Cânones

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Escrito por Anica

Até agora eu tenho dado apenas uma pequena ajuda ao esforço dos fãs destinado a estabelecer um cânone para as discussões sobre Tolkien. Não “O” cânone, veja você, nem o cânone decisivo, ou o cânone atual ou mesmo o melhor cânone. Simplesmente um cânone. Minha pequena ajuda consistiu apenas em conceder permissão para as pessoas mencionarem o projeto para o “White Council”.

A verdadeira discussão canônica recomeçou no site The Barrowdowns, mas parece que parou. Eu acho que posso entender porque parou. Parte do problema é que um projeto como este requerirá muito tempo, e isso é ameaçador.

Mas deixe-me começar do início, tanto quanto eu consiga voltar no tempo. A questão do “cânone” tem frequentemente surgido em vários fórums de discussão pela Internet. Duas ou mais pessoas irão discordar acerca de algo nos livros e irão começar a fornecer citações para provar as suas afirmações. Graças à Deus, as citações são completas e relevantes, mas quase sempre alguém se opõe à fonte de informação do outro. A citação pode até estar completa, mas ela não parece relevante para todos os grupos.

Por exemplo, é relevante citar “O Livro dos Contos Perdidos” quando se discute “O Silmarillion”? Os dois trabalhos estão separados por mais de 50 anos. Muitas pessoas sentem que “O Livros dos Contos Perdidos” é apenas um “Silmarillion” mais atual [e não é!]. Muitas pessoas apontam que Christopher Tolkien usou “O Livro dos Contos Perdidos” para escrever partes de “O Silmarillion” [o que realmente fez!]. Então, “O Livro dos Contos Perdidos” é uma fonte relevante de informação.

Oh, que dores de cabeça aquela questão criou! Ninguém pode fornecer uma resposta definitiva. A melhor resposta que até agora eu consegui dar é, “Depende”. Algumas pessoas têm [erroneamente] suposto que significa: “Depende se [Michael Martinez] quer usá-la”. O que depende é se você está falando sobre os trabalhos de J.R.R. Tolkien ou o mundo retratado por “O Silmarillion”. “O Livro dos Contos Perdidos” é centrado na Inglaterra. Determinavelmente, honestamente e inegavelmente. Tolkien regularmente trabalhou a geografia da Inglaterra nas suas estórias. A Inglaterra seria aquela porção de Tol Eressëa que foi restaurada ao mundo mortal. “O Livro dos Contos Perdidos” foi uma mitologia que Tolkien escreveu para a Inglaterra.

Em algum lugar dos anos 20 Tolkien desistiu de escrever a mitologia da Inglaterra, mas ele não desistiu de escrever mitologia. Quer dizer, ela não era mais destinada à Inglaterra. Ela se tornou a mitologia de J.R.R Tolkien. Eu penso que ele sempre quis publicá-la, mas percebeu, de alguma forma, que não era algo que se esperasse que os editores perseguissem. Apesar de tudo, falsas mitologias não inundavam as livrarias naqueles dias.

Suas mitologias são linguisticamente dirigidas. Ou seja, as estórias são frequentemente ligadas com as linguagens Élficas construídas por Tolkien. Ele foi guiado por três paixões: a paixão por sua amada esposa, Edith [quem ele quase perdeu para outro homem antes que se casassem]; a paixão pela linguagem; e a paixão por contar estórias. Foi esta última paixão que eventualmente garantiu que Tolkien fosse publicado, mas foi a primeira paixão que resultou na melhor estória de Tolkien, o conto de Beren e Lúthien. E ainda ele atribuiu grande parte das suas estórias à segunda paixão, seu amor à linguagem. Ele queria saber as histórias por detrás de simples palavras; e juntou-as todas e criou uma fantástica história imaginária.

Nós podemos mostrar os livros “The History Of Middle Earth” [ainda sem tradução no Brasil] e dizer, “Este [livro] documenta este período” e assim por diante, mas estas divisões arbitrárias que Christopher Tolkien impôs sobre a história devem-se muito mais às suas próprias limitações humanas. O reuso de estórias, idéias, personagens e linguagens através dos anos feneceram as diferenças para J.R.R Tolkien, e essas diferenças nebulosas foram preservadas para nós. Agora nós as achamos nebulosas, também.

