Pagão ou cristão – A visão de mundo de Tolkien

Escrito por Fábio Bettega

Há algumas semanas atrás, mais uma fero… digo, amigável discussão se desenrolou na gloriosa Lista Valinor. O tema era de deixar qualquer um com os nervos à flor da pele: afinal, qual a principal influência religiosa da Terra-média? Seria um mundo cristão, pagão ou algo além dessas duas categorias?

Retomando depois de muito tempo a minha coluna aqui na Valinor, pretendo apresentar uma série de ensaios sobre o tema nas próximas semanas. Começo com um texto preparado originalmente para a revista Brathair (www.brathair.cjb.net), dedicada aos estudos célticos e germânicos. É o rascunho (falta a versão final), mas já dá para vocês apreciarem como ficará. A idéia é mostrar como Tolkien pode ter se inspirado na literatura anglo-saxã para criar uma mistura sem igual de influências cristãs e pagãs. E, sem mais delongas, vamos ao texto!

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Numa carta que se tornou um dos documentos mais citados da Alta Idade Média Inglesa, o monge e erudito anglo-saxão Alcuíno , então diácono de York, escreveu irritado ao abade de Lindisfarne, um dos mosteiros mais famosos da Grã-Bretanha. “Quid Hinieldus cum Christo”, vociferava o monge na missiva, datada do ano 797: “Que tem Ingeld a ver com Cristo? O Rei do Céu não deseja ter confraternização nenhuma com esses pagãos perdidos chamados de reis; pois o Rei eterno é soberano no Céu, enquanto o pagão perdido geme no Inferno”. Tudo indica que a invectiva de Alcuíno se deveu à popularidade (para ele suspeitíssima) que a poesia secular de matriz heróica e tradicional tinha mesmo entre os religiosos dos Sete Reinos dos Ingleses de então. Hoje Ingeld não passa de um personagem menor do poema Beowulf e de outras relíquias da tradição poética germânica, mas não é exagero imaginar que, na época, ele fosse a estrela-solo de muitas lais (ou baladas), a julgar pela fama que seu nome alcançava da Islândia à Alemanha.

Para a Igreja medieval (em especial a inspirada por Roma) não há lugar-comum maior que a opinião de Alcuíno: era o óbvio ululante que os ancestrais pagãos dos ingleses cristianizados, por mais célebres, heróicos ou virtuosos que tivessem sido, eram hóspedes do Inferno: não conheceram Cristo, não passaram pela experiência purificadora do batismo, veneravam falsos deuses – demônios, aliás. Para que se preocupar com essa gente?

No entanto, o mero fato de que Alcuíno tenha se sentido no direito de puxar a orelha do abade mais prestigioso da Inglaterra aponta que sua opinião não era consenso entre os anglo-saxões – muito pelo contrário. Durante todo o período que vai das primeiras missões irlandesas e romanas à Bretanha conquistada (fim do século VI) até 1066 e a invasão normanda, há evidências claras, tanto literárias quanto de cultura material, que apontam uma presença e uma valorização contínua do passado pagão entre os ingleses convertidos. A prova mais clara disso já foi citada por nome dois parágrafos acima: é o excepcional texto do Beowulf, meio épico e meio elegia, que reúne em forma poética um grande conjunto de referências aos grandes heróis e figuras mitológicas da tradição germânica, de Sigurd dos Völsungs (chamado de Waelsing pelo autor anônimo do texto) a Hengest, um dos líderes da invasão da Bretanha. No entanto, a obra é claramente fruto do trabalho de um autor cristão , que dedica grande respeito e admiração aos seus ancestrais não-batizados.

