Uma proposta de tradução para Tree and Leaf

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Escrito por Reinaldo José Lopes

“Oh hell! Has it? Oh my God. Dear oh dear. Dear oh dear oh dear.”

Decidi começar esta apresentação com essa simpática manifestação de perplexidade porque, até onde eu tenho sentido, ela dá conta de forma muito apropriada das reações que o meu tema costuma suscitar no meio acadêmico ou intelectual em geral. Essa frase, diz a lenda, foi proferida por um jornalista cultural do diário britânico Sunday Times, em janeiro de 1997, ao saber que os leitores de seu país haviam escolhido O Senhor dos Anéis como o maior livro do século XX, numa pesquisa de opinião conduzida pelo Channel 4 e pela rede de livrarias Waterstone.

Tudo bem, o tema do meu projeto de mestrado não é O Senhor dos Anéis, mas sofre da mesma desvantagem: carrega a marca registrada “Tolkien” (com o prefixo J.R.R. ou John Ronald Reuel) impressa nele. Se eu decidisse me limitar às expressões similares de perplexidade da intelligentsia anglo-americana sobre esse autor e sobre o fascínio supostamente funesto que ele exerce sobre uma infinidade de leitores, o tempo desta apresentação certamente ultrapassaria os 20 minutos regulamentares. Mas acho mais produtivo parar de brincar de avestruz, como boa parte da academia tem feito até hoje, e encarar o fenômeno de frente – até para refletir se, afinal de contas, ele não tem algum valor verdadeiro que anda escapando a quem já deveria tê-lo percebido. Não adianta ficar gritando “Dear oh dear oh dear” por aí. Por que o fascínio existe – essa é a questão que vale a pena tentar responder.

Paradoxalmente, decidi abordar esse problema (do ponto de vista de um advogado que acredita com todas as forças na sua causa, que fique bem claro) a partir de uma obra que não é exatamente um best-seller, principalmente se considerada dentro dos opulentos padrões tolkienianos. Refiro-me a Tree and Leaf (até hoje sem tradução integral em português), uma coletânea de textos aparentemente muito heterogêneos, todos do final dos anos 30, que só foram postos no mesmo volume e alcançaram o público em geral depois que O Senhor dos Anéis transformou Tolkien numa espécie de Paulo Coelho medievalista.

Um escrutínio ligeiramente mais cuidadoso, contudo, mostra que a coletânea não tem nada de aleatório. A começar pela data de composição da maioria dos textos: eles foram escritos bem no momento em que a Saga do Anel estava nascendo e tomando forma, e documentam, em miniatura, o que a tarefa de criar o romance significava para Tolkien. Em outras palavras: mesmo quando são ficcionais, os textos contidos em Tree and Leaf têm um forte caráter metaliterário: revelam a mente do autor pensando o seu próprio fazer artístico. Mais que isso: mostram um projeto de literatura que, ao ser realizado, atingiu (goste-se ou não da forma como o fez) um poder imaginativo profundo.

Mas por que tratar isso num projeto de tradução, e não de literatura inglesa ou de teoria literária ou coisa que o valha? Eu diria que a própria natureza do texto tolkieniano favorece (embora não facilite) a abordagem por meio da tradução. É que, mesmo sendo conscientemente um antimoderno por excelência, uma coisa Tolkien tinha em comum com Joyce (ou, em termos mais tupiniquins, com Guimarães Rosa): a capacidade de reinventar palavras e seus usos, de mostrar que words englobam worlds, para usar um trocadilho bastante batido em inglês. Para quem não sabe, Tolkien era um filólogo – talvez o último grande filólogo depois dos irmãos Grimm; mas, ao contrário deles, a perspectiva filológica deu a Tolkien uma capacidade única de reinscrever a história e, principalmente, o mito dentro da literatura de língua inglesa. Cada palavra (e, principalmente, a história de cada palavra) conta para Tolkien. Esse olhar, é verdade, está voltado para o passado o tempo todo; mas, por buscar nesse passado a universalidade do mito, acaba por transcendê-lo.

Todo o preâmbulo acima, se serviu a seu propósito, foi para dizer que a tradução fornece uma oportunidade única para “quebrar o código” da mitofilologia (se a palavra não existe, acabei de cunhá-la!) tolkieniana. Reescrevê-la em português significa, antes de mais nada, um esforço para entender o autor nos seus próprios termos, o que certamente ainda não foi tentado entre nós. E significa também uma chance de “fertilizar” o nosso jovem idioma (uso, de propósito, a expressão cara aos tradutores alemães da era de Goethe) com o sabor do elder world tolkieniano – que, bem vasculhado, pode muito bem se revelar o nosso. Conseguir isso exige ao mesmo tempo uma fidelidade monástica ao original e a coragem para recriá-lo. É o sonho (e o pesadelo) de qualquer tradutor, imagino.