Tenho certeza de que sempre houve um mundo na mente de Tolkien, no qual suas personagens viveram e atuaram. Ele chamava-o de mundo secundário, ou um mundo sub-criacional [sua sub-criação]. Christopher continuou a chamá-lo de mundo secundário, posto junto ao mundo primário [nosso mundo] e consistindo de eras imaginárias no passado, antes que a história mundana começasse.

O mundo secundário de Tolkien primeiramente incluía Gnomos, Homens e Anões [malvados]. Mas com a publicação de O Hobbit ele teve que se confrontar com a preocupação real de fornecer um sequência para uma estória a que ele somente tinha designado uma importância secundária. Nesta época, Tolkien estava tirando outras criaturas do seu mundo secundário, que não mais se adaptavam a ele: duendes, fadas e outros tipos dos contos de fadas. Os gnomos eram Elfos, Elfos de uma espécie diferente, somente vislumbrada nas mitologias nórdicas, talvez levemente melhoradas com um toque de Tolkien

Para satisfazer sua necessidade íntima de ver mitologia publicada, e assim criar uma “realidade” à sua maneira, e para satisfazer os editores e leitores que queriam mais sobre Hobbits, Tolkien uniu o mundo de O Hobbit com o mundo de “Quenta Silmarillion”, que veio para substituir “O Livro dos Contos Perdidos” como “a mitologia”. “Quenta Silmarillion” já era um trabalho bem diferente do Contos Perdidos, mas ainda se parecia com os contos de muitas formas.

Hobbits, por outro lado, eram uma criação completamente nova. Eles não tinham lugar na velha mitologia [agora com mais de 20 anos de idade]. Eles de fato não tinham lugar real no mundo secundário de Tolkien; então, ele criou um lugar para eles e assim, mudou seu mundo radicalmente. A mudança forçou Tolkien a dispensar algumas convenções que ele tinha adotado anteriormente. Hobbits eram criaturas informais. E a mudança forçou Tolkien a procurar ver como essas criaturas poderiam compartilhar um mundo com Gnomos e Homens heróicos, trágicos e poderosos, sem se tornar confuso.

Tolkien produziu “O Senhor dos Anéis”, que milhões de pessoas já leram. E ele sugeriu algumas revisões a “O Hobbit” ao seu editor, que foram entendidas, de fato, como mudanças na estória. Quando Tolkien descobriu que as suas sugestões viraram realidade, teve que se virar para revisar o material histórico que já estava preparando para o ainda não publicado “Senhor dos Anéis”. Quando o livro foi finalmente publicado, Tolkien teve que revisar toda a base de informação histórica novamente, condensando-a e reorganizando-a consideravelmente. Muito do que ele pretendia que fosse publicado nunca viu a luz do dia durante seus dias de vida.

“O Hobbit” e o “Senhor dos Anéis” foram revisados novamente anos depois quando a Ace Books, aproveitando-se de um furo na lei de copyright, publicou uma edição não autorizada dos trabalhos de Tolkien. Para combater os livros não autorizados, foi pedido a ele que apresentasse mudanças suficientes em ambos os livros para justificar a nova edição “oficial”. Estas mudanças alteraram invariável e novamente o mundo em desenvolvimento na mente de Tolkien, e introduziram controvérsias acerca da progressão da história imaginária.

Então, muitos anos depois, as pessoas na Internet descobriram Michael Martinez e suas longas citações sobre Tolkien. Eu tenho refletido muito e pontificado nos mundos de “O Hobbit”, de “O Senhor dos Anéis” e o de “O Silmarillion”. E ocasionalmente [quando me convém, diriam uns] eu pego algum volume do “The History of Middle-Earth” e incluo seu conteúdo nas minhas reflexões e pontificações.

Mas, há alguma emoção ou razão para fazer tudo isso? Quase sempre minhas citações parecem confusas para muitas pessoas. Eu irei mencionar “O Livro dos Contos Perdidos” aqui quando discuto “A Queda de Gondolin”, mas eu irei excluí-lo lá quando discuto a queda de Gondolin [do Silmarillion]. “O Silmarillion não é canônico.” eu direi para as pessoas, e então eu continuarei a mencioná-lo para afirmar qualquer coisa que eu achar que posso.

