos e melhor formados do
que os humanos, se bem que de estatura um pouco menor. Teriam uma
organização social como a dos homens, e, como estes, obedeceriam à
autoridade de um rei, a quem prestavam juramento de fidelidade e
obediência. Os Elfos seriam seres sutis e sábios ao ponto de conhecer o
futuro.

 

Segundo o Dicionário das Mitologias Européias e
Orientais, de Spalding (Editora Cultrix, 1973, p. 52), chamavam-se
Elfos, no uso antigo das línguas germânicas, seres associados à
natureza e que o povo julgava residir nas águas, nos bosques, nas
montanhas e, mesmo, no seio das flores. Suas relações com os homens são
diversamente descritas: A poesia inglesa da Idade Média os mostra como
criaturas aéreas e luminosas, cheias de doçura e bondade; já os alemães
da Germânia deles tinham receio, bem como o povo do extremo norte
(Dinamarca), pois acreditavam que eles podiam se irritar; às vezes sem
motivo ou causa aparente. Os Elfos viviam em sociedade, como os homens;
possuíam reis, que eram sumamente respeitados; amavam o jogo e a dança;
comumente passavam a noite inteira em bailados infatigáveis que só
cessavam com o canto do galo, pois temiam a luz e evitavam ser vistos
por humanos.

 

O trabalho de Tolkien seguiu as leves pegadas
deixadas há séculos no chão orvalhado dos bosques ingleses pelas danças
noturnas de um povo fugidio, os elfos. O que principiou como um hobby e
depois converteu-se num esforço sobre-humano de sistematização do
folclore, equivalente aos de um Sturluson ou um Bédier, acabou por
transforma-se em um genial exercício de criatividade (como o de
Lobato), que transcendeu o academicismo e virou arte.

 

Os ecos viraram gnomos e os gnomos viraram elfos,
e assim os ecos ganharam vida, chegando até nós como um monumento ao
espírito europeu ancestral, reescrito pelas mãos de um homem do século
XX.
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