Númenor, Elendil e viagens no tempo – parte II

Escrito por Fábio Bettega
O abandono da narrativa de The Lost Road marcou uma virada importante
na obra tolkieniana. Com efeito, em fins de 1937, Tolkien abandonou
pela primeira vez a grande mitologia dos Dias Antigos que vinha
desenvolvendo há mais de 20 anos, e se voltou para a “seqüência de O
Hobbit”, um pedido insistente dos fãs de Bilbo e do editor de Tolkien,
Stanley Unwin. Essa decisão surgiu principalmente da avaliação que os
manuscritos de O Silmarillion receberam da editora de Stanley, a Allen
& Unwin. Embora reconhecessem o interesse e a qualidade de algumas
passagens [na verdade, apenas trechos da história de Beren e Lúthien
chegaram a ser lidos pelos avaliadores da editora], a opinião dos
editores era de que o livro não alcançaria um público grande o
suficiente para compensar seu lançamento comercial.
 
 
 
Tolkien parece não ter se abatido; nesse momento,
considerava sua mitologia um assunto praticamente privado, e não
acreditava que ela chegasse a ser efetivamente publicada. Voltou-se
então com afinco à criação da “seqüência de O Hobbit”. O resultado,
porém, foi que o novo livro tomou um rumo completamente inesperado. Em
vez de simplesmente continuar a história de O Hobbit, a “seqüência” se
transformou na continuação e conclusão das lendas heróicas de O
Silmarillion. É claro que estamos falando de O Senhor dos Anéis.

A história de Númenor e de sua queda, bem como a dos reinos
numenoreanos na Terra-média, começou a ser esboçada em 1937, mas só
alcançou desenvolvimento verdadeiro durante a elaboração de O Senhor
dos Anéis. Como sabemos, o livro foi sendo escrito em meio a muitas
hesitações e interrupções. Uma das maiores talvez tenha acontecido em
fins de 1944, quando quase todo O Retorno do Rei ainda não havia sido
escrito. Durante mais de um ano e meio Tolkien não conseguiu progredir,
ao mesmo tempo em que uma nova narrativa tomava forma. A única
referência do próprio Tolkien a esse texto está numa carta a Stanley
Unwin, de julho de 1946:

“Em uma quinzena de comparativa folga, por volta do Natal passado,
escrevi três partes de um outro livro, utilizando num escopo e
ambientação completamente diferentes aquilo que possuía algum valor em
The Lost Road” [Letters of J.R.R. Tolkien, 105].

Esse “outro livro”, que viria a se chamar The Notion Club Papers [As
palestras do clube Notion], foi publicado no nono livro da série The
History of Middle-earth, chamado Sauron Defeated. The Notion Club
Papers foi talvez a mais ambiciosa tentativa de Tolkien de entrelaçar
sua mitologia com o mundo moderno através de uma “viagem no tempo”, não
física, mas onírica e até “mediúnica” [se é que se pode usar um termo
espírita, um tanto estranho à mentalidade do católico Tolkien].

O cenário da história não podia ser mais familiar para quem conhece a
biografia do Professor: um grupo de acadêmicos de Oxford, que se
reuniam regularmente para discutir literatura e ler suas obras em
desenvolvimento uns para os outros. O fato curioso, porém, é que
Tolkien coloca esse círculo [muito similar aos Inklings, que o próprio
autor freqüentava junto com C.S. Lewis] no futuro. Isso mesmo: a
história se passa em algumas reuniões do clube Notion em 1987, das
quais as misteriosas atas teriam sido descobertas num saco de lixo em
Oxford no ano de 2012.

As discussões do clube Notion são quase sempre a respeito de
“literatura imaginativa”: viagens no tempo e no espaço, mundos
imaginários, a possibilidade do homem chegar a outros planetas. A
maioria dos membros parece concordar [num ponto de vista tipicamente
tolkieniano] que o tempo e o espaço [ao menos o espaço interestelar]
dificilmente serão vencidos por máquinas. A discussão está nesse ponto
quando Michael Ramer, um dos membros do clube e professor de línguas
fino-úgricas [o grupo lingüístico do finlandês] vem como uma sugestão
desconcertante: e se for possível observar outros tempos, e outros
lugares, nos sonhos?

