Viajando em Carroças com Hobbits

Escrito por Fábio Bettega
Provavelmente nunca haverá um filme do tipo Dias de Trovão celebrando as corridas de carroça entre a Vila dos Hobbits e Beirágua. Hobbits são por natureza um povo caseiro, cujos riscos mais selvagens tendem a ser roubar cogumelos e entrar e sair de botes. É claro, alguns ocasionais Tûks rumam para o Mar, mas até Gandalf ter atiçado Bilbo e Frodo Bolseiro a vagarem pela Terra Média, Hobbits provavelmente não passavam muito tempo fora de suas próprias terras por mais de mil anos.

 

Havia uma certa propriedade que acompanhava o Hobbit “literal”, um senso de que “tudo estava bem até este momento”. E este era um falso sentido de propriedade. Os Hobbits, como os Elfos, tinham seus próprios arrependimentos e preocupações. O povo do Condado tinha esquecido (ou parecia fingir ter esquecido) que eles uma vez viveram em Bri, que era agora uma terra estrangeira. E antes de morarem em Bri, eles viveram em terras ao leste das Colinas do Vento, ou ao sul do rio Gwathlo.

Estórias de Hobbits não se tornam interessantes a não ser que alguém agite suas vidas. Todos os dias, durante muitos anos, Hobbits viveram calmamente em suas colinas e jardins, e então alguém viria e tiraria sua inocência. Poderia ser devido a um Necromante, que transforma a Grande Floresta Verde na Floresta das Trevas. Ou poderia ser devido a um Rei-Bruxo que desencadeia uma devastadora série de guerras. Ou poderia ser um mago andarilho que decide ajustar alguns erros e percebe que os Hobbits podem escapar próximos ao escrutínio o suficiente para alcançar algumas coisas.

Qualquer que seja a causa, chega um dia na vida de um Hobbit em que ele põe a família em uma ou mais carroças e ruma para o interior. Tais migrações, ou fugas, devem ser difíceis para todos. Os líderes dos antigos Helvetii, um grupo de tribos celta que vive nos Alpes, a leste da Gália (França), forçava seu povo a queimar suas casas e vilarejos. Os Helvetii e seus aliados entraram na Gália sem nada além de suas carroças e os animais que puderam trazer com eles. Não havia como voltar atrás.

A decisão de deixar suas terras nos Alpes tem sido muito debatida. Os Helvetii não poderiam simplesmente partir por capricho. Alguns eruditos, ao longo dos anos, sugeriram – de fato, insistiram – que os Helvetii seguiam uma antiga prática celta chamada ver sacrum,uma expansão ritual das tribos dentro de novos territórios. Os celtas do Norte da Itália dividiam nomes tribais com os celtas da região Alpina e com os celtas da Gália.

Os Helvetii e seus aliados afirmaram que estavam fugindo para o oeste para escapar das tribos Germânicas e Eslavas. Júlio César usou a migração dos Helvetii como uma desculpa para estabelecer uma base de poder na Gália, e uma vez que ele derrotou os Helvetii, forçando-os a retornar aos Alpes, ele seguiu com a conquista de toda a Gália. As campanhas para a conquista da Gália de César desencadearam uma migração celta final, da Gália do Norte para a Bretanha.

Durante todo o tempo em que os antigos celtas se moviam ou expandiam, arranjos políticos regionais chegavam a Utumno numa cesta de mão. Qualquer que fosse o reino ou cidade que estivesse no caminho da migração, estava normalmente calçado, mas os inimigos dessas pessoas infelizes muitas vezes encontravam novos aliados nos celtas quando viajavam pelas terras. O costume do ver sacrum era disputado, apesar de ser mencionado apenas por antigos escritores. Mas arqueólogos e historiadores, em geral, aceitam que os celtas e os germânicos estavam provavelmente seguindo uma antiga prática de mandar embora os colonizadores assim que suas populações começassem a aumentar.

O registro arqueológico de comunidades agricultoras Européias sugere que, há aproximadamente 8000 anos, fazendeiros foram para a Europa a partir da Grécia. Sabe-se que eles pressionaram os clãs mais velhos e vagantes para o leste e norte. Os fazendeiros trouxeram com eles animais domesticados, ferramentas superiores, armas, e um conhecimento sobre agricultura que os possibilitou formar maiores famílias, viver em maiores comunidades e viver por mais tempo.

