Tolkien x Potter

Escrito por Fábio Bettega
Dizem que a marca “Chiclets” foi inventada antes do produto. Um
imaginativo cidadão americano criou esse nome, que nada significava, e
o afixou lá no Times Square, em Nova York. A palavra ficou brilhando,
chamando a atenção, todo mundo querendo saber o que era aquela coisa
misteriosa. No meio de tanta curiosidade, um outro cidadão descobriu o
dono daquela palavra, perguntou o que ela significava. O proprietário
disse que era uma palavra ainda sem conteúdo e que estava à venda. O
outro comprou-a imediatamente e colou-a a um produto que acabara de
inventar — a goma de mascar. E aí ocorreu uma magia que passa pela
matemática: menos com menos dá mais. Ou seja: um nome vazio mais um
produto desnecessário fizeram a fortuna de muitos.
 
 
 
Seria um exagero dizer que essa história tem algo
a ver com o fenômeno “Harry Potter”, o livro de J.K.Rowling que já
vendeu mais de 50 milhões de livros. Mas, por outro lado, a parábola
tem algo a nos dizer sobre as relações entre o marketing e produção
simbólica. Não se trata aqui de fazer a defesa ou condenação deste ou
de outros tipos de best-sellers. Trata-se de ir entendendo o fenômeno
que os envolve. Nem se trata, friso logo, de condenar as operações de
marketing, mas de conscientizar-nos delas criticamente.

A formidável campanha internacional de marketing em torno de “Harry
Potter” fez os lucros da editora inglesa Bloomsbury aumentarem 66%. O
filme sobre o herói infantil está orçado em US$ l30 milhões e 40 mil
adolescentes se apresentaram como candidatos à personificação de Harry.
Na Internet existem 150 sites dedicados a esse fenômeno. Qualquer
coisinha sobre Harry vira notícia que chega às aldeias no deserto ou na
caatinga. E não é por acaso.

Mas é bom que se saiba que, comparado com o sucesso de ” O senhor dos
anéis” de J.R.Tolkien, isto não é nada. Tolkien já vendeu 200 milhões
de exemplares da obra iniciada em 1937 com “Bilbo, o Hobbit”, que teve
seu ápice com a trilogia publicada entre 1954-1955 e foi continuada com
uma meia dúzia de livros de reinvenção da magia dos contos de fada.

Muitos leitores brasileiros estão começando a entrar em contato com a
obra de Tolkien graças a essa edição recente da editora Martins Fontes.
Por isto, é interessante divulgar que a trilogia “O senhor dos anéis”
foi considerada, em 1997, numa enquete com 26 mil pessoas feita por uma
cadeia de livrarias na Europa, como o “o livro do século”. Não teve nem
para Joyce, nem para Proust, muito menos para Thomas Mann , Kafka e
Borges. Tolkien ganhou disparado. E um dos muitos enigmas é este: é uma
obra não apenas longa, mas complexa. Comparada a ela, o “Harry Potter”
é uma ligeira história de patinho feio.

Se a senhora J.K. Rowling, autora de “Harry Potter”, era professora
primária, J.R.Tolkien era professor de literatura medieval e
especialista em inglês antigo. Tão fissurado nisto que disse que a
literatura ocidental entrou em decadência a partir de 1100. É uma bela
[e discutível] afirmação feita por quem tem autoridade e que deixa
embaraçados todos os pós-moderninhos, que talvez não passem de
pós-decadentezinhos. De qualquer maneira é interessante constatar que,
em tempos de pós-modernidade, o grande autor é um pós-antigo.

Mas admitamos que aquela seja uma frase de efeito. Além de Nelson
Rodrigues, até autores anglo-saxões têm direito a frases que são mais
estimulantes que verdadeiras. E no caso da obra de Tolkien há um dado
curioso: ele inventou um idioma próprio para seus personagens, criou
outro calendário, desenhou complexas árvores genealógicas para os
tipos, desenhou mapas e territórios, enfim, reinventou o mundo e a
história numa fantástica narrativa dos conflitos do bem contra o mal.

Enquanto vários críticos como o americano Harold Bloom, acusam “Harry
Potter” de ser uma obra rasa, cheia de lugares comuns, cuja leitura não
conduz senão a romances de Stephen King, que ele também detesta, os
livros de Tolkien, que já mereceram várias teses universitárias, acaba
de ser analisado pelo professor de literatura medieval Tom Shipley [
“J.R. Tolkien, Author of the century”], que compara Tolkien a Eliot e
Joyce, para demonstrar que Tolkien lhes é superior.

Voltemos ao início de nossas palavras. Retomemos a questão do marketing
. Diferentemente do pastiche pós-moderno- “Harry Potter” — que caiu
logo nos braços da mídia e passou a ser acionado por uma planetária
máquina de promoção – a obra neogótica de Tolkien, bem mais complexa,
foi crescendo como uma espiral de anéis até firmar-se como um
instigante elo entre o ontem e o hoje, entre a qualidade e a
quantidade.

Temos que rever nossas relações com o fenômeno da quantidade e da
qualidade. Quantidade, em si, não é defeito nem virtude. Não se pode
acusar alguém de vender muito, da mesma maneira que vender pouco não é
sinônimo de qualidade.

Também não se pode mais ignorar a presença do marketing. Marketing
sempre houve. É que antes ele não era consciente de si mesmo. Quando a
academia consagrava só os “clássicos” estava canonizando, classificando
e excluindo. Era o marketing do sistema, da elite, que consagrava e
impulsionava tanto Homero quanto Machado de Assis. O que ocorre hoje é
que o marketing está em outras mãos. Interessado na quantidade, o
mercado tende a marginalizar a qualidade, a menos que essa qualidade
tenha se imposto insidiosamente a ponto de o mercado ver nela também
muitas oportunidades.

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