Todos os cavalos dos reis e todos os homens do rei

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Escrito por Cassiano Ricardo Dalberto

“Osanwë-Kenta” é um estudo interessante, porém confuso. Christopher Tolkien acredita que ele foi composto ao mesmo tempo que “Quendi e Eldar” (cerca de 1959), cuja maior parte foi publicada no War of the Jewels (N. do T.: Guerra das Jóias, um dos HoME). “Quendi e Eldar” é uma coleção de pequenos estudos que provêm o desenvolvimento etimológico de certas palavras que os elfos usavam para nomear a si mesmo e outros povos, ou para se referir a indivíduos de certas maneiras.

O primeiro texto é carregado com notas históricas e anedotas que revelam muito mais sobre a história élfica que algumas passagens do Silmarillion. Infelizmente, o material do “Quendi e Eldar” não é compatível com O Silmarillion. E apesar de sabermos que as decisões editoriais de Christopher Tolkien impactaram o texto do Silmarillion consideravelmente, as discrepâncias entre esses dois trabalhos vão bem além dos possíveis erros editoriais.

“Quendi e Eldar” é intitulado “Origens e significados do élfico referindo-se aos elfos e suas variedades. Con apêndices dos seus nomes para outros Incarnados.” “Osanwë-Kenta” é intitulado “Investigação sobre a Comunicação de Pensamento”. E se o assunto estipulado desses dois trabalhos não é diferente o bastante, um terceiro corpo de escritos também está associado à eles: um estudo sobre a origem dos Orcs, publicado no Morgoth’s Ring (HoME), com uma introdução na página 415 que menciona “Quendi e Eldar” e “Osanwë-Kenta”.

Christopher publicou o estudo de Orcs primeiramente como parte da coleção de escritos “Myths Transformed”, no qual a cosmologia da Terra-Média foi gradualmente expandida e revisava para excluir algumas das mais velhas tradições datadas de 1916-17.

A conexão entre “Orcs” e “Quendi e Eldar” fica na entrada do Apêndice C do “Quendi e Eldar”, onde Tolkien escreve:

“…Os Orcs das últimas guerras, depois da fuga de Melkor-Morgoth e seu retorno à Terra-Média, não eram espíritos ou fantasmas, mas sim criaturas vivas, com capacidade de fala, de manufatura e organização, ou pelo menos capazes de aprender tais coisas de seus mestres. Eles se multiplicavam rapidamente sempre que não eram perturbados. É impossível, como a consideração da origem final dessa raça deixa claro, que os Quendi tenham encontrado qualquer raça ou tribo de Orcs, antes de serem achados por Orome e a separação dos Eldar e Avari.”

Christopher escreve: “Sem dúvida meu pai perdeu o controle das palavras em ´É impossível, como a consideração da origem final dessa raça deixa claro…´ para escrever aquele ´consideração´…” E este é o estudo sobre Orcs, quando Christopher colocou no Morgoth’s Ring o que deve ser um dos mais confusos e debilitantes preâmbulos da história da escolaridade literária.

Morgoth’s Ring foi publicado em 1993, e o War of the Jewels veio em 1994. Um ano depois de ler essa introdução ao estudo dos Orcs, finalmente nos permitem ver o trabalho em quase toda sua plenitude. Porém, não o seria até Vinyar Tengwar de Julho de 1998 (número 39) ser publicado, quando finalmente seríamos introduzidos à uma parte substancial do apêndice D do “Quendi e Eldar”, que Christopher tinha omitido da publicação por “falta de espaço”.

Bem, ninguém pode discutir muito com “falta de espaço”. Muitas pessoas esperaram mais de 40 anos para ver como os reais apêndices do Senhor dos Anéis pareciam, graças à “falta de espaço” que forçaram J.R.R. Tolkien a diminuir o material para até metade do conteúdo original. Mas a “falta de espaço” não deixou a coleção “Quendi e Eldar” num estado incompleto e desgrenhado. Porque, você verá, outra parte do “Osanwë-kenta” foi publicado no Vinyar Tengwar de Julho de 2000 (Número 41). As “notas etimológicas no Osanwë-Kenta” eram desconhecidas à Carl Hostetter quando ele publicou “Osanwë-kenta” numa antiga edição do VT.

A história inteira parece com isso:

Perto do ano 1959, J.R.R. Tolkien colocou de lado seus esforços n´O Silmarillion para dar a si mesmo um pouco de história. Numa entrevista à televisão datada da metade dos anos 60, Tolkien disse que ele desgostava da história se não fosse uma história das palavras. Palavras dizem muito sobre as pessoas que as usavam, e ele gostava de explorar tais assuntos. “Quendi e Eldar” é então uma aventura na história pelas palavras. As palavras sozinhas significam pouco a menos que tivessem uma história acompanhando, então Tolkien criou essa história.

