Kalevala

Escrito por Fábio Bettega
Introdução

A primeira edição do Kalevala foi publicada
em 1835. A obra nasceu como resultado do trabalho realizado por Elias
Lönnrot, sendo composta pelos poemas populares que ele recolheu. A
poesia lírica antiga, com um metro singular de quatro troqueus, baseado
nas relações da acentuação das palavras, vivia na tradição dos povos de
língua fino-ugriana da região do Báltico, há mais de dois milênios.

 
 
 
Quando o Kalevala foi publicado, a Finlândia era,
desde há um quarto de século, um Grão-Ducado da Rússia, tendo antes
disso pertencido ao Reino da Suécia até 1809.

O Kalevala foi
um ponto de viragem na evolução da cultura de língua finlandesa, tendo
também despertado interesse fora do país. Entre os finlandeses, a obra
fez nascer a confiança nas possibilidades da sua própria língua e
cultura e, além fronteiras, levou um pequeno povo desconhecido à
consciência dos outros povos europeus, ganhando assim o estatuto de
epopeia nacional.

Lönnrot, ajudado por alguns amigos,
continuou o trabalho de recolha da poesia popular, conseguindo material
novo em grande abundância. Lönnrot usou este material para publicar a
segunda, mais alargada versão do Kalevala em 1849. É esta nova versão
que, desde então, tem sido lida na Finlândia e servido de base à grande
maioria das traduções para outros idiomas.

Canções do Kalevala

Como era essa poesia popular antiga que Lönnrot encontrou nas suas
viagens? O que é que contam esses cantares? Quando nasceram? Quanto
tempo existiram? Supõe-se que há cerca de 2500 – 3000 anos houve uma
profunda transformação cultural no seio dos povos fineses que viviam
junto ao Golfo da Finlândia. Dessa transformação nasceu uma forma
particular de cantar, caracterizada pela aliteração inicial e repetição
do verso, assim como pela ausência de estrofes. Os versos obedeciam a
um metro singular de quatro troqueus, que passou a ser conhecido como o
metro do Kalevala. Quanto ao ritmo, os versos musicais eram na sua
maioria em quatro ou cinco troqueus, e as melodias variavam numa escala
de cinco notas.

A poesia popular antiga não é um conjunto de
poemas criados numa só época, mas sim uma formação estratificada com
materiais de várias idades. O material mais antigo são os poemas
míticos, que contam lendas antigas do tempo da criação, do nascimento
do mundo e da cultura humana.

A personagem principal dos
poemas épicos é muitas vezes um cantor poderoso, um xamã, um mago, o
líder espiritual da sua tribo, que viaja ao mundo dos mortos em busca
de conhecimentos e respostas. Os heróis cantados nos poemas também têm
as suas aventuras numa terra ultramarina, na Pohjola do Kalevala [a
Terra do Norte], em viagens cujo objectivo podia ser um pedido de
casamento, uma pilhagem ou simplesmente uma fuga.

Os poemas
líricos interpretavam os sentimentos da alma. A poesia ritual
concentrava-se principalmente nas bodas e na matança do urso. Os
feitiços ou encantamentos, no metro do Kalevala, eram uma magia de
palavras que fazia parte da vida quotidiana.

Esta antiga
tradição de cantar manteve-se viva em toda a Finlândia até ao século
XVI. Depois da reforma, a igreja luterana proibiu o uso dos cantares,
caracterizando toda essa anciã tradição como pagã. Ao mesmo tempo as
novas correntes musicais provenientes do ocidente ganharam força na
Finlândia.

Pouco a pouco, a antiga tradição começou a
desaparecer, primeiro na parte ocidental da Finlândia e mais tarde no
resto do país. Alguns poemas e cantares já tinham sido recolhidos no
século XVII, mas o trabalho essencial de recolha só foi feito no século
XIX.

Nas regiões da província de Viena, na Carélia Oriental, esta antiga tradição conseguiu sobreviver até aos nossos dias.

A Cultura Finlandesa nos Princípios do Século XIX

Durante o domínio sueco [1500-1809] a língua finlandesa tinha muito
pouca importância. Nas escolas e na universidade usava-se o sueco e o
latim, sendo o sueco a língua usada na administração pública. O
finlandês era falado apenas pelo povo, e os únicos textos publicados em
finlandês eram leis e literatura religiosa. Contudo, já desde finais do
século XVIII, havia na Universidade de Turku um pequeno grupo
familiarizado com a ideologia do romantismo europeu. Os seus membros
compreenderam que a língua vernácula e a recolha e publicação da poesia
popular tinham uma importância vital para o desenvolvimento da cultura
nacional.