Não é exagero afirmar que John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973), filólogo da Universidade de Oxford e autor das obras de literatura de fantasia mais bem-sucedidas do último século, dedicou mais tempo de sua vida profissional ao Beowulf do que a qualquer obra do período anglo-saxão, que era sua especialidade. O ensaio-conferência Beowulf: The Monsters and the Critics (Beowulf: Os Monstros e os Críticos), de 1936, é considerado até hoje o texto seminal da moderna crítica sobre o poema. A hipótese de trabalho deste texto é que, como quase sempre, as fronteiras entre filologia, crítica literária e criação se tornaram permeáveis para Tolkien. A maneira como os anglo-saxões encaravam seus ancestrais pagãos teria se tornado a matriz para que o romancista – um autor fundamentalmente cristão e católico, como gostava de frisar em sua correspondência – criasse de forma coerente com sua fé um cosmos que ainda não é (e nem poderia ser) cristão, mas que escapa da condenação fria feita por Alcuíno às lais que os monges de Lindisfarne apreciavam tanto. Em essência, creio que Tolkien decidiu responder, afinal, o que Ingeld tinha a ver com Cristo.

Ponto de fusão

Para começar, é útil entender exatamente como o Beowulf lida com essa questão complicada. O poema narra principalmente (mas não exclusivamente) as aventuras do príncipe de mesmo nome, herói da tribo dos geats, no sul da Suécia de hoje. Em busca de glória, Beowulf chega a Heorot, o salão do hidromel pertencente ao rei dinamarquês Hrothgar. Heorot é assolada por um monstro antropomórfico de nome Grendel. O herói derrota tanto a criatura quanto sua mãe, que tenta vingá-lo, e retorna em triunfo para seu reino natal, que herda de seu tio. Um hiato de décadas separa essa volta para casa da última aventura de Beowulf, agora um rei idoso: enfrentar um dragão que assola o reino dos geats, que é derrotado com a ajuda de um jovem parente do soberano, Wiglaf – e por meio do sacrifício de Beowulf, que morre em decorrência dos ferimentos causados pelo fogo da serpente.

Para Tolkien, um dos elementos mais interessantes da trama é que ela parece ter sido criada por alguém que viveu um “ponto de fusão imaginativo” entre o pensamento cristão e o pagão. Os personagens do épico, que teriam vivido na Escandinávia do século IV d.C., são inegavelmente pagãos: o nome de Cristo não é mencionado uma única vez. O curioso, porém, é que quase todos os traços distintivos do paganismo germânico também foram extirpados: não há sinais de sacrifício sangrento, nem menção ao panteão de deuses (que concebivelmente deveria ser muito próximo do escandinavo), embora o funeral em barcos ou a construção de um barrow (montículo) repleto de bens funerários para Beowulf desempenhem um papel proeminente. A coisa não pára aí: na maior parte das vezes, as intervenções do poeta mencionam a intervenção divina e sua providência, como na força sobre-humana do herói, que para o autor é um dom direto de Deus para benefício dos homens.

A figura do rei dinamarquês Hrothgar, sobretudo, mostra até onde essa visão foi. Seu menestrel canta sobre a criação do Universo nos moldes do Gênesis, e o próprio soberano é retratado como um monoteísta: “Ele naturalmente se voltou para o Velho Testamento quando delineou o grande rei de Heorot. No ‘folces hyrde’ (pastor do povo) dos daneses temos muito dos pastores e patriarcas de Israel, servos do Deus único, que atribuem à misericórdia dele todas as coisas boas que têm na vida”, escreve Tolkien. De fato, o autor parece crer que a adoração de falsos deuses entre seus ancestrais acontecia apenas, como em Israel, em épocas de perda de fé e apostasia, embora o “bom” pagão fosse capaz de perceber por si só a existência do único e verdadeiro Deus.

Quando nos voltamos para os “vilões” do épico, essa fusão assume traços ainda mais interessantes. Com efeito, Grendel é classificado como descendente do Caim bíblico – tal como os ylfe e os eotenas, os elfos e gigantes tão comuns na tradição escandinava. Além disso, o vocabulário aplicado para designar o monstro incorpora muitos dos elementos que são usados para designar o demônio – associações que incorporam “pecado”, “inimigo” (é sempre bom lembrar que esse é o sentido etimológico da palavra “Satanás”), “inferno”. No entanto, ao contrário do que esperar-se-ia de um espírito maligno, Grendel retém uma materialidade assustadora; ele é feito de carne e osso, e além de corpo tem uma alma, que (considera o poeta) será punida no Inferno depois de sua morte. O que estará acontecendo?