Estudando as raízes das palavras élficas para “povos” (e palavras correlatas), Tolkien descobriu de onde as três famílias vieram, e daí ele aprendeu quem eram os pais elfos. Pelo caminho ele notou que os elfos de Cuivienen devem ter encontrado alguns tipos de proto-orcs mas não os verdadeiros orcs das guerras, e ele tinha que descobrir de onde esses orcs vieram para entender porque isso deveria ser.

Mas à medida que ele ia documentando a história da linguagem, seu uso e desenvolvimento, Tolkien não podia deixar de falar sobre a língua e de como os Noldor a estudava. Eles estudavam sua própria língua e o Valarin (a língua de Valinor), assim como o dialeto de Quenya falado pelos Teleri de Alqualonde e o que falavam os Vanyar. O Silmarillion nota que a língua dos Teleri mudou durante sua jornada em Tol Eressëa, e foi sem dúvida essa velha tradição que (em parte) inspirou Tolkien a devanear sobre os obscuros caminhos da história da linguística élfica.

Mas como o “Osanwë-kenta” entra nisso?

A conexão parece ser o evasivo Pengolodh, que aparece aqui e ali nos HoME. Pengolodh era um senhor da tradição Noldorin, um dos Lambengolmor (Conhecedores das Línguas). Ele era um elfo do povo de Turgon em Gondolin, e tinha uma filiagem mista, Noldor e Sindar. Pengolodh sobreviveu à queda de Gondolin e (presumivelmente) vagou com o grupo de exilados do bando de Tuor e Idril. Ele chegou em Eregion na Segunda Era, e eventualmente fugiu da Terra-Média quando aquele reino foi destruído. Pengolodh era o último membro sobrevivente dos Lambengolmor quando navegou através do Mar.

Osanwë-kenta abre com o seguinte parágrafo:

“No fim do Lammas Pengolodh discute brevemente a transmissão de pensamento (sanwë-latya “though-opening”), fazendo várias asserções sobre ele, que evidentemente são baseadas em teorias e observações dos Eldar, que em algum lugar eram dissertadas longamente. Eles estão preocupados primeiramente com os Eldar e os Valar (incluindo os Maiar nessa ordem). Homens não são especialmente considerados, exceto no caso de estarem no mesmo nível dos Incarnados (Mirroanwi). Deles Pengolodh diz apenas: “Homens tem a mesma faculdade dos Quendi, mas são mais fracos graças à força do hröa, sobre o qual a maioria dos homens tem pequeno controle.”

“Osanwë-kenta” é apresentado como o trabalho de um autor inominado – provavelmente Bilbo Bolseiro, apesar de Carl Hostetter notar “é… tentador identificar esse redator, como aquele do ´Quendi e Eldar´, como Ælfwine, o marinheiro anglo-saxão que foi o tradutor e comentador de outros trabalhos de Pengolodh, tais como o Quenta Silmarillion (LR: 201, 203-4, 275 fn) e, notavelmente, Lhammas B (cf. LR:167)”.

Porém, em 1959 Ælfwine tinha desaparecido da mitologia e todas as traduções confiáveis do élfico foram atribuídas a Bilbo (o autor oginial d´O Livro Vermelho do Marco Ocidental) e subsequentes escolados, incluindo Merry, possivelmente um ou mais Tuks, e ao menos um escolado gondoriano: Findegil, o escriba do rei, que fez a cópia do Livro do Thain, que Tolkien alega ser sua fonte para o SdA. Tolkien valida o Livro do Thain como a autoridade suprema em muitas coisas salvo as histórias de Bilbo e Frodo (no prólogo do SdA):

“O Livro do Thain foi então a primeira cópia feita do Livro Vermelho e continha muito que tinha sido omitido ou perdido. Em Minas Tirith ele receber anotações, e muitas correções, especialmente nomes, palavras, e citações nas línguas élficas; e ali lhe foi adicionado uma versão abreviada do Conto de Aragorn e Arwen, fora do conto da Guerra. O conto inteiro é dito ter sido escrito por Barahir, neto de Faramir, algum tempo depois da morte do Rei. Mas a importância maior da cópia de Findegil era que ela continha todo o trabalho do Bilbo em “Traduções do élfico”. Esses três volumes eram um trabalho de grande perícia e conhecimento, no qual, entre 1403 e 1418, ele usou todas as fontes disponíveis para ele, vivas e escritas. Mas desde que eles foram usados por Frodo, quase totalmente preocupado com os Dias Antigos, nada mais é dito dele aqui.”