“Como você acha e escolhe seus textos?” me perguntam, às vezes.

Eu digo: “Cuidadosamente.”

“Por que o Silmarillion não é canônico?”

Esta é a pergunta mais complicada de todas. Não é relevante para os outros livros porque Christopher Tolkien removeu-o de tal relevância. No prefácio de O Silmarillion, Christopher avisa ao leitor que “uma consistência completa [tanto dentro do próprio O Silmarillion como em comparação com outros escritos publicados de meu pai] não é para ser almejada, e poderia apenas ser alcançada, se o for, com um grande e inútil esforço.”

Christopher tinha anteriormente repudiado algumas de suas decisões editoriais em O Silmarillion, entretanto, das mudanças críticas que ele introduziu na estória da queda de Doriath ele continuou a dizer: “

“Esta estória não foi ligeiramente e facilmente aceita, mas foi o resultado de uma longa reflexão entre concepções alternativas. É, e era, óbvio que um passo estava sendo dado de uma forma diferente de qualquer “manipulação” dos próprios escritos do meu pai…pareceu naquele tempo, que haviam elementos inerentes na estória da Ruína de Doriath como estavam que eram radicalmente incompatíveis com “O Silmarillion” como foi projetado, e que havia aqui uma escolha impossível de escapar: abandonar aquela concepção, ou então alterar a estória. Eu acho agora que esta foi uma visão errada, e que as indubitáveis dificuldades poderiam e deveriam ter sido, superadas sem que se ultrapassem, de tão longe, os limites da função editorial.”

Esta confissão em nada invalida O Silmarillion como uma representação da obra de J.R.R. Tolkien. De fato, não há Silmarillion que represente uma realização autoral direta de J.R.R. Tolkien. Até mesmo “Quenta Simarillion”, dos findos anos 30, não é parte de um trabalho muito maior e mais completo que se tornaria O Silmarillion.

Não tenha dúvida: a maior parte do material em O Silmarillion foi escrita por J.R.R. Tolkien…em uma hora ou outra. Entretanto, o material não foi escrito para ser parte deste livro. Não foi a intenção de Tolkien. Christopher Tolkien escreveu O Silmarillion definitivo, e depois de gastar perto de 20 anos analisando o trabalho de seu pai e comparando-o com o livro publicado, ele chegou à conclusão que ele não tinha sido tão fiel à obra de seu pai quanto esperava.

Então quando as pessoas me vêem repudiar O Silmarillion de Christopher eles invariavelmente perguntam como eu poderia rearranjar o livro, fosse-me dada a tarefa de revisá-lo. Eu nunca serei capaz de responder esta questão. Eu acho que é inevitável que novas edições de O Silmarillion sejam publicadas. Uma vez que os direitos autorais das obras de Tolkien um dia virão a expirar, e as estórias se tornarão de domínio público, as pessoas irão dar a si mesmas a tarefa de escrever novos Silmarillions.

Alguns esforços serão ao mesmo tempo lastimados e saudados com grande louvor. Auto-intitulados puristas de Tolkien irão argumentar que apenas um dos dois Tokiens é qualificado para corrigir o texto de O Silmarillion, se tal texto pode ser idealizado. Qualquer outra pessoa está meramente passando por um falsificador. Talvez, mas Christopher Tolkien está aposentado, e ele indicou que não irá mais escrever. Suas realizações em documentar os trabalhos do pai são incomparáveis, e ele revelou a árvore que traz os frutos disformes que teremos que distribuir entre nós.

O gosto d”O Silmarillion é ao mesmo tempo amargo e doce, e desta forma deve servir para o propósito dos autores melhor que qualquer futura publicação. Mas ele não consegue uma consistência com O Hobbit e O Senhor dos Anéis, que seria necessária. E para obter tal consistência, alguém precisa reescrever não só O Silmarillion, mas também cada um dos outros dois livros. A idéia de reescrever O Silmarillion é dificilmente confortável para a maioria dos fãs de Tolkien. Agora ninguém ousaria reescrever os outros dois livros.