A agricultura e a pecuária aumentaram o poder dos clãs, para por fim se tornarem tribos e nações. Mas a tecnologia era insuficiente para suportar grandes populações. Então, a cada poucas gerações, os vilarejos tinham que exilar parte de suas populações. As fazendas locais estavam consumindo toda a terra com a sua tradicional tecnologia de “cortar e queimar”, que proporcionou breves períodos de boa agricultura antes que os agricultores tivessem que se mudar. Fazendeiros da América do Sul estão destruindo milhares de acres de Floresta Tropical todos os anos através de prática similar.

Apesar desse tipo de agricultura requerer que novas terras sejam abertas de tempos em tempos, os fazendeiros podem deslocar-se dentro da mesma região geral, de forma que seu número total não se modifique. Mas a agricultura alimenta muitas bocas famintas, e as pessoas tinham tendência de ter muitos filhos. Apesar de que a maioria das crianças não chegava à maturidade (por uma série de razões), as comunidades agricultoras gradualmente se expandiram para o leste e para o norte por aproximadamente 3000 anos.E então novos povos, que chamamos de Indo-Europeus, começaram a ir para a Europa, e iniciaram o processo de expansão novamente.

Os Indo-Europeus não eram simplesmente agricultores. Eles eram guerreiros, nômades e inventores. Eles projetaram carroças que eram eficientes, fáceis de construir e manter,e capazes de transportar muitas mercadorias. O projeto de carroça dos Indo-Europeus permaneceu essencialmente inalterado até o século XIX, quando pioneiros americanos e vassalos russos usavam vagões que se pareciam muito com os seus antecessores de 5000 anos antes, para abrir terras em dois continentes.

Esses povos Indo-Europeus que se mudaram para a Europa se estabeleceram entre os fazendeiros nas terras densamente plantadas e adotaram um pouco de seu estilo de vida. Um desses costumes era a tradicional prática de cortar e queimar. De acordo com Tacitus, que escreveu sobre eles no século I DC, os Germânicos, um grupo ao norte dos Indo-Europeus, adotaram o costume de obrigar as famílias a sair de suas fazendas todos os anos. Tacitus tinha a impressão de que as tribos germânicas de certa forma aglomeravam-se no interior, queimando suas casas e reconstruindo-as a cada ano.

Tais medidas devem ter sido extraordinárias, e eles devem ter tido motivos políticos por trás de tudo. A Arqueologia nos mostra que existiam cidades fortificadas no norte da Europa, conectadas por estradas e rotas comerciais ao longo de estuários até antes de 1400 AC. Os Germânicos Ocidentais, dos quais vieram os Saxões, Francos e Borgonheses da primitiva História Medieval, eram possivelmente as tribos mais primitivas do n
orte. Mas eles, no entanto, tinham suas próprias cidades grandes e podiam reunir respeitáveis exércitos capazes de destruir legiões Romanas experientes, incluindo as malfadadas três legiões de Quinctilius Varus no começo do primeiro século DC.

Todos esses fazendeiros bárbaros viajantes provavelmente mais forneceram a Tolkien em esquema para as migrações dos Hobbits. Os Hobbits não gostavam de guerras. Eles não conquistavam impérios. Ao invés disso, eles achavam suas própria terras confortáveis e se fixavam por tanto tempo quanto às políticas locais permitiam. Assim como os Celtas e os Germânicos, que divergiram das mesmas subculturas ancestrais Indo-Européias em algum tempo no fim do terceiro ou segundo milênio AC, os Hobbits se dividiram em duas populações após terem entrado em Eriador.

Agora, muitas pessoas serão rápidas ao apontar que havia três grupos de Hobbits: Pés-peludos, Grados e Cascalvas. Sim, isso mesmo. Mas os Cascalvas e os Pés-peludos permaneceram no Norte. Eles cruzaram as Montanhas Sombrias através da Passagem Alta (acima de Valfenda – a mesma passagem onde Thorin e a Companhia foram capturados por Orcs em O Hobbit) e estabeleceram-se em Rhudaur, provavelmente entre o Mitheithel e as Colinas do Vento.

Os Grados cruzaram as Montanhas Sombrias pela passagem do Chifre Vermelho e se dividiram em dois grupos. Alguns foram ao norte para o Angle e ficaram em Cardolan. Os outros se estabeleceram em Terra Parda, ao sul da fronteira de Cardolan. Não é apenas uma coincidência que as famílias de Hobbits que descendiam dos Grados da Terra Parda tinham nomes célticos, enquanto famílias de Hobbits que descendiam de grupos do norte tinham nomes germânicos. Muitos leitores observaram ao longo dos anos como os Terra-pardenses parecem ser um pouco “celtas”.