É possível que o narrador inominado fosse Findegil, ou outro escolástico gondoriano (de fato, foi meu primeiro impulso sugerir isso), mas Bilbo também conquistou um status de sábio nas palavras “Esses três volumes eram um trabalho de grande perícia e aprendizado…”. Quem, devemos perguntar, notou-os serem grandes trabalhos? Talvez a pesquisa de Bilbo só fora totalmente apreciada em Gondor, e provavelmente somente depois que Peregrin retraiu-se para Gondor em FA 64, levando o Livro do Thain com ele (à pedido de Elessar)

Alguns dos comentários dos apêndices do SdA estão entre aspas, que é a maneira de Tolkien de sugerir que está citando diretamente do Livro Vermelho. Por exemplo:

“Nosso rei, nós o chamamos; e quando ele vem para o norte e fica um tempo perto do lago Evendim, então todos do Condado ficam felizes. Mas ele não entra nessa terra, e se prende à lei que criou, que ninguém do Povo Grande deve passar essas bordas. Mas ele cavalga frequentemente com alguns amigos até a Grande Ponte, e lá ele saúda seus amigos, e outros que quiserem conhecê-lo; e alguns cavalgam com eles e ficam em sua casa pelo tempo que desejarem. O Thain Peregrin esteve ali muitas vezes, assim como o Mestre e Prefeito Samwise. Sua filha Elanor a Bela é uma das donzelas da Rainha Vespertina.”

Essa passagem deveria ter sido escrita entre os anos FA 15 e 30, os anos nos quais Elanor virou uma donzela da rainha e casou-se com Fastred de Greenholm. A língua não é nada comparada com os comentários do “Osanwë-kenta” e outros trabalhos sobre os Dias Antigos. Mas não pode ser o comentário de Bilbo porque ele não estava no Condado durante essa época. O “Traduções do Élfico” do Bilbo representa então um espaço em branco que Tolkien teve que preencher com o tempo. “Quendi e Eldar”, “Osanwë-kenta” e “Orcs” (para não mencionar o próprio Silmarillion) são todos partes de trabalhos antigos que Bilbo traduziu e preservou.

Bilbo era um mestre linguista, e sua mão deve ter sofrido à cada história que gerou o Livro Vermelho. Ele sabia Quenya e Sindarin, e deve ter aprendido bastante com os elfos de Valfenda, alguns dos quais se dúvida conheciam Pengolodh. De fato, pode ser que o povo de Elrond, sendo em maioria Noldor, eram mais familiares com Pengolodh do que outros senhores élficos, dos quais muitos poucos são nomeados. O colapso total da civilização Eldarin na Primeira Era, e a perda de muitos elfos no fim da Segunda, teria diminuído o poço de recursos que Elrond lhe proveu, e até os próprios recursos de Bilbo eram limitados.

O propósito de “Osanwë-kenta” é explicar como, ou porquê, dois seres podem se comunicar por pensamento. Mas rapidamente cai numa discussão sobre o personagem de Melkor e suas motivações, opostas às de Manwë. Melkor usa a habilidade inata comum à todas as criaturas racionais (diminuídas em certas ordens, como elfos e homens) para se comunicar por pensamento como uma maneira de aproximar-se e seduzir as vontades dos seres mais fracos. Ele não poderia forçar outra vontade à fazer o que desejasse, não até ele ter iludido-a. Isto é, Melkor não pode influenciar diretamente o pensamento de outro ser, mas poderia indiretamente levar outros seres a pensar que eles quissessem fazer tal. Entre os Eldar de Aman, ele contava com a linguagem, cuja maestria impressionava até mesmo os Vanyar, apesar de Manwë ter-lhes advertido que Melkor teria adquirido tal habilidade com sua língua.

O estudo termina com uma discussão sobre a decisão de Manwë ter restaurado a liberdade à Melkor. Ele concorda dizendo que, se Manwë não tivesse feito isso, ele teria ficado como Melkor, rebelde aos olhos de Ilúvatar. Uma das notas atadas ao estudo também fala de premonição. Comunicação de pensamento, a natureza do bem e do mal, premonição – inclusive a idéia de se um Valar pode ficar preso numa forma escolhida (corpo) – “Osanwë-kenta” viaja por todo lugar, pulando de idéia em idéia quase tão rápido quanto a pena do autor.

O material do final dos anos 50 representa uma era altamente produtiva de carreira de Tolkien, apesar de insatisfatória. Quanto mais escrevia sobre a Terra-Média, mais tinha que escrever para explicar o que tinha escrito. Respostas viraram questões, questões continuaram sem resposta, e idéias rolavam de sua mão como rochedos na montanha de Caradhras.