E mesmo assim, a proeza já foi feita, nos dois livros, por editores ávidos por trazer os textos “corretos” de Tolkien para impressão. Veja bem, J.R.R.T. indicou algumas correções que deveriam ser feitas nos textos e que não foram incorporadas até a sua morte. Estas são a “quarta” edição d”O Hobbit e a “terceira” edição d”O Senhor dos Anéis, dificilmente distinguíveis das suas predecessoras, mas diferentes o bastante para que alguns leitores encontrassem profunda significância na sua existência.

E há uma grande distância entre corrigir textos e realmente revisar a estória em cada livro. Além do mais, isto também já foi feito, aos dois livros de novo, e mais de uma vez. Ambos foram adaptados para o cinema e televisão, e para o rádio. O Hobbit também foi adaptado para o teatro. As estórias passaram por mais mudanças que, talvez, qualquer pessoa pudesse esperar ver.

Então não é grande coisa, exceto em termos emocionais, considerar uma revisão formal de, digamos, O Hobbit, para trazê-lo para uma forma mais consistente com O Senhor dos Anéis. O próprio J.R.R. Tolkien escreveu: “Eu acho que O Hobbit pode ser visto como início de algo que pode ser chamado de modo “caprichoso”, e de alguma forma até mais humorístico [do que O Senhor dos Anéis]…mas eu me arrependo disso do mesmo jeito.”

Humphrey Carpenter diz em sua biografia que quando Tolkien revisou O Hobbit para diferenciá-lo da edição não autorizada da Ace Books “ele achou grande parte dele “muito pobre” e teve se conter para não reescrever o livro inteiro.”

Os Vulcanos têm um ditado, de acordo com o Sr. Spock: Somente Nixon pode ir à China. A maioria dos fãs podem dizer: somente Tolkien pode reescrever Tolkien. É verdade, muito provavelmente ninguém seria capaz de reescrever O Hobbit como J.R.R. Tolkien o faria. Qualquer autor publicado atualmente produziria, sem dúvida, um tipo profundamente diferente de estória, fornecendo um tom diferente, novos personagens, detalhes “não-canônicos” adicionais, prenúncios e empréstimos de O Senhor dos Anéis, e tudo mais de pior. Esta é a forma dos pastiches. O novo escritor pode não ser de ajuda, mas deixar suas próprias digitais na obra.

O que é solicitado é um mestre das falsificações, alguém que queira produzir outro Rembrandt, não uma pintura tão boa quanto Rembrandt. Um falsificador imergiria a si mesmo no estilo e prosa de Tolkien, não adicionaria nada que Tolkien não teria adicionado, não usaria palavras que próprio Tolkien não escreveria. Entretanto, o perigo de contar com uma falsificação é que o falsificador poderia, apesar de tudo, produzir uma obra banal e desinteressante. Pareceria que Tolkien teria escrito o livro, mas ele seria um fracasso. Somente um mestre da falsificação com o dom de um contador de estórias similar ao de Tolkien teria alguma chance de ter sucesso. Mas…tal pessoa existe?

Invariavelmente milhões de fãs diriam: Não!

Muito bem. Eu não tentarei ser esta pessoa.

Porém, em resposta à questão irrespondível, se eu tentasse revisar O Silmarillion, eu tentaria também revisar O Hobbit. Eu não tenho idéia do que eu faria no último, mas ele requereria mudanças. Uma nova edição de O Hobbit libertaria o autor do novo O Silmarillion de obrigações de honrar inconsistências. Estas obrigações atrasaram Christopher Tolkien, que reduziu seriamente alguns pontos históricos de forma a alcançar um nível modesto de consistência com O Senhor dos Anéis. Ele nunca levou O Hobbit em consideração.

Para o meu Silmarillion, eu revisaria as estórias de Maeglin, Béren e Lúthien, Túrin, a queda de Gondolin e Eärendil. Eu reafirmaria o número de passagens que foram abandonadas dos textos. Mas eu também teria que escrever novo material para trazer às estórias de O Silmarillion consistência com O Senhor dos Anéis. Eu não iria, por outro lado, introduzir os Hobbits em O Silmarillion. Eles não têm lugar nas histórias Élficas. Eles têm suas próprias histórias, perdidas, esquecidas, enterradas nas tradições insondáveis que não têm sido preservadas. A falta dos Hobbits em O Silmarillion tem sido lembrada com uma fraqueza do livro para os fãs de O Hobbit. Talvez, mas não há evidências que J.R.R. Tolkien já tenha se inclinado alguma vez a incluir os Hobbits nas histórias Élficas. Ele provavelmente incluiria os Druedain.