De fato, todo o povo de Bri tem nomes relacionados a motivos populares celtas (Macieira, Carrapicho, etc). Isto é, são nomes relacionados à natureza. Quer estejam certas ou erradas, as pessoas têm – desde o final do século XVIII – cada vez mais associado os celtas e os druidas com à adoração à natureza e uma espécie de anti-pastorialismo em cidades. Na realidade, os celtas eram grandes e ativos construtores de cidades. Mas nos lembramos deles principalmente por seus fortes em colinas, migrações e por seus misteriosos druidas.

A identificação céltica de Tolkien para com os Terra-pardenses e seus parentes é estabelecida principalmente através de nomes de lugares, como por exemplo, para a terra de Bri. Bri (Bree) é uma palavra britânica para colina e Archet, Coombe e Staddle são todos nomes derivados da antiga língua Britânica (Celta). A animosidade entre os Terra-pardenses – é dirigida de sua terra natal pelos Rohirrim – e os Rohirrim também se assemelham aos Contos Arturianos dos Celtas contra os Saxões.

O próprio Tolkien indicou a conexão celta no apêndice F de Senhor dos Anéis:

…Os nomes dos habitantes da Terra dos Buques eram diferentes daqueles do resto do Condado. As pessoas do Pântano e seus descendentes da margem oposta do Brandevin eram estranhos em vários sentidos, como se disse. Foi sem dúvida do antigo idioma dos Grados do Sul que herdaram muitos de seus estranhíssimos nomes. Normalmente deixei-os inalterados, pois, se agora são esquisitos, já eram esquisitos em sua própria época. Possuíam um estilo que talvez devamos, vagamente, considerar como “céltico”.

Como a sobrevivência de vestígios da antiga língua dos Grados e dos Homens de Bri se assemelha à sobrevivência de elementos célticos na Inglaterra, minha tradução às vezes imita estes últimos. Assim, Bri, Archet e a Floresta Chet são baseados em relíquias da nomenclatura Britânica, escolhidos de acordo com o sentido: Bree “colina”, chet “floresta”. Mas somente um nome de pessoa foi assim alterado. Meriadoc foi escolhido para refletir o fato de que o nome abreviado desse personagem, Kali, significa, em westron, “alegre”, “jovial”, apesar de ser na verdade uma contração do nome Kalimac, da Terra dos Buques, sem significado na época.”

Podemos falar sobre quatro períodos da migração dos Hobbits dentro das histórias estabelecidas por Tolkien: A) sua migração original para os Vales do Anduin, que o ensaio “Anões e Homens” em The Peoples of Middle-Earth indica ter ocorrido no início da Terceira Era; B) suas migrações para Eriador, que o apêndice B de Senhor dos Anéis diz ter ocorrido nos séculos XI e XII da Terceira Era; C) suas migrações para o oeste, para Arthedain, ou para o leste, de volta aos Vales do Anduin e D) suas migrações para o Condado.

O Condado, é claro, se expandiu alguns séculos depois para a Terra dos Buques, e muitos séculos depois para o Marco Ocidental. Mas essas expansões parecem ser diferentes do que as volkvanderungs* dos períodos iniciais. Clãs inteiros deixavam suas terras natais, talvez queimando suas casas para desencorajar seus próprios retiros, e passaram por vastas regiões até alcançar novas terras onde deveriam começar novamente. Tudo o que uma família Hobbit auto-suficiente tinha deveria ir na mudança, em suas costas, ou em carroças puxadas por pôneis e/ou gado pequeno.

Todas as três primeiras migrações ocorreram por razões similares: guerra, ou a ameaça da guerra, tirou os Hobbits de suas terras, assim como os Helvetii e seus aliados deixaram a Helvetia (aproximadamente a mesma região ocupada pela Suíça) no século I DC devido a uma ameaça de guerra a partir do leste e do norte. A Quarta migração se diferenciou das migrações porque, pela primeira vez, os Hobbits migraram em tempos pacíficos. Isso era mais ou menos como um ver sacrum dos povos celtas. Os chefes dos Hobbits, Marcho e Blancho, reuniram o máximo de pessoas que poderiam segui-los e partiram para a terra real de antigamente, além do rio Brandevin.

