Eu Acredito em Duendes!!

Escrito por Fábio Bettega
Quando li O Hobbit pela primeira vez (numa velha
edição de bolso publicada em 1973 pela Ballantine Books, NY), poderia
jurar que vi um duende.
 
 
 

Não. Não apenas um: um monte deles, na verdade.

 

Uma porção de duendes simplesmente brotou da pedra lá pelo capítulo
Over hill and under hill, deixando praticamente sem reação Bilbo e a
comitiva de anões.

 

“Out jumped the goblins, big goblins, great ugly-looking goblins, lots of goblins, before you could say rocks and blocks”..

 

Sim, eram
duendes. Eles tinham uma cidade subterrânea, e aprisionaram Bilbo e
seus companheiros. Eram descritos como cruéis, malvados, pervertidos e
engenhosos. Eram habilidosos com túneis e mineração, embora
desorganizados e sujos. Gostavam muito de rodas, motores e explosões,
como também de não trabalhar com as mãos além do estritamente
necessário, não sendo – aliás – improvável que tivessem inventado
algumas das máquinas que desde então perturbaram o mundo, especialmente
os instrumentos criados para matar um grande número de pessoas de uma
só vez.

 

Foi nas
profundezas da cidade dos duendes sob as Montanhas Nevoentas que Bilbo
encontrou Gollum. Foi de lá que Bilbo escapou espetacularmente,
trazendo o Um Anel de volta para a superfície. No entanto, tempos
depois, quando reli o mesmo capítulo (Montanha acima, montanha
adentro), numa edição traduzida para o português (a segunda edição da
Martins Fontes, de 1998), os duendes haviam sumido. Em seu lugar…

 

“Da
fenda saltaram os orcs, grandes orcs, grandes e horríveis orcs, um
monte de orcs, antes que alguém pudesse dizer rocha e tocha”.

 

Orcs?!? E onde foram parar os duendes?

 

Se não se pode descobrir para onde foram, uma ligeira consulta ao
Letters of J. R. R. Tolkien nos dá ao menos uma boa noção a respeito de
onde eles vieram:

 

Conforme
as cartas 131, 144 e 151, o termo “goblin” (duende) foi emprestado por
Tolkien da tradição européia (especialmente dos duendes das histórias
de George MacDonald), de onde também, conforme confessa na carta 144,
teria vindo a própria idéia de um povo (ou raça) com tais
características.

 

Há
que se reconhecer que, no contexto da obra, conforme Tolkien explica na
carta 151, a palavra “duende” foi usada em O Hobbit (que, dentro do
legendarium, é um livro escrito por Bilbo) como uma tradução na Língua
Geral (tal como usada pelos hobbits) de um termo em Sindarin: “orc”
(plural “yrch”).

 

Mas
a riqueza da questão não se esgota aí. Essa é apenas a explicação
imaginada pelo autor para justificar, dentro da obra, uma variação
terminológica (duende/orc) que se explica (em última análise) fora
dela: Tolkien não convivia bem com a idéia de ter simplesmente
emprestado o termo duende das histórias tradicionais européias, sem
fazer modificações. Conforme justifica na carta 151, os duendes das
suas histórias já não eram “duendes”, tais como os das histórias
tradicionais européias. Tinham características próprias que os
diferenciavam até mesmo dos duendes de George MacDonald (embora ainda
fossem em muitos aspectos a eles assemelhados).

 

Como não eram simples duendes, passaram a ser… “orcs”.

 

Esse
novo termo (fruto do gosto pessoal do Professor) foi criado para
libertar os duendes de Tolkien do arcabouço lendário tradicional,
naturalmente relacionado aos “duendes” pelo imaginário europeu. Tolkien
chegou a cogitar (ainda na carta 151) que o mesmo artifício poderia ter
sido utilizado com proveito em relação ao termo “elfos”, cujo
significado ancestral e original embora suficientemente compatível com
as criaturas a que se refere o legendarium tolkieniano, havia sido
imperdoavelmente desfigurado por Sheakespeare.