Portanto, um bom falsificador não pode colocar Hobbits em Beleriand. Quantas pessoas poderiam resistir à tentação, de qualquer forma, se lhes fossem dada a tarefa? A retumbante promessa inicial da campanha do Presidente George Bush vem à mente: “Leia meus lábios: nenhum novo imposto.” Dois anos depois, ele aprovou novos impostos. Para ter sucesso, um novo O Silmarillion simplesmente não pode incluir Hobbits. Ele não seria compatível com a visão de Tolkien. Nós sabemos bastante sobre aquela visão, então poderíamos fingir sermos falsificadores competentes se fôssemos discutir a idéia de “cânone”. Somente Tolkien poderia definir seu cânone, e desde que ele não se incomodava, se rudemente insistíssemos em fazer por ele, deveríamos nos tornar falsificadores.

Pode ser argumentado que para que um novo Silmarillion tenha “sucesso”, ele deve apelar para sua audiência moderna, especialmente se. Não deve levar outros 50 ou 70 anos para ser reescrito. Os livros velhos compartilham uma visão de uma audiência há muito perdida. Mas, quando falsifica-se um Rembrandt não se pinta com o estilo de Picasso. Deve-se pintar com o estilo de Rembrandt. Para alcançar a perfeição, deve-se usar os mesmos tipos de tinta e pincéis, canvas e a mesma iluminação de Rembrandt. Deve-se tornar Rembrandt em cada detalhe possível, viver no seu mundo e produzir uma obra de arte que deveria vir do seu mundo. O mesmo princípio serve para falsificar literatura. Se alguém adicionar um novo livro para os comentários Gálicos de César, deve-se escrevê-lo como César o faria [e ignorar, de qualquer modo, a controvérsia se o último livro era uma falsificação pobre]. Deve-se buscar consistência com o que é conhecido e aceito pelos experts como o carimbo do artesão cujo trabalho está sendo forjado.

É por isso que eu escolho os meus textos rigorosamente. O que é consistente com o cânone de Tolkien? Se alguém puxar um tópico de um livro, eu procuro pelas passagens em outros livros [se elas existirem]. O cânone da Terra-Média, como foi definido por J.R.R. Tolkien, já existe. Ele o estabeleceu na terceira edição de O Hobbit, na segunda edição de O Senhor dos Anéis, no The Road Goes Ever On e nas Aventuras de Tom Bombadil. Poderia até ser afirmado que o mapa da Terra-média de Pauline Baynes também faça parte do cânone.

Estes livros são, na sua maior parte, consistentes entre si. O Silmarillion trata de um monte de material não incluído naqueles livros, daí as oportunidades para consistência [ou para erros que desviem da consistência] serem tantas. O próprio Tolkien não disse: “Estes livros são o cânone; eles definem as leis do meu mundo.” Ele simplesmente os publicou. Ele os aprovou, escreveu-os, revisou-os. Eles são os enunciados formais, de J.R.R. Tolkien, para o que é e não é Terra-Média. E há inconsistências pequenas entre eles, mas nada como as inconsistências que aparecem entre esses livros e O Silmarillion de Christopher.

Mas se alguém começar a revisar o texto de O Silmarillion, esse alguém deve ter uma fonte para o novo material, que é indistinguível do material de J.R.R. Tolkien. E isso, é claro, é onde os The History of Middle-Earth e Os Contos Inacabados se tornam importantes. Christopher Tolkien já havia publicado muitos dos trabalhos de seu pai, previamente não publicados. Ele utilizou algum material de Os Contos Inacabados para escrever partes de O Silmarillion. E as fontes diretas da maior parte do livro têm sido publicadas nos The History of Middle-Earth.