Claro que essa conversa toda deve estar soando totalmente impalpável para os que nunca ousaram encarar o recôndito mundo tolkieniano. Por isso, acho que é útil dar uma visão geral sobre o conteúdo do livro antes de falar sobre alguns problemas de tradução que ele sugere nesta fase ainda embrionária do meu trabalho. Quatro textos bastante distintos formalmente compõem o Tree and Leaf. O primeiro, na origem uma apresentação acadêmica oral como esta aqui, é o ensaio On Fairy-Stories – podem chamá-lo, se quiserem, de uma teoria tolkieniana da fantasia e da literatura fantástica. Segue-se o poema Mythopoeia, “o fazer dos mitos” – uma argumentação apaixonada em favor da visão defendida no ensaio. O conto Leaf by Niggle, que vem a seguir, de certa forma é um exemplo do que a teoria tolkieniana pode alcançar em termos de arte narrativa. Finalmente, The Homecoming of Beorhtnoth Beorhthelm’s Son, provavelmente o único texto de Tolkien em forma dramática, encerra a coletânea. Escrito na antiga métrica aliterativa anglo-saxã, é um diálogo poético que reforça a obsessão de Tolkien com o passado da Inglaterra, funcionando como uma continuação (ou uma sequel, se quisermos usar o termo cinematográfico) do poema anônimo A Batalha de Maldon, do século X.

Como o nosso tempo é bastante limitado, a minha exposição se concentrará sobre alguns problemas de tradução presentes em On Fairy-Stories e em Leaf by Niggle, embora eu pretende abordar rapidamente Mythopoeia e Homecoming. Quando digo problemas, e não soluções, é porque quero dizer isso mesmo: ainda estou longe de resolvê-los, embora já tenha alguma idéia do que fazer com eles – mais como uma proposta, um norte a ser seguido, do que como uma resposta pronta.

FaërieOn Fairy-Stories, apesar de lidar com um tema que à primeira vista não poderia ser mais tradicional – os contos de fadas – é na verdade um esforço no sentido de subverter os lugares-comuns que cercam esse tipo de literatura. Tipicamente, Tolkien faz isso usando seu conhecimento filológico, reportando-se à história das palavras e dos conceitos para revelar o potencial imaginativo e literário oculto nelas.

Logo de cara, o ensaio já apresenta um exemplo desse tipo de trabalho, com a aplicação da arqueologia lingüística tolkieniana ao termo Faërie – que se associa inevitavelmente, em sonoridade e cadeia semântica, com o substantivo comum fairy, que nós costumamos traduzir como “fada”. Ambas as palavras, afirma Tolkien, são em última instância de origem francesa, e traduzem o inglês elf; ambas evocam (para o leitor moderno, pelo menos) associações com criaturas diminutas, “bonitinhas”, não muito sérias. A própria definição do Oxford English Dictionary, para a qual Tolkien, ex-dicionarista, se volta ironicamente, não ajuda muito: fairy-story simplesmente não consta no OED, que só lista fairy-tale, com a esperada referência a “seres diminutos” e a histórias sobre eles.

Tolkien não perde a oportunidade de corrigir os colegas dicionaristas (como ele trabalhou apenas na letra W do OED, podia se dar ao luxo de criticar o que constava da letra F). O dicionário registra o primeiro uso da palavra fairy no final do século XIV (bastante tardio, portanto), no Confessio Amantis, do poeta John Gower (1330-1408): as he were a faierie. Mas o OED cochilou, diz Tolkien: o que o texto de Gower realmente diz, em seu Middle English arrevesado, é as he were of faierie, “como se ele tivesse vindo de Faërie”. Para Tolkien, a conclusão é óbvia: o sentido original (e “filologicamente correto”) da palavra é de um lugar (e estado), não de uma classe de seres:

“I said the sense ‘stories about fairies’ was too narrow. It is too narrow, even if we reject the diminutive size, for fairy-stories are not in normal English usage stories about fairies or elves, but stories about Fairy, that is Faërie, the realm or state in which fairies have their being. Faërie contains many things besides elves and fays, and besides dwarfs, witches, trolls, giants, or dragons: it holds the seas, the sun, the moon, the sky; and the earth, and all things that are in it: tree and bird, water and stone, wine and bread, and ourselves, mortal men, when we are enchanted.”