Ramer expõe um “método” que teria desenvolvido para esse fim, e os
membros do clube sentem-se tocados [embora um tanto incrédulos] por
essa estranha possibilidade. As conversas do grupo começam, então, a se
concentrar nas relações entre os sonhos, o “inconsciente” humano e os
mitos e lendas. Ramer tenta demonstrar a força que mitos e sonhos,
especialmente os coletivos, podem ter sobre o mundo real:

“- Não acho que vocês se dêem conta, não acho que nenhum de nós se
dê conta da força, da força demiúrgica que os grandes mitos e lendas
têm. Da profundidade das emoções e percepções que os geraram, e da
multiplica̤̣o delas em muitas mentes Рe cada mente, vejam bem, um
mecanismo de obscuras mas imensuráveis energias. Eles são como um
explosivo: podem gerar lentamente um calor constante para mentes vivas,
mas se detonados de repente, poderiam explodir num estrondo; sim,
poderiam produzir um distúrbio no mundo primário real. […]

Pensem na força emocional gerada por toda a borda ocidental da Europa
pelos homens que finalmente chegaram ao fim do continente, e olharam
para o Mar Sem-litoral, não-cultivado, não-atravessado, inconquistado!
E, contra esse pano de fundo, que estatura prodigiosa outros eventos
adquiririam! Digamos, a vinda, aparentemente daquele Mar, cavalgando
uma tempestade, de homens estranhos com conhecimento superior,
navegando barcos até então não imaginados. E se eles trouxessem
histórias de uma catástrofe distante: batalhas, cidades incendiadas, ou
da destrui̤̣o de regi̵es em algum tumulto da Terra Рfico pasmo ao
pensar em tais coisas nesses termos, mesmo agora”.

Quando a discussão está mais animada do que nunca, Arundel Lowdham, um
professor de anglo-saxão e islandês [isso lembra alguém pra vocês?] faz
finalmente o mundo antigo irromper entre o clube Notion:

“De repente Lowdham falou numa voz mudada, clara e terrível, palavras
numa língua desconhecida; e então, virando-se furiosamente na nossa
direção, ele gritou: ” Eis as águias dos Senhores do Oeste! Elas estão
vindo sobre Númenor!”

Ficamos todos assustados. Vários de nós foram até a janela e ficaram em
pé atrás de Lowdham, olhando para fora. Uma grande nuvem, vindo devagar
do Oeste, estava devorando as estrelas. Conforme se aproximava ela
abria duas vastas asas negras, espalhando-se para o norte e para o sul”.

A partir daí, os eventos se sucedem de maneira vertiginosa na
narrativa. Lowdham revela que, em sonhos [assim como o personagem
Alboin Errol de The Lost Road] ele ouvia estranhos fragmentos de duas
línguas desconhecidas: o avalloniano [quenya] e o adûnaico – isso
mesmo, o idioma dos homens de Ponente! Mais que isso: Lowdham revela
dois textos, um em avalloniano e outro em adûnaico, que relatam a queda
de Númenor [Anadûnê em adûnaico], graças à influência malévola de Zigûr
[Sauron].

Durante um dos encontros do clube, enquanto uma terrível tempestade
vinda do Atlântico se abate sobre a Inglaterra, Lowdham e Jeremy, outro
membro do grupo, têm uma experiência quase mediúnica: os dois falam
entre si como Nimruzîr [Elendil] e Abrazan [Voronwë], e como que
vivenciam mais uma vez a destruição de Númenor. Diante de seus atônitos
colegas, os dois saem no meio da tempestade – a mais devastadora já
registrada na Gṛ-Bretanha Рe partem em busca de respostas sobre
Númenor.

A narrativa foi abandonada no momento em que Lowdham e Jeremy voltam de
suas buscas e começam a relatar ao clube Notion o que descobriram.
Christopher Tolkien, na análise que faz do livro, acredita que a
concepção dele se tornara complicada demais para ser completada. Um
último fato dos mais interessantes: Christopher diz que seu pai errou
na previsão da Grande Tempestade por apenas quatro meses. No livro, ela
acontece em 12 de junho de 1987; de acordo com Christopher, a maior
tempestade já registrada na Inglaterra caiu sobre o país em 16 de
outubro do mesmo ano. Nem os Senhores do Oeste seriam capazes de
explicar essa…

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