O que um falsificador moderno [ou futuro] pode contar é com um cânone secundário publicado por Christopher para consultar. Quando ele estava compondo O Silmarillion, Christopher não teve este extensivo corpo de pesquisa disponível. Ele estava apenas nos primeiros estágios da pesquisa. Se ele soubesse antes o que ele sabe agora, ele teria escrito um O Silmarillion diferente. E se Christopher Tolkien poderia ter escrito um livro baseado no conhecimento que nós todos temos hoje disponível, então por que outra pessoa não? Bem, esta é outra questão irrespondível, daí nós iríamos apenas falsificar adiante e assumir que a questão foi respondida satisfatoriamente [e este ensaio termina aqui, mas eu não estou pronto para finalizá-lo].

Há questões difíceis que devem ser mencionadas. O conteúdo total de “Quenta Simarillion” deve ser considerado, por exemplo. Ele nunca teve a intenção de cobrir todos os detalhes das estórias completas. Ele é um resumo, uma camada de interpretação, se você preferir, que fica entre o leitor e os contos “verdadeiros”. Portanto, ninguém pode simplesmente encaixar o “Narn i Chin Húrin” inteiro no texto. Por outro lado, “The Wanderings of Húrin” é uma importante extensão da estória de Túrin e seu pai, e ela não deveria ser excluída, sendo que estava na forma na qual Christopher a encontrou [na realidade, a versão publicada é muito diferente dos manuscritos não editados, pela explicação dada pelo próprio Christopher]. A estória de Túrin deve retornar para Doriath, o que acontece de forma inadequada no Silmarillion publicado, e por isso Christopher literalmente cortou o final da estória e fabricou um final inteiramente novo.

Outro assunto que preocupa é como os velhos parágrafos que Christopher usou devem ser reescritos. Eles devem ser reescritos, porque são muito inconsistentes com as coisas que J.R.R. Tolkien incluiu posteriormente no cânone. Seguidores do “Grande Debate dos Balrogs” sabem que as pessoas frequentemente defendem que os Balrogs não poderiam ter voado, porque em Dagor Bragollach, Glaurung veio saindo de Angband com os Balrogs nas suas costas. Esqueça o fato de que “nas suas costas” poderia incluir criaturas voadoras, o parágrafo é tecnicamente inapropriado para inclusão no Silmarillion porque foi escrito antes que Tolkien alterasse radicalmente a descrição física dos Balrogs [nos anos 40, enquanto escrevia “A Ponte de Khazad-dum”] e seu número [no anos 50, reduzindo eles de centenas ou milhares para não mais que 7], e antes que os Balrogs se tornassem Maiar corruptos.

Existem fortes emoções ligadas à passagem “nas suas costas”. Ela tem sido frequentemente usada para provar [sem sucesso] que os Balrogs não têm asas e não podem voar. Bem, os Balrogs para os quais J.R.R. Tolkien escreveu aquelas palavras não tinham asas e não podiam voar, eram em número de 1000 e viajavam nas costas de dragões e/ou outras criaturas. Eles eram uma tropa de cavalaria assustadora, e eram um pouco diferentes do Balrog de Moria.

Não pretendo redebater o assunto Balrog aqui, mas minha opinião é que algumas coisas nas quais fortes sentimentos [e lealdades] foram atados simplesmente teriam que desaparecer. Não para provar que Balrogs tinham asas e voavam, mas porque elas eram inconsistentes com o cânone publicado por Tolkien, ou com as decisões de Tolkien que eram contemporâneas com o cânone publicado.

E então se levanta outro assunto espinhoso. É justo que se utilizem decisões feitas durante os anos entre 1950 – 1966, quando foi estabelecido o cânone publicado, mas quais não estariam incluídas nele? Pegue a passagem de Gil-galad, por exemplo. Christopher agora admite com prazer que ele nunca deveria ter declarado Gil-galad como sendo filho de Fingon em O Silmarillion. Ele baseou aquilo em uma nota de rodapé que ele depois percebeu ser apenas uma “idéia efêmera”. Gil-galad era um tipo de “batata quente” genealógica, pulando em torno da Casa de Finwë de pai para pai, começando com Inglor [adivinhe, Finrod] e passando para Fingon e de volta para Finrod e finalmente para Orodreth. E lá ele ficou, como filho de Orodreth, perdido nas genealogias.