Como observa Thomas Shippey, professor da Universidade de Saint Louis que é provavelmente o analista mais agudo do trabalho de Tolkien em atividade hoje, “the word authenticates the thing”: todo esse complexo de significado está associado à palavra Faërie, “just below the surface” – e volta e meia sobe à tona. Um dos desafios do meu trabalho de tradução do ensaio é tentar encontrar termos que sugiram um processo semelhante de transformação e ambigüidade semântica, com uma profundidade temporal parecida (já que mesmo o sentido “original” de Faërie, quando associado a essa palavra, parece ser recente) – isso sem falar nos jogos de palavras entre Faërie, fairy e fair – já que a idéia de uma beleza misteriosa e elusiva também perpassa o conceito.

Uma coisa é certa: não adianta recorrer a um simples neologismo para conservar a relação fonética entre os termos – claramente, existe uma história por trás deles que precisa ser representada. A princípio, confesso que fiquei tentado a seguir uma certa falácia etimológica e usar algo como “Feéria” – o nosso adjetivo “feérico” vem do mesmo fée francês que deu origem a Faërie. Há também a relação etimológica entre o termo francês e o latim “fata” _os Fados ou Destinos, as Parcas da mitologia greco-romana. Mas parece óbvio que não há mais resquícios dessa conotação em inglês. Também não creio que caiba apelar para um circunlóquio como “Terra das Fadas”. “Feéria”, embora não esteja perfeito, deve ser uma amostra do que eu vou utilizar.

Niggle, Parish, Niggle’s Parish O problema em Leaf by Niggle são os nomes próprios. Isso não é exatamente novidade quando se trata de Tolkien; é só perguntar à minha orientadora, que traduziu O Senhor dos Anéis, sobre a importância e a estranheza dos nomes próprios usados pelo autor na obra.

O conto, que é quase uma alegoria da vida e do trabalho do próprio Tolkien, é sobre um pintor não muito brilhante chamado Niggle, que sonha em pintar a árvore perfeita, mas fica tão absorto nos detalhes que nunca consegue terminar o todo, ou mesmo enxergá-lo – a pintura vai crescendo e crescendo, até tomar um armazém inteiro da casa do pobre Niggle. E o pintor é constantemente perturbado por seu vizinho Parish, um sujeito prático que não vê muito sentido naquela moldura enorme e acha que ela seria muito mais útil para remendar seu telhado destruído pela chuva.

Não vem ao caso aqui como a história continua, mas é importante notar que os nomes dos personagens delatam de cara quem eles são: Niggle é o perfeccionista que se preocupa com as folhas e se esquece da árvore (o verbo to niggle quer dizer algo como “ficar retocando detalhes irrelevantes aqui e ali; ocupar-se de ninharias”), enquanto o sólido Parish (“paróquia”) está com ambos os pés cimentados no seu próprio mundinho, sem conseguir perceber nenhum propósito no tempo que seu vizinho gasta com a imensa pintura.

Para complicar ainda mais a vida do tradutor, o desfecho do conto termina por conciliar as tendências opostas simbolizadas pelos personagens num lugar chamado Niggle’s Parish (como não quero estragar a surpresa de quem se animar a ler o conto, terei de deixar o significado exato dessa junção um tanto vago por ora). A escolha
A escolha correta parece óbvia: traduzir os nomes próprios (há, inclusive, outros nomes no texto que talvez exijam o mesmo tratamento). Antes que vocês torçam o nariz para esse tipo de procedimento, deixem-me avisar que os precedentes estão a meu favor: Tolkien aconselhou os tradutores de O Senhor dos Anéis a verter diversos nomes próprios para a língua-alvo, e até criou um guia a respeito para auxiliá-los.

O desafio aqui é encontrar equivalentes breves (não ia adiantar nada usar a explicação gigantesca de to niggle que eu acabei de dar), naturais (que não soassem mais estranhos em português do que Niggle e Parish, este último um sobrenome relativamente comum e corrente no mundo de língua inglesa) e, claro, que funcionassem bem juntos no Niggle’s Parish do desfecho e no decorrer da trama. Detalhismo demais? Talvez, mas o efeito geral da história, como de resto acontece em toda a obra tolkieniana, depende enormemente do emprego talentoso de poucas palavras escolhidas que conseguem transmitir toda uma cadeia de sentido com pouquíssimo esforço.