 

Mas, voltando aos duendes… embora a explicação oficial dentro do
contexto da obra (carta 151) seja de que “duende” é tradução em Westron
da palavra “orc” (termo em Sindarin), uma pitoresca passagem de O
Senhor dos Anéis não permite que o exame do assunto se esgote
tranqüilamente:

 

No
capítulo “A Partida de Boromir” em “As Duas Torres”, Aragorn vasculha
uma repugnante pilha de cadáveres à procura de respostas. Em meio a
armas chamuscadas e membros incinerados de orcs derrotados pelos
cavaleiros de Rohan, Passolargo se depara com um estranho enigma:

 

 

“E
Aragon olhou para os mortos, e disse: РAqui esṭo muitos que ṇo ṣo
do povo de Mordor. Alguns são do Norte, das Montanhas Nevoentas, se é
que sei alguma coisa sobre orcs e suas espécies”.

 

Mais adiante, já no capítulo “Os Uruk-hai”, Pippin tem um vislumbre do que pode ser a chave para completar o quebra-cabeças.

 


“In the twilight he saw a large black Orc, probably Ugluk, standing
facing Grishnakh, a short crook-legged creature, very broad and with
long arms that hung almost to the ground. Round them were many smaller
goblins. Pippin supposed that these were the ones from the North. They
had drawn their knives and swords, but hesitated to attack Ugluk.”

 

Em português:

 

“No
crepúsculo, Pippin viu um orc negro e grande, provavelmente Úgluk, em
pé e encarando Grishnákh, uma criatura de pernas curtas e tortas, muito
entroncada e com longos braços que chegavam quase até o chão. Em volta
deles estavam muitos duendes menores. Pippin imaginou que estes eram os
do norte. Estavam empunhando facas e espadas, mas hesitavam em atacar
Úgluk”.

 

Mas, aqui também, a tradução brasileira infelizmente falhou. E continuou seguindo à risca o lema “eu atropelo duendes”.

 

Na quarta tiragem da primeira edição de O Senhor dos Anéis da Martins
Fontes (a edição brasileira que eu possuo), o termo “goblin” (duende),
que aparece em alguns lugares (inclusive o trecho transcrito acima),
foi sistematicamente (mal) traduzido como “orc”.

 

Grishnákh
é descrito várias vezes no texto original (na língua inglesa) de As
Duas Torres como um “goblin”. Mas para a edição brasileira, ele é
sempre um orc.

 

Se é verdade que, a rigor, um duende não deixa de ser um orc dentro da
lógica das histórias de Tolkien, mesmo assim não se pode dizer que a
simplificação foi inocente e inócua. Ela trouxe prejuízos à compreensão
do texto, e no mínimo, privou o púbico de um particular aspecto da
riqueza vocabular da obra original.

 

Seja
qual for a razão que impele os tradutores a suprimirem a distinção, a
sua obstinada caça aos duendes, infelizmente, ainda não acabou.
Tomou-se o cuidado de atropelar também uma das únicas ocorrências do
termo “goblin” na edição brasileira de “The Book of Unfinished Tales”.

 

Para
a edição brasileira de Contos Inacabados, o amigo feioso de Bill
Samambaia é “muito parecido com um orc”. Na versão original na língua
inglesa “He looks more than half like a goblin.”

 

Pelo que se vê, para os tradutores das obras de Tolkien no Brasil, orcs e duendes definitivamente são a mesma coisa.

 

Mas
se Aragorn de fato sabia alguma coisa sobre orcs e suas espécies,
Grishnákh e seus rapazes não eram simplesmente orcs. Eram duendes. Orcs
de uma particular espécie que vivia nas Montanhas Nevoentas.

 

Entre os tradutores e o Rei, eu fico ao lado do último.

 

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Kauê

Sim, não gostei nem um pouco dessa tradução brasileira, em O Hobbit que tenho, os goblins das cavernas são chamados de Orcs, mas já sabia que eram goblins, enfim, vai atrapalhar bastante os que ainda não leram e não sabem nem a diferença dos dois, e aí depois de ler (ou antes), ver o filme vai ficar aquele pensamento: “Que orcs são esses?”

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