É inapropriado usar a conexão Fingon –> Gil-galad em O Silmarillion. Christopher diz que teria sido melhor deixar o parentesco de Gil-galad incerto, dizendo nada. Eu acredito que seria melhor declarar que Gil-galad era o filho de Orodreth, e descobrir um alguma maneira para ele evitar a Queda de Nargothrond, tal como Galadriel a evitou. As pessoas querem saber quem foi o pai [e mãe] de Finrod. Pelo menos parte da informação está estabelecida em material publicado postumamente.

Algumas pessoas no Barrowdowns estavam perguntando se a seção “Mitos Transformados” do Anel de Morgoth poderia ou deveria ser usada para estabelecer um cânone. Eles se baseiam no revisado mito do Sol e da Lua. Eu não faria isso. Ele é completamente inconsistente com todo o mais publicado. Tolkien, nos seus últimos anos, ficou preocupado, talvez até alarmado, que O Silmarillion [quando publicado] estabeleceria o antigo mito [em termos da sua vida] sobre a criação do Sol e da Lua a partir das últimas folhas de Laurelin e Telperion nas histórias Élficas. Mas os Elfos, ele pensou, particularmente os Eldar, cujas histórias eram essas, foram instruídos diretamente pelos Valar e Maiar, os seres angelicais que existiam antes do Tempo. Eles não deveriam ser tão rápidos a inventar baboseiras falsas e pseudo-religiosas sobre como o Sol e a Lua eram folhas das árvores.

Por um instante, Tolkien brincou com a idéia que talvez o Homem, recordando e passando as histórias Élficas, tivesse estragado as estórias. Mas no final das contas, ele rejeitou aquela idéia e chegou à conclusão que a história inteira deveria ser reescrita. Esta é a razão real para o porquê Tolkien nunca publicou, ele mesmo, O Silmarillion. Ele simplesmente não existia, exceto na forma de comentários estranhos e notas para ele mesmo sobre o que funcionava e o que não funcionava. Tudo estava a ponto de mudar de novo.

Ninguém pode simplesmente reconciliar O Hobbit, O Senhor dos Anéis, As Aventuras de Tom Bombadil com a história humana atual, e nossas deduções sobre o que veio depois. Se alguém deve reescrever O Silmarillion, então alguém deve reescrever todos os outros livros também. E isso é exatamente o que o falsificador deve fazer? Seria como repor todos os Rembrandts por novas pinturas apenas para justificar uma falsificação menos coerente. No caso de Tolkien, ele não tinha como proceder muito mais com as suas extrapolações para perceber as implicações mais amplas, e talvez tenha sido um alívio para ele que não tenha conseguido ver onde as revisões deveriam acabar.

Então, inevitavelmente, alguém deve permanecer fiel aos mitos mais antigos, e produzir um Silmarillion que viva no mundo imaginário do cânone publicado. Neste mundo, Galadriel não poderia se juntar com os Teleri em Alqualondë contra os Noldor [uma das decisões que Tolkien tomou tarde em vida]. Nem pode Celeborn ser um Elda de Aman, neto de Olwë [um relacionamento que o faria primo de primeiro grau de Galadriel e, portanto, violando um tabu sobre tais uniões que Tolkien tinha previamente estabelecido e depois esquecido]. A história de Galadriel deveria ser planejada para o Silmarillion forjado. Não há história real para Galadriel. Existem muitas tentativas de Tolkien para inventar uma, mas cada uma delas termina logo, e introduz seus próprios problemas no enredo da estória.

Pelo menos, eu permaneceria fiel aos mitos mais antigos. Sim, os Elfos deveriam ter maior conhecimento do que pensar que Eärendil é Vênus, que o Sol e a Lua foram só criadas cerca de 11.000 anos atrás, e o mundo era plano mas foi encurvado quando os Numenorianos se rebelaram. Mas, eu não posso pensar em reescrever o Senhor dos Anéis, sendo que o propósito de reescrever o Silmarillion é necessário para fazê-lo consistente com o livro mencionado.