Opções para traduzir os nomes desses personagens que eu considerei até agora são Villa (para Parish) e Caxias (para Niggle). O primeiro satisfaz aos requisitos básicos de brevidade, ar comum em português e adequação à conjunção Niggle’s Parish. Caxias, apesar de transmitir o sentido desejado de perfeccionista para Niggle e de ser mais incomum que Villa, tem um certo fundo de agressividade que não combina com o personagem. De qualquer maneira, como working theories, Villa, Caxias e Vila de Caxias não me parecem desprezíveis.

Os poemas Começando pelo último deles, creio que The Homecoming of Beorhtnoth é o que exige um trabalho formal mais concentrado. E isso porque a forma poética usada por Tolkien é exclusiva da antiga literatura anglo-saxã (com algumas excecções para outras literaturas medievais, como a islandesa) e é extremamente difícil de recriar. Não há numero exato de sílabas, não há rima como nós a entendemos; a unidade poética não é nem a linha, mas a meia-linha.

O tempo que nós temos é curto demais para explicar como esse tipo de poesia é formalmente, mas de forma muito geral, pode-se dizer que ela se baseia em unidades curtas, com tamanho mínimo em torno de quatro sílabas, que têm um padrão de equilíbrio entre sílabas tônicas e sílabas átonas. Alguns dos padrões (marcando as tônicas com acento agudo) são:

A – Caindo/Caindo: Sáxon and Énglish
B – Subindo/Subindo: but márk my wórds
C – Em confronto: was like wórds whíspered

Essas são meias-linhas. Cada meia-linha se amarra à outra por meio da aliteração, de forma que a primeira sílaba acentuada da segunda meia-linha força a primeira sílaba tônica da segunda meia-linha a aliterar com ela.

Sei que a explicação é bastante sumária, mas a característica mais marcante desse tipo de métrica é a incrível brevidade e concentração de expressão, dependendo grandemente de palavras de, no máximo, duas sílabas. Um caminho para reproduzir isso em português, imagino, é abrir mão do vocabulário erudito, de origem latina mas cunhado recentemente, e usar ao máximo as palavras de origem germânica (que, se não são comuns, também não são inexistentes) que incorporamos ao nosso idioma.

Finalmente, Mythopoeia é relativamente simples – por usar uma métrica extremamente tradicional (o pentâmetro iâmbico/decassílabo) e não ter grandes ousadias formais. É um poema-programa, importante pelo que diz, como profissão de fé. Traduzi duas estrofes dele e gostaria que nós terminássemos esta conversa lendo-as. Coloquei primeiro o texto em português e depois o original:

He sees no stars who does not see them first
of living silver made that sudden burst
to flame like flowers beneath an ancient song,
whose very echo after music long
has since pursued. There is no firmament,
only a void, unless a jewelled tent
myth-woven and elf-patterned; and no earth,
unless the mothers womb whence all have birth.

The heart of man is not compound of lies,
but draws some wisdom from the only Wise,
and still recalls him. Though now long estranged,
man is not wholly lost nor wholly changed.
Dis-graced he may be, yet is not dethroned,
and keeps the rags of lordship once he owned,
his world-dominion by creative act:
not his to worship the great Artefact,
man, sub-creator, the refracted light
through whom is splintered from a single White
to many hues, and endlessly combined
in living shapes that move from mind to mind.
Though all the crannies of the world we filled
with elves and goblins, though we dared to build
gods and their houses out of dark and light,
and sow the seeds of dragons, twas our right
(used or misused). The right has not decayed.
We make still by the law in which were made.

Não vê estrelas quem não as vê primeiro
qual prata viva explodindo em chuveiro
chama florida sob canção antiga
cujo eco mesmo de longa cantiga
o perseguiu. Não há um firmamento,
só vazio, se não tenda, paramento
por elfos desenhado; não há terra,
se não ventre de mãe que a vida encerra.

Mentiras não compõem o peito humano,
que do único Sábio tira o seu plano,
e o recorda. Inda que alienado,
algo não se perdeu nem foi mudado.
Em desgraça está, mas não destronado,
trapos da nobreza em que foi trajado,
domínio do mundo por criação:
O deus Artefato não é seu quinhão,
homem, sub-criador, luz refratada
em quem matiz branca é despedaçada
para muitos tons, e recombinada
forma viva mente a mente passada.
Se todas as cavas do mundo enchemos
com elfos e duendes, se fizemos
deuses com casas de treva e de luz,
se plantamos dragões, a nós conduz
um direito. E não foi revogado.
Criamos tal como fomos criados.


[Discussão no Fórum Valinor: https://www.valinor.com.br/forum/threads/34673/ ]

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