Devido a razões desconhecidas a nós, os Hobbits dividiram sua nova morada em quatro partes, as quatro Quartas. A divisão provavelmente não ocorreu de imediato. Até certo ponto, deve ter sido estabelecida após a queda de Arnor, depois de Angmar ter sido derrotada e os Hobbits poderem voltar para sua terra natal. Suas casas provavelmente haviam sido destruídas, e os Hobbits teriam que construir tudo novamente. Foi somente quando Aranath (aparentemente anunciado que Aranath) não reestabeleceu o acordo com o rei que os chefes do Condado começaram a organizar questão por conta própria.

Os Hobbits do Condado se estabeleceram em pequenos povoados construídos ao redor de clãs de liderança, que, ao longo de mil anos, em sua maioria fracassavam. Algumas das antigas famílias conservavam suas distintas tradições de clãs, mas muitos se tor
naram homogeneizados em uma sociedade totalmente sedentária.

Eles abriram novas terras, para ser exato, mas somente uma única grande migração é mencionada antes do retorno da autoridade real na Quarta Era. Os Oldbucks deixaram o Condado (ou alguns deles deixaram) e se estabeleceram na Terra dos Buques. Por que um Thain escolheria desistir de sua autoridade é um mistério, mas pode ser que a família Oldbuck havia se tornado tão numerosa que eles simplesmente precisavam de uma terra própria. Nesse caso, as antigas migrações dos celtas ecoam vagamente na última grande jornada Hobbit da Terceira Era.

Os Fazendeiros Celtas eram bem avançados para o seu tempo. Eles eram, de fato, melhores fazendeiros que os Romanos (de acordo com algumas opiniões). Os Celtas usavam arados de ferro e desenvolveram a rotação da safra. Então, apesar de sua reputação de vagar por todos os lugares, os Celtas tentavam permanecer no mesmo local o tanto quanto fosse possível. As migrações são consideradas uma solução para o problema de população crescente.

Os Hobbits, sendo pessoas diminutas, não requeriam tanta terra quanto homens de tamanho normal, mas eles ainda assim deveriam invadir novas terras a cada algumas gerações. O Condado deve ter sido uma região muito grande para as populações iniciais, evidentemente reduzida em 1636 (A Grande Praga) e 1974 (A Queda de Arnor). Como os Oldbucks cruzaram o Brandevin, os Tûks devem ter mandado colonizadores para o norte após a Batalha dos Greenfields (2747), uma vez que Bandobras Tûk tinha muitos descendentes na parte norte do Condado.

As comunidades mais velhas estariam assim estáveis e auto-suficientes, constantemente mandando um fluxo de colonizadores às comunidades mais jovens, que, em troca, teria dado origem às novas comunidades próximas às beiras do Condado. O presente de Aragorn do Marco Oeste para o povo do Condado no começo da Quarta Era demonstrou a necessidade de expansão mais uma vez. O estabelecimento do Marco Oeste teria sido um evento importante. Por todo o antigo Condado, famílias de Hobbits estavam enchendo as carroças, dizendo adeus aos seus amados e partindo à procura de uma nova vida.

Abrir novas terras e encarar os perigos que elas podem trazer (tais como as árvores zangadas da Floresta Velha) não são aparentemente aventuras para os Hobbits e sim feitos nascidos da necessidade. Armados com machados, escavadeiras, martelos e picaretas, os Hobbits começavam a tarefa árdua de conquistar novas terras, cujos habitantes anteriores haviam fugido. Portanto, eles não tinham necessidade de se tornar os grandes guerreiros de que os Celtas eram tão renomados por ser. Um fazendeiro Hobbit somente precisava defender sua safra contra as incursões dos filhos famintos do vizinho.

Mas se as pessoas imaginam para onde os Hobbits foram, a resposta deve ser óbvia. Houve um tempo onde as invasões dos Homens eram demasiado ameaçadoras. Os antigos limites haviam sido quebrados ou esquecidos. Então, eles encheram suas carroças, junto com seus pôneis e pequenas vacas e partiram pela estrada, seguindo para o oeste. De algum modo, eles não foram para o Mar, mas eles continuaram se movendo. E agora eles ainda estão na estrada. Crianças, carroças e tudo.

* volkvanderungs: migrações dos povos, em alemão.


Tradução de Helena ´Aredhel´ Felts

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