Sob o domínio russo, a Finlândia possuía uma
organização política e administrativa particular. Situada entre a
Suécia e a Rússia, tinha que assegurar a paz na fronteira noroeste do
novo amo. Por outro lado, graças ao seu estatuto autonómico, os
finlandeses podiam considerar-se como uma nação separada.

Nasceram novos laços culturais com São Petersburgo, mas não se fecharam
as fronteiras à influência e intercambio cultural com a Suécia. Os
ideais do romantismo ganharam força e influência, começando então a
recolha, o estudo e a publicação da poesia popular.

Väinämöinen, personagem principal dos poemas, transformou-se no símbolo
do renascimento de uma identidade nacional. O herói que cantava e
tocava o "kantele", a cítara finlandesa, foi comparado a Orfeu que,
como Väinämöinen, conseguia encantar os ouvintes com a sua música
maravilhosa.

Os jovens românticos de Turku perceberam que só
numa cultura de características e língua próprias, um pequeno povo pode
encontrar os valores e recursos espirituais necessários para o seu
desenvolvimento. Foi também nesse mesmo espírito romântico que nasceram
as primeiras obras de arte nacionais.

Tolkien e o Kalevala

Foi por volta de 1910 que Tolkien descobriu o kalevala. Pouco depois
escreveu elogiosamente sobre "esse estranho povo e esses novos deuses,
esssa raça de heróis indissimulados, simplórios e escamdalosos",
acrescentando que "quanto mais leio, mais me sinto em casa e me
deleito". Descobrira o Kalevala na edição Everyman, traduzido por W. H.
Kirby, e decidiu encontrar uma edição no original finland6es assim que
fosse possível.

Por volta das férias de 1912 descobriu o
Finlandês. Desde que lera a tradução inglesa do kalevala, esperava
adquirir algum conhecimento dessa língua, e na biblioteca do Exeter
College havia uma gramática finlandesa. Com a sua ajuda, começou a dar
os primeiros passos no aprendizado da língua original dos poemas.
Tolkien mais tarde diria: "Foi como descobrir uma adega cheia de
garrafas de um vinho espantoso, de qualidade e sabor nunca provados
antes. Fiquei completamente inebriado."

Nunca chegou a
aprender o suficiente para ler mais do que uma parte do Kalavela
original, mas o efeito deste aprendizado sobre o seu processo de
invenção de línguas foi fundamental e notável. Abandonou o neogótico e
começou a criar uma língua particular intensamente influenciada pelo
finlandês, língua que mais tarde surgiria em suas histórias como
"Quenya" ou alto-élfico. Ainda demoraria muitos anos para acontecer;
mas em sua mente já germinava um princípio do que estava por vir. Leu
um trabalho sobre o kalevala diante de uma sociedade do colégio, e nele
começou a falar da importância do tipo de mitologia encontrado nos
poemas finlandeses. "Estas baladas mitológicas", disse, "estão cheias
daquele substrato muito primitivo que a literatura da Europa como um
todo vem mutilando e reduzindo continuamente por muitos séculos, com
diferentes graus de eficiência e rapidez entre diferentes povos, com
diferentes graus de efici6encia e rapidez entre diferentes povos." E
acrescentou: "Gostaria que nos houvesse restado mais – de algo
semelhante que pertencesse aos ingleses." Uma idéia excitante; e talvez
já pensasse em criar ele mesmo essa mitologia para a Inglaterra.

Ao final do verão de 1914, estava treinando com o exército, e sentiu-se
tentado a escrever. Seu entusiasmo por William Morris dera-lhe a idéia
de dar a uma das histórias do kalevala finland6es a forma de um romance
em verso e prosa no estilo de Morris. Escolheu a história de Kullervo,
um jovem infeliz que comete incesto sem o saber e, quando descobre,
lança-se sobre sua própria espada [Túrin Turambar?]. Tolkien começou a
trabalhar na "História de Kullervo", que, apesar de ser pouco mais que
um pastiche de Morris, foi sua primeira tentativa de compor uma lenda
em verso e prosa. Deixou-a inacabada.

Conteúdo do Kalevala

Cantos 1-2
Ilmatar [a Deusa do Ar] desce à água e torna-se mãe das águas. Uma
negrinha põe ovos no seu joelho. Os ovos partem-se e dos pedaços
forma-se o mundo. Väinämöinen nasce da mãe das águas. Sampsa
Pellervoinen semeia árvores. Uma árvore cresce tanto que esconde o Sol
e a Lua. Do mar emerge um pequeno homem que abate o carvalho. O Sol e a
Lua podem brilhar novamente.