Parece, todavia, que tudo estava levando de volta à mitologia que Tolkien escreveu para o Senhor dos Anéis. A porção do Apêndice D do “Quendi e Eldar”, que Christopher omitiu do War of the Jewels, fala principalmente com a carreira de Fëanor como um senhor da tradição élfica. O estudo da línguagem de Fëanor e suas motivações políticas são mais elucidadas no “A Senha de Fëanor”, que Christopher publicou no The Peoples of Middle-Earth, o décimo-segundo e último volume da série HoME.

Linguistas focaram-se na primeira parte do “Senha” porque ele provêm detalhes sobre o desenvolvimento do Quenya Noldorin, enquanto historiadores se focaram na segunda parte do “Senha” porque ele oferece detalhes na geneologia final dos Noldor. “A Senha de Fëanor” foi composta em 1968 ou depois, e foi terminado quase uma década depois do “Quendi e Eldar”. Parece, logo, que Tolkien se sentiu insatisfeito com o que escreveu no “Osanwë-kenta” e decidiu expandir a história de Fëanor. Christopher conclui, no HoME, que seu pai usou genealogias escritas no fim dos anos 50 enquanto escrevia no “A Senha de Fëanor”. É possível, até provável, que Tolkien tinha alguns ou todos os papéis do “Quendi e Eldar” ao alcance.

Porém, como Ælfwine, cuja última aparição ocorreu em algum lugar dos anos 50 (de acordo com a própria análise do Christopher), Pengolodh está estranhamente silencioso no “A Senha de Fëanor” e nos textos que o acompanham. Os textos de Pengolodh foram despedaçados com o tempo, e a tradição sobre Pengolodh caiu em más línguas com Tolkien. A necessidade de prover uma voz anciã para as traduções de Bilbo foi colocada de lado pela necessidade de Tolkien de revisar a cosmologia e aplacar seu senso de perfeição. No curso dessas mudanças, ele inevitavelmente esqueceu de alguns conceitos que ele tinha apenas tocado.

Nós sabemos agora que os Vanyar não apenas vagueavam pelas florestas de Valinor ou sentavam-se nos salões de Manwë e ficavam cantando o dia inteiro. “A Senha de Fëanor” (na seção publicada na Vinyar Tengwar de Julho de 2000) e, numa outra extensão, “Osanwë-kenta” indica que os Vanyar tinham seus próprios mestres de tradição, alguns dos quais argumentaram com Fëanor sobre princípios linguísticos. Podemos deduzir que os Vanyar tinham uma curiosidade quanto à linguagem que quase se igualava à dos Noldor. Mas os Vanyar podem não ter se importado com a história da linguagem tanto quanto seu uso. Os senhores de tradição Vanyarin de fato concordam com Fëanor em teoria, sobre a questão de objetar a mudança no som, mas por causa de sua veemência em condenar a mudança, Fëanor alienou seus potenciais aliados entre os Noldor e os Vanyar.

Também é possível deduzir algo da história de Aman depois do fim da Primeira Era de alguns desses escritos e outros textos. Tolkien ocasionalmente joga uma alusão à Aman no presente, talvez inconscientemente, talvez com vontade de tornar possível algum contato com as Terras Imortais. Nos disseram que muitos dos escritos sobre Númenor foram perdidos na Queda. Então, toda a correspondência com os Eldar de Tol Eressëa, e os jornais e contos sobre as visitas dos Elfos, foram perdidos. No máximo, Elendil e seu povo trouxeram alguns livros de Númenor, mas destes muitos se perderam pelos séculos e pelas guerras. A perda das fontes numenoreanas livrou Tolkien de escrever muitas histórias. Mas também reforça a visão de que qualquer texto razoavelmente completo falando dos Dias Antigos está no “Traduções do Élfico” de Bilbo Bolseiro

Apesar de Tolkien ter contemplado como produzir os 3 volumes das “Traduções”, é evidente que ele nunca procedeu muito longe nesse caminho, e preferiu escrever e reescrever as historias principais do “Quenta Silmarillion” e seus textos acompanhantes. Os estudos linguísticos são experimentais, e nos dão pequenos pedaços de sabedoria ao longo do processo de desenvolvimento. Como Humpty-Dumpty na sua cantiga de ninar, as Traduções do Élfico representam uma herança perdida que nem meso um exército de pesquisadores seriam capazes de recuperar. Não há nada realmente a recuperar, mas “Quendi e Eldar”, “Osanwë-kenta” e “Orcs” podem merecer atenção especial no futuro. Nós provavelmente só começamos a juntar as peças.

[Tradução de Aarakocra]

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