E eu acho que é onde as pessoas que querem definir um cânone para as discussões devem ir. Há uma riqueza de material que pode ser usado para descrever o que é necessário para a consistência com o Senhor dos Anéis. Mas se alguém está pensando em reescrever os mitos, esse alguém está pensando em reescrever O Senhor dos Anéis, e então a intenção de definir um novo cânone de Tolkien perde todo o valor. Você não seria capaz de discutir Tolkien de acordo com um novo cânone, você seria capaz apenas de discutir o novo mundo que você criou.

Claro, alguns fãs de Tolkien diriam: “Por que apenas não criamos novos mundos e deixamos Tolkien em paz?”

Esta também é uma questão sem resposta.

[Tradução de Daniel. A. Sant’Ana]

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Luís Octávio Brandão

O texto eh muito bom. Traz algumas questões que carregamos conosco , como fãs da obra e dos trabalhos deste grande autor. Mas jah hah algum tempo cheguei aquela conclusão final do texto: por que não deixamos Tolkien em paz?
O trabalho foi fundamentalmente dele e competia a ele fazer as alteracoes que achasse necessarias. Estendo esta regalia aos detentores de seu espolio, sua família, a qual tem sido zelosa em seu trabalho diga-se de passagem.
Quanto as “discrepancias” em sua obra, fruto obvio do tempo gasto pelo escritor em sua própria lide… Duvido que qualquer pessoa que escreva sobre a mesma coisa por muito tempo não tente remendar um ou dois parágrafos aqui e ali de vez em quando.
Eu ainda acho que as versões de um mesmo fato ou mesmo historias completamente dispares para personagens ou feitos na sua Mitologia dão um interesse especial… permitem um vislumbre em como trabalhava o pensamento do autor e sua visão particular da obra naquele momento.
CelsoRusso, na minha visão esse excerto que você citou foi escrito em uma época inicial, provavelmente já estava na primeira versão do capitulo. Se lembrarmos da história da escrita do SDA, este era uma continuação mais infantil do hobbit, até a história ganhar corpo e se relacionar com a mitologia mais profunda.

CelsoRusso

Uau! Quando leio artigos como este (excelente, já vou logo dizendo para que não pensem que não gostei), percebo o quanto “não sei” sobre o fantástico universo de Tolkien. E isso mesmo tendo lido O Senhor dos Anéis quatro vezes, O Hobbit outro tanto, O Silmarillion duas, o Contos Inacabados outras duas e Os Filhos de Húrin uma vez (é o próximo que vou ler de novo, mas ele é tão sombrio… rs…)

O Hobbit para mim é uma obra menor e adoraria que algum novo Chico Xavier psicografasse o Mestre e reescrevesse a história quase que inteira. Poderia também aproveitar o elo espiritual com Tolkien e acabar de uma vez por todas com a polêmica (in)capacidade de voar dos balrogs (rs..)

Mas em relação a O Senhor dos Anéis, não vejo necessidade alguma de que seja reescrito, com uma única exceção relacionada a um minúsculo trecho que não entendi na primeira leitura, nem na segunda, nem nas outras duas. Para mim é a única parte da estória que está completamente deslocada no livro. Vou transcrevê-la, depois explico a minha estranheza. Ela se encontra no Livro I, Capítulo III – Três não é demais:

“Alguma criaturas vieram olhá-los quando o fogo tinha se apagado. Uma raposa que passava através da floresta cuidando de seus próprios negócios parou por vários minutos, farejando.
‘Hobbits!’, pensou ela. ‘O que vem depois? Ouvi falar sobre coisas estranhas nesta terra, mas nunca soube de hobbits dormindo ao relento sob as árvores. Três deles! Tem alguma coisa muito estranha por trás disso.’ Estava muito certa,mas nunca soube disso.”

Não me lembro de ter visto em nenhuma outra parte do livro algum animal filosofando como essa improvável raposa. Mesmo os animais mais nobres, como Shadowfax (prefiro a Scadufax) ou o pônei Bill. As poderosas águias como Gwaihir não contam, porque elas têm o dom da fala.

De resto, não alteraria uma única sílaba no livro. Claro que estou me referindo à tradução da Lenita Maria Rímoli Esteves, porque infelizmente não me vejo capaz de ler o livro em inglês, como tenho imensa vontade…

Lico

Excelente artigo e tradução.

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