Em seu ensaio, Tolkien arrisca uma explicação muito engenhosa. Para ele, mais uma vez uma fusão imaginativa está em ação. A mitologia escandinava (e, espera-se, também a anglo-saxã) gira, em grande parte, em torno da aliança de homens valorosos e deuses contra os gigantes e outras forças do Caos. No fim das contas, no Ragnarök ou Apocalipse, são os poderes caóticos que vencem – resultado exatamente oposto ao equivalente cristão, a batalha do Armageddon. Para Tolkien, o fato de que não havia verdadeira esperança de vencer essa guerra está na raiz da chamada “teoria da coragem” da antiga literatura germânica. Nesse universo mental, mesmo a derrota final não tornava a coragem de lutar menos válida – pelo contrário, enobrecia-a ao máximo.

O que a imaginação anglo-saxã fez foi fundir os elementos desses confrontos míticos, de maneira que os generais do lado bom – os deuses – tiveram seu papel assumido por Deus, e a guerra contra os gigantes e outros monstros tornou-se também a guerra contra o Inimigo do homem e Cristo. Perdidos num passado remoto e pagão, Beowulf e seus companheiros não tinham como conhecer a verdadeira natureza do combate – mas o fato de que, mesmo sem a esperança da salvação cristã, lutaram para fazer o que é certo os torna, em certa medida, mais heróicos e mais trágicos – e, de fato, seria injusto que eles fossem condenados pela mera ignorância. É a essa conclusão que o poeta parece chegar, embora nunca a explicite.

Além dos círculos do mundo

Quando nos voltamos para a maneira como Tolkien estruturou sua Terra-média ficcional, torna-se claro como tais conceitos o influenciaram. De fato, a luta dos hobbits Frodo e Sam para destruir o Um Anel de Sauron, bem como as do rei-guerreiro Aragorn para auxiliá-los, se desenrolam nas profundezas do tempo pseudohistórico, numa pré-história mítica da Europa que está imensamente distante da Revelação cristã, ou mesmo da mosaica. (Vale lembrar, para os que talvez estranhem essa afirmação, que Tolkien via seu universo ficcional como a nossa própria Terra, e especificamente o Velho Mundo, num passado mitológico.) Nas palavras do também filólogo Tom Shippey, “é o mais sombrio dos passados pagãos”.

Contudo, Tolkien vê esses personagens – em especial as sociedades humanas aristocráticas e virtuosas dos homens de Gondor e dos Rohirrim, bem como os elfos – como “monoteístas puros”. A existência de um Deus único – Eru Ilúvatar – “era um dado da boa filosofia numenoreana “, escreve o autor em suas cartas. No entanto, trata-se de uma divindade ainda “remota” dos seres humanos. Em princípio, Ilúvatar delega o governo da Terra aos Valar , os “Poderes do Mundo” – criaturas angélicas que, superficialmente, lembram os deuses das mitologias pagãs. E mais: a incerteza quanto a uma salvação possível está tão presente entre os povos da Terra-média quanto entre os pagãos germânicos. A mortalidade inevitável dos homens é considerada o “presente de Eru” mas sabe-se apenas que ao morrer os humanos partem “para além dos círculos do mundo” – sem jamais ter certeza o que os espera do outro lado. Além do mais, a maior parte da história da Terra-média – contada de forma bastante resumida em O Silmarillion, obra cuja narrativa precede cronologicamente O Senhor dos Anéis – é, para todos os efeitos, uma derrota atrás da outra. Morgoth, o Vala renegado que equivale a Lúcifer, assim como seu servo Sauron, parecem ser muito mais bem-sucedidos em termos “temporais” que os elfos e humanos fiéis a Eru e aos Valar. O Senhor dos Anéis termina em triunfo, é verdade, mas Tolkien deixa claro que esse fato é passageiro.

Parece razoável supor, portanto, que Tolkien adotou uma solução semelhante à de seus predecessores anglo-saxões, que tanto admirava, para conciliar duas visões de mundo igualmente nobres e belas, embora, na sua opinião, não houvesse debate sobre qual era a verdadeira: a cristã. Talvez daí derive o apelo de sua obra tanto para crentes quanto para não-crentes, dessa capacidade de fazer conviver mito e teologia, desespero e esperança.

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