3-4 Joukahainen desafia
Väinämöinen para um concurso de sabedoria e perde. Väinämöinen fá-lo
afundar-se num pântano com o seu canto mágico. Para salvar a vida,
Joukahainen promete a mão de sua irmã Aino a Väinämöinen. Aino
suicida-se lançando-se ao mar.

5-7 Väinämöinen procura
Aino no mar, consegue apanhá-la na forma de um peixe, mas perde-a.
Decide então ir pedir em casamento a donzela de Pohjola. Joukahainen,
sedento de vingança, atira uma flecha ao cavalo de Väinämöinen.
Väinämöinen cai ao mar. Uma águia salva-o e leva-o para a costa de
Pohjola. A velha de Pohjola, Louhi, cuida dele. Para poder voltar a
casa, Väinämöinen promete dar-lhe o “sampo" [engenho mágico] feito pelo
ferreiro Ilmarinen. A donzela de Pohjola é prometida ao ferreiro como
recompensa.

8-9 Na sua viagem para casa Väinämöinen vê
a donzela de Pohjola e pede-a em casamento. Como condição de casamento
a moça manda Väinämöinen fazer provas sobrenaturais. Ao construir um
barco Väinämöinen fere-se no joelho com o machado. Ukko, o deus
supremo, usa os seus poderes para estancar o sangue.

10
Väinämöinen, contra a vontade de Ilmarinen, usa os seus poderes mágicos
e envia-o para Pohjola. Ilmarinen forja o “sampo�? [engenho mágico]. A
velha Louhi esconde o engenho num penhasco. Ilmarinen vê-se obrigado a
regressar sem a noiva prometida.

11-12 Lemminkäinen
parte para Saari [ilha] à procura de mulher, brinca com as donzelas da
ilha e rouba Kyllikki. Lemminkäinen abandona Kyllikki e vai pedir em
casamento a donzela de Pohjola. Com o seu canto, faz as gentes de
Pohjola sair da casa, mas não encanta o pastor de gado.

13-15
Lemminkäinen pede em casamento a filha de Louhi, que exige como prémio
primeiro o alce de Hiisi [alce do diabo], depois o seu cavalo castrado
com boca de fogo e por fim o cisne do rio de Tuonela [terra dos
mortos]. O pastor, sedento de vingança, mata Lemminkäinen e deita-o ao
rio de Tuonela. A mãe sabe da morte do filho e parte à sua procura. Com
um ancinho, apanha os pedaços do filho do rio, junta-os, e ressuscita-o.

16-17
Väinämöinen começa a construir um barco e vai a Tuonela pedir as
palavras mágicas que lhe faltam para o acabar mas não as consegue.
Väinämöinen vai buscar as palavras que faltam à barriga de um mago
morto, Antero Vipunen, e acaba o barco.

18-19
Väinämöinen parte no seu barco para ir pedir a donzela de Pohjola em
casamento. Ilmarinen também vai pedir a mão da donzela, que escolhe o
criador do “sampo�? [engenho mágico]. Ilmarinen passa as três provas
sobrenaturais: lavra um campo cheio de víboras, caça o urso de Tuonela
[terra dos mortos] e o lobo de Manala [as entranhas da Terra] e
finalmente pesca um lúcio enorme do rio de Tuonela. Louhi promete a sua
filha a Ilmarinen.

20-25 Preparam-se as bodas em
Pohjola. Todos são convidados, excepto Lemminkäinen. O noivo e os
convidados do noivo chegam a Pohjola. É-lhes oferecido de comer e de
beber. Väinämöinen entretém os convidados com as suas canções. A noiva
recebe instruções para o casamento, o noivo também. A noiva despede-se
da família e parte com Ilmarinen rumo a Kalevala. Chegam à casa de
Ilmarinen, onde os convidados voltam a receber de comer e de beber.
Väinämöinen canta uma canção de agradecimento.

26-27
Lemminkäinen vai à boda de Pohjola sem ser convidado e exige que lhe
seja dado de comer e de beber. É-lhe oferecida uma caneca de cerveja
cheia de víboras. Depois de uma luta com canções e com espadas,
Lemminkäinen mata o dono da casa.

28-30 Lemminkäinen
foge do povo de Pohjola que se prepara para a guerra. Esconde-se em
Saari [ilha] onde fica a viver com as donzelas da ilha, até ser
obrigado a fugir dos homens ciumentos de Saari. Lemminkäinen encontra a
sua casa queimada e a sua mãe numa cabana no meio da floresta. Parte
para Pohjola em busca de vingança, mas é obrigado a regressar a casa.

31-34
Untamo e Kalervo zangam-se e da família de Kalervo fica um filho,
Kullervo, que com os seus dotes sobrenaturais estraga todos os
trabalhos que lhe são entregues. Untamo vende o rapaz como escravo a
Ilmarinen. A mulher de Ilmarinen manda o rapaz pastar o gado e, por
maldade, esconde uma pedra no pão do pastor. Kullervo estraga a sua
faca na pedra e, para se vingar, arremessa as vacas ao pântano e leva
feras como gado para a casa. Quando a mulher de Ilmarinen começa a
ordenhar as vacas, as feras matam-na. Kullervo foge e encontra os pais
na floresta, mas ouve que a irmã desapareceu.

35-36 O
pai manda Kullervo a pagar os impostos. Na viagem de regresso, sem
saber, seduz a própria irmã. Ao saber a verdade a irmã suicida-se nos
rápidos. Kullervo parte para uma expedição de vingança. Depois de matar
as gentes de Untamo, regressa a casa, mas encontra toda a família
morta. Kullervo suicida-se.

37 Ilmarinen está de luto
pela esposa e forja uma mulher de ouro para si. Mas a mulher de ouro é
fria. Väinämöinen avisa a juventude para que não venerem o ouro.

38
Ilmarinen é rejeitado pela filha mais nova de Pohjola e rapta-a. A moça
aborrece Ilmarinen que por fim a transforma em gaivota com o seu canto
mágico. llmarinen conta a Väinämöinen a riqueza que o “sampo�? [engenho
mágico] traz a Pohjola.

39-41 Väinämöinen, Ilmarinen e
Lemminkäinen partem para ir roubar o “sampo“ [engenho mágico] a
Pohjola. No caminho o barco encalha no dorso de um enorme lúcio.
Väinämöinen mata o lúcio e constrói uma citara finlandesa [kantele] do
seu maxilar. Mais ninguém a consegue tocar, mas Väinämöinen encanta
todo o mundo com a sua música.

42-43 Em Pohjola
Väinämöinen adormece toda a gente com a sua música e consegue levar o
“sampo�? [engenho mágico] para o barco. As gentes de Pohjola acordam e a
velha Louhi deita obstáculos no caminho dos que furtaram o engenho. Os
expedicionários conseguem fugir, mas a citara cai ao mar. A velha Louhi
persegue-os transformando-se numa enorme águia. Durante a luta o
engenho mágico parte-se e cai ao mar. Dos pedaços, uns transformam-se
em tesouros que ficam no fundo do mar, outros dão à costa na Finlândia,
enriquecendo o país. A velha Louhi fica com a tampa do “sampo�? e uma
vida de pobreza.

44 Väinämöinen procura a sua citara no
fundo do mar, sem êxito. Em seu lugar constrói outra, de vidoeiro, e
volta a encantar o mundo inteiro com a sua música.

45-46
A velha Louhi espalha doenças para destruir o povo de Kalevala, mas
Väinämöinen cura todas as enfermidades. Louhi manda um urso atacar o
gado, mas Väinämöinen abate a fera. Festeja-se a matança do urso.

47-48
A velha de Pohjola esconde as luzes do céu e rouba o fogo. Ukko, o deus
supremo, lança o fogo para criar uma nova lua e um novo sol, mas as
chamas caem na barriga de um grande peixe. Väinämöinen, ajudado por
Ilmarinen, pesca o peixe e põe o fogo ao serviço das pessoas.

49
Ilmarinen forja um novo sol e uma nova lua, mas os astros não brilham.
Depois de combater as gentes de Pohjola, Väinämöinen regressa e
encomenda a Ilmarinen as chaves que podem libertar o Sol e a Lua da
montanha de Pohjola. Enquanto Ilmarinen forja as chaves, Louhi deixa
que as luzes voltem ao céu.

50 Marjatta fica grávida de
uma baga de arando. Nasce um menino na floresta, mas desaparece logo,
até que é encontrado num pântano. Väinämöinen condena à morte o rapaz
sem pai, mas ele levanta-se protestando contra a sentença. O rapaz é
baptizado rei da Carélia. Väinämöinen desaparece num barco de cobre,
profetizando que ainda lhe hão-de pedir que traga um novo “sampo�?
[engenho mágico], que faça brilhar um novo Sol e que toque uma